No país das telenovelas, consolidar uma carreira de atriz a partir do cinema e a milhares de quilômetros de distância do coração de uma indústria altamente concentrada parece uma proeza quase inatingível. Mas Hermila Guedes conseguiu.
Não que o fator geográfico não a favoreça. Afinal, desde a década de 1990, Pernambuco, o Estado onde ela nasceu e vive – e sem planos de sair – desfila uma produção audiovisual efervescente e cada vez mais reconhecida. Foi nesse contexto que ela surgiu, primeiro em curtas-metragens e depois em longas, sendo o primeiro nada menos do que Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), de Marcelo Gomes, escolhido para representar o Brasil no Oscar em 2006. A notoriedade, porém, veio com o aclamado O Céu de Suely (2006), do cearense Karim Aïnouz, a partir do qual consagrou-se no circuito de festivais com a emblemática intepretação da jovem que, abandonada pelo progenitor do filho que carrega no útero, resolve rifar o próprio corpo em busca de dinheiro para recomeçar a vida.
Nos anos seguintes, seguiu acumulando prêmios, trabalhou com alguns dos principais cineastas da sua geração, como Cláudio Assis, Hilton Lacerda e Leo Tabosa, e, mais recentemente, abriu-se às narrativas seriadas em meio à popularização dos serviços de streaming – esteve, entre outras, em Irmandade, Segunda chamada, Assédio e na elogiada Cangaço Novo, que estreou em agosto no Amazon Prime Video.
Nesta semana, Hermila – que já esteve neste ano pela segunda vez no Festival de Gramado –, está de volta ao Rio Grande do Sul, desta vez para ser homenageada no 6º Festival Santa Cruz de Cinema, em Santa Cruz do Sul, no Vale do Rio Pardo. Em conversa por telefone, comentou o atual momento do cinema brasileiro, o debate sobre a cota de tela (exibição obrigatória de filmes nacionais em cinemas em um período mínimo) e o espaço conquistado pela produção pernambucana. Também narrou os desafios de conciliar a carreira longe do eixo Rio-SP com a criação de três filhas.
Você foi projetada nacionalmente pelo cinema, o que não é tão comum em um país que tem nas telenovelas um produto de maior alcance. Como o cinema entrou na sua vida?
Quando eu comecei a fazer teatro – bem amadoramente, na verdade –, estava iniciando uma produção cinematográfica muito forte em Pernambuco. Meu primeiro trabalho foi um curta-metragem chamado O Pedido, dirigido pela Adelina Pontual, que havia trabalhado com o Marcelo Gomes em um curta sobre a Clarice Lispector. Eu, então, conheci o Marcelo, e ele me convidou para fazer uma participação no longa-metragem Cinema, Aspirinas e Urubus. A partir daí, fui conhecendo vários cineastas pernambucanos, entre eles o Karim Aïnouz, com quem fiz meu primeiro longa como protagonista (O Céu de Suely). Minha formação como atriz foi na prática, e o cinema pernambucano foi meu grande professor. Os diretores com quem trabalhei foram meus grandes mestres.
Pernambuco é um polo cinematográfico do país. Como acha que o Estado e o Nordeste conseguiram conquistar esse espaço, contribuindo para a descentralização da produção nacional?
No início, quando não havia cursos de cinema no Recife, as pessoas iam estudar fora do país. A Adelina Pontual, por exemplo, estudou em Cuba. Começou com uma produção forte de curtas-metragens a partir do mangue beat, que não foi só um movimento “do Chico Science”: também foi um movimento cinematográfico. Mas o boom aconteceu quando o Lirio Ferreira e o Paulo Caldas se juntaram e fizeram o longa-metragem Baile Perfumado (1996), sobre o cangaço, e Pernambuco virou referência no cinema nacional. A partir daí, muitos cineastas surgiram, como o Marcelo Gomes, o Cláudio Assis e depois o Kléber Mendonça Filho, que era um crítico de cinema e virou um grande diretor, com essa importância toda que tem hoje. Penso que o cinema pernambucano ganhou força a partir da trajetória desses filmes e do reconhecimento do público e da crítica. Eu nunca pensei em ser atriz, comecei fazendo cinema e acho que tive muita sorte de estar no lugar certo e na hora certa.
