Berenice – Cirilo... meu filho... onde estás?
Cirilo – Estou aqui, mamãe.
Berenice – Abre... todas... as janelas... do quarto... Quero ver... o meu neto... assim...
no escuro... não posso... vê-lo...
Cirilo – (baixo) Coitada! Já não enxerga. Sim mãesinha, eu vou abrir todas as janelas.
Berenice – Não é mais... preciso... começo a vê-lo a... agora. Que bonito... ele é... Interessante... porque... o vestiram de anjo? Porque... essas azas tão grandes...? Porque... essa roupagem... de saca azul... que ele veste? Ah sim... estou compreendendo... ele é o anjo... do perdão... Sinto-me feliz... agora... Obrigado... meu Deus... Muito obrigado... (contorsões, respiração agitada que vai se acalmando até cessar completamente.)
Cirilