"É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo."
A voz de Pedro, um universitário negro de 22 anos, nos conta sobre a lição importante dada pelo pai, Henrique, professor de literatura na rede pública. Pedro e Henrique são, respectivamente, narrador e protagonista do romance O Avesso Da Pele, de Jeferson Tenório, lançado pela Companhia das Letras.
— A questão central do livro é o avesso. O que o Pedro faz ao narrar a história do pai é restituir uma subjetividade que foi apagada pelo processo violento do estado e da polícia. Quando ele narra, ele coloca essa subjetividade. O avesso é o que nos mantém como humanos e não como números ou como mais uma pessoa negra que morre. É alguém com histórias, angústias, contradições e medos — explica Tenório.
O pai do narrador, Henrique, morreu baleado por policiais em uma abordagem desastrosa em que foi percebido como suspeito após sair da escola. Era um dos raros momentos recentes em que se sentia satisfeito com a profissão após anos de desânimo no magistério.
"Você só se deu conta do que estava acontecendo quando um deles falou mais alto e disse para você parar. Era uma abordagem. Sua cabeça ainda estava na sala de aula, ainda estava em Dostoiévski" narra Pedro.
Radicado em Porto Alegre desde a adolescência, Tenório publicou outros dois romances antes de ser procurado pela Companhia das Letras: O Beijo Na Parede (Sulina, 2013) e Estela Sem Deus (Zouk, 2018).
O Avesso Da Pele teve direitos vendidos para o cinema para a RT Features e deve ganhar traduções em breve. O escritor faz doutorado em Teoria Literária na Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul (PUC-RS).
A forma como Pedro conta a história do pai -"você só se deu conta do que estava acontecendo"- é resultado de um trabalho engenhoso de Tenório para construir a narração.
— Embora pareça simples, é uma narração complexa. Porque usei uma falsa segunda pessoa. Porque quem narra é o Pedro. Ele convoca o leitor com mais força para que participe imediatamente da história. Há uma transição mais sutil para a terceira pessoa, quando conta a história da mãe. Precisava de distanciamento e com pouco juízo de valor para que ficasse verossímil e conseguisse narrar questões muito íntimas da mãe — diz Tenório.
A história se passa em uma Porto Alegre sem clichês de identidade gaúcha e com contrastes entre bairros de classe alta e periferia e, claro, racismo. "Ao caminhar por Porto Alegre, você se sentia sem lugar. Porque toda vez que saía para caminhar, tinha a impressão de estar invadindo um espaço", conta o filho.
A mãe de Pedro é Martha, que teve uma relação conturbada com Henrique. De forma muito sensível, Tenório possibilita um mergulho em vivências tão duras que é como se testemunhássemos o exato momento em que nascem os traumas dos personagens. Esses traumas, claro, se manifestarão na dinâmica do relacionamento do casal.
"Saberá que as professoras da creche prenderam seus dedos na porta apenas por maldade. Queriam ver até onde você aguentava. E no fim, também mais adiante, encontrará pessoas dispostas a saber até onde você vai. Até onde você suporta", conta o filho sobre o pai.
Embora a ênfase seja sobre o pai - Tenório diz ter sido influenciado sobre Hamlet, de Shakespeare - também acessamos à história íntima da mãe de Pedro.
"Antes, ela era Martha ou Marthinha. Agora, depois de uma simples pergunta, ela passara a ser Martha e negra. A pele fora nomeada, a existência ganhara sobrenome", diz o narrador, sobre o momento da infância em que a mãe se descobre negra.
— O fato da pele ser nomeada é algo que a Conceição Evaristo discute. A cor da pele é nomeada antes da pessoa ter seu nome. Por isso os termos que ela ouve: "neguinha", "nega", sendo associada à sexualidade, transformada em empregada doméstica pelos sogros. É uma questão de tomar consciência de que dali em diante ela vai ter que lidar com isso — diz o autor.