O Céu de Suely é um filme importante nesse processo, e sua interpretação é emblemática. Isso, de certa forma, a coloca como uma das “caras” dessa geração fundamental na produção do país.
O Karim e o Marcelo são diretores que gostam muito de dirigir atores, conduzem muito bem. E eu sou uma atriz que gosta de ser conduzida. Até porque, como não tenho formação acadêmica, a entrega é o meu melhor método de interpretar. E tive parceria com esses diretores, que sabiam muito bem o que queriam e gostavam do que estavam fazendo. Acho que o meu desenvolvimento tem muito do aprendizado que tive com esses grandes mestres.
Vemos hoje uma preocupação do mercado em recuperar o público perdido com a pandemia. Como você, que fez tantos trabalhos nas últimas décadas e conhece as dificuldades para fazer os filmes nacionais chegarem às salas de cinema e atrair espectadores, enxerga esse momento atual?
A pandemia gerou um consumo muito grande de audiovisual, inclusive brasileira. Mas realmente ainda não vemos essa valorização nas salas de cinema. Tenho ido a festivais, estive em Gramado, e vejo que há uma resistência, os filmes continuam sendo feitos e exibidos, mesmo sem muito incentivo. É um momento de retomada, com um governo que pode nos possibilitar fazer mais cinema. Até então, o cinema estava sucateado, com muitas produções paradas por falta de apoio. Tenho esperança de que as produções possam vir com força para recuperar o tempo que perdemos.
o cinema nacional merece (a cota de tela). sem esse espaço, como as pessoas vão saber que há produções de qualidade e perceber que o cinema é importante para o reconhecimento de identidades?
Há uma discussão forte no momento sobre a cota de tela, diante da resistência de alguns exibidores, que alegam que isso torna ainda mais difícil a manutenção das salas de cinema. você tem um posicionamento sobre essa questão?
O cinema nacional merece esse acesso. Sem a cota de tela, dificulta muito, pois precisamos de público. Sem esse espaço, como as pessoas vão saber que há produções de qualidade e perceber que o cinema é importante para o reconhecimento de identidades? É mais do que um direito, é uma obrigação proteger o audiovisual brasileiro.
Você declarou em certa ocasião que sentiu medo de não conseguir recolocação no mercado após ter interrompido a carreira para se tornar mãe. Como é conciliar as duas coisas?
Que bom que foram temores que já passaram. Mas eu fiquei realmente muito preocupada no começo. Tenho três filhas. Quando tive a primeira, dava para carregar comigo. Até os três anos, ela viajava junto. Mas com três filhas não dava mais, e eu tive que parar um tempo para maternar. Tive sorte de poder retornar com a entrada dessas plataformas de streaming, que gerou muita oferta de trabalho no país. Foi dessa maneira que retornei. Não fiz muitos filmes nesse retorno, mas fiz várias séries importantes e que me abriram espaço. Não trabalho tanto quanto gostaria, mas consigo trabalhar. De alguma maneira, consigo ter bons convites sendo mãe de três filhas e vivendo fora do centro cultural do país. Acho que conciliei bem as coisas. Em todas as fases em que elas precisavam muito da mãe, estive junto. Depois, contei com uma rede de apoio importante, com pessoas que me ajudam muito, como minha mãe e minha sogra. Ultimamente tenho viajado muito para trabalhar, e até prefiro, porque, como o uso muito o artifício da entrega para interpretar, não é fácil para mim dividir as coisas. Prefiro estar um pouco distante da função de mãe quando estou trabalhando.
Em algum momento você pensou em se mudar para o eixo Rio-SP? Pretende seguir no Recife?
Isso já foi uma questão, mas não aconteceu. Acho que eu não teria a mesma qualidade de vida, ganhando o que eu ganho, morando no Rio ou São Paulo. Meu marido é servidor público, então não penso mais nisso, por enquanto. Vamos ver como as coisas acontecem. Se ficar difícil, posso voltar a pensar nisso.
Você já interpretou mulheres muito fortes e em situações muito delicadas, como em Era uma Vez Eu, Veronica (2012) e nas séries Segunda Chamada e Assédio, por exemplo. O que essas personagens te ensinaram?
Quando aceito fazer uma personagem, geralmente me apaixono por ela. E é uma troca: eu quero contar a história dela se ela me der algo. Claro que também carrego bagagens. Sou de uma família de muitas mulheres, tenho referências femininas de muita força, mulheres que sobreviveram a muitos abandonos. Minha avó foi abandonada muitas vezes e cuidou sozinha dos filhos. É difícil ser mulher, e sempre tento levar essa força para as minhas personagens.
A pandemia gerou um consumo muito grande de audiovisual, inclusive brasileira. Mas realmente ainda não vemos essa valorização nas salas de cinema. O cinema (nacional) estava sucateado, com muitas produções paradas por falta de apoio. Tenho esperança de que as produções possam vir com força para recuperar o tempo que perdemos.
Falando em mulheres fortes, você já interpretou a Elis Regina em um especial da Globo em 2006. Como foi essa experiência?
Eu estava divulgando O Céu de Suely, a produção do especial estava à procura de uma atriz parecida com a Elis, viram uma foto minha em um jornal e acharam semelhanças. Fui convidada para fazer o teste no Projac com o Ricardo Waddington. No dia do teste, eu não estava conseguindo fazer, estava muito nervosa, porque eu vinha do cinema, e televisão é muito diferente. Lembro do Waddington pedir para as pessoas que estavam lá saírem do meu campo de visão para que eu conseguisse, e aí consegui. No mesmo dia, eu soube que interpretaria a Elis e fiquei muito feliz. Tive que pesquisar muito sobre ela. Sempre fui fã, a minha mãe gostava muito e eu escutava muito na infância e adolescência. Eu não me achava parecida com ela, embora algumas pessoas aqui no Recife falassem. Conheci a Elis como mãe, foi muito revelador. Saber que aquela mulher que trabalhava tanto, também cuidava da família, era dona de casa, cozinhava muito bem, ver que isso é possível me inspirou muito na maternidade depois.
Seu trabalho mais recente foi Cangaço Novo, série que está sendo muito elogiada. Para você, que nasceu no interior, como foi entrar em uma história que trata da realidade do sertão nordestino?
Quando fui convidada para fazer o teste, de cara me apaixonei pela Leinneane. Fui uma das últimas a fazer o teste. Passou um mês, fiquei muito angustiada achando que não ia conseguir, mas deu certo. A personagem ilustra essas contradições políticas do interior, não só da região Nordeste, mas de todo o país, essa confusão entre público e privado, a ambição dessas pessoas pelo poder, a corrupção. No caso da Leinneane, você fica em dúvida sobre o que ela quer, mas acho que de alguma maneira ela luta por justiça.
E quais são seus trabalhos novos?
Acabei de fazer um longa com o Pedro Waddington, diretor da Conspiração Filmes, e com a Rebeca Diniz, diretora de Sob Pressão. Filmamos eu, Marjorie Estiano, Alexandre Nero, Emilio de Mello e alguns atores jovens maravilhosos. Estou também com um trabalho com o Marcelo Gomes, é uma série que vamos começar a filmar em novembro. E tenho recebido convites para cinema. Estou súper a fim de trabalhar. Depois que acabamos o Cangaço Novo, fiquei mais ou menos um ano sem trabalho e agora estou retomando em um ritmo frenético, como eu gosto.
6º Festival Santa Cruz de Cinema
Realizado desta terça (24/10) até a sexta-feira (27/10), o evento inclui mostra de filmes, debates, oficinas e outras atividades. O ator Thiago Lacerda receberá o Troféu Tuio Becker e a atriz Hermila Guedes será a grande homenageada. Mais informações, incluindo a programação, podem ser obtidas em festivalsantacruzdecinema.com.br.