As radionovelas começaram a sua jornada no Brasil há mais de 80 anos, com Em Busca da Felicidade, de 1941 — no Rio Grande do Sul, a estreante foi O Solar dos Alvarengas, lançada em 1943. As produções tiveram tempo de fazer um sucesso estrondoso, enfrentar a decadência e, praticamente, cair no esquecimento. O formato, porém, reinventou-se e, hoje em dia, encontrou o seu espaço: a internet. E o sucesso também retorno.
Um dos responsáveis por essa "nova geração das radionovelas" é o podcast Nerdcast, do site Jovem Nerd, que foi iniciado em 2006, trazendo debates sobre a cultura pop. Há pouco mais de 10 anos, iniciaram-se as dramatizações, com o Nerdcast RPG, apostando em criações sonoras com a intuito de colocar o ouvinte dentro do jogo de interpretação. Dessa forma, dragões e outros seres mitológicos, bem como explosões e efeitos sonoros, passaram a ser entregues ao público. Quase uma grande novela. Só que nerd.
Em 2012, os sócios do projeto, Alexandre Ottoni e Deive Pazos, investiram em um audiodrama estrelado pelo famoso dublador Guilherme Briggs. Com T-Zombii: A Gravação dos Mortos, ofereceram um filme de terror de 1h17min, mas apenas em som. De lá para cá, passaram a planejar os próximos passos, sem nunca deixar de investir nos projetos sonoros. Em 2023, lançaram o mais audacioso deles, a audiossérie França e o Labirinto.
Protagonizada por Selton Mello, a ficção radiofônica acompanha o detetive Nelson França, que, após perder a visão, precisa investigar um serial killer que achava já ter prendido. Em 13 episódios, a trama busca colocar o ouvinte na pele do investigador, inserido dentro da narrativa e tentando buscar as pistas para decifrar o mistério.
Para aumentar a imersão, foi usado o áudio binaural — conhecido como 3D, em que o ouvinte consegue compreender geograficamente de onde estão vindo os sons. Foram quatro anos desde a criação do roteiro até a entrega do produto, exclusivo do Spotify. O resultado: um sucesso, figurando entre os títulos mais ouvidos da plataforma em 2023. A aposta nesse formato, para a dupla criativa do Jovem Nerd, tem vários atrativos para além dos custos menores em relação ao vídeo.
— A gente vê no áudio a chance de as pessoas voltarem a utilizar a sua imaginação. Porque, hoje, em um mundo cheio de estímulos, com redes sociais te chamando atenção a cada três, cinco segundos, você não para um minuto para pensar, criar, imaginar, como você fazia lendo um livro, por exemplo. Em produtos de áudio, você está exercitando a criatividade — diz Pazos, conhecido como Azaghal, que trabalhou mais de 500 horas no audiodrama.
Em França e o Labirinto, eles não descrevem os personagens e deixam para o público a missão de completar a história. A saga do protagonista é a mesma, mas cada ouvinte acaba tendo na sua cabeça uma imagem diferente de tudo o que foi apresentado.
Com um processo de produção longuíssimo em relação às radionovelas, Pazos e Ottoni acreditam que as próprias limitações que colocaram para França e o Labirinto fizeram com que a audiossérie demandasse muito tempo para chegar ao público. Por exemplo, por acharem que poderia gerar confusão e deixar a experiência menos verossímil, cortaram diversos recursos narrativos, como flashbacks e pensamentos do protagonista.
— Com nossa limitação de não ter o visual, nos preocupamos em não fazer algo confuso, ainda mais sendo uma série de mistério e de investigação. A gente também se deu conta de que as pessoas iriam se perder caso tivéssemos muitos nomes, porque não tinha nem como se apoiar na fisionomia de um ator, de uma atriz para saber que personagem é esse – detalha Ottoni. – Não estou dizendo que a radionovela é menos valorosa. Todo mundo lá era profissional top de linha para fazer tudo ao vivo, mas a gente teve a oportunidade de fazer um desenho mais cuidadoso, porque o som, para nós, era protagonista, assim como o próprio Selton. A ideia, a tecnologia aliada à história era parte essencial da experiência.
Selton Mello, que tem uma vasta experiência com o uso da voz, relembra que, quando criança, ao fazer dublagens, encontrava nos estúdios profissionais que eram da Rádio Nacional, experientes das radionovelas. E, para o artista, França e o Labirinto, mesmo com toda a sua tecnologia, não deixa de ser um derivado deste produto tão popular décadas atrás, como ele explica em entrevista a GZH:
– Ali, você tem a imaginação. Acho fabuloso isso. Meu personagem, por exemplo, tem um cachorro, o Bonaparte. Cada pessoa que ouve França e o Labirinto deve imaginar esse cachorro do seu jeito. Esse exercício da imaginação eu acho maravilhoso. Acho muito importante em qualquer arte, em qualquer manifestação artística, você deixar o público concluir o raciocínio. O público é coautor do trabalho. A gente não deve dar tudo pronto, tudo mastigado. Com a vivência do público, cada um vai sentir da sua maneira. E, assim, completar o trabalho. Somente assim o trabalho estará completo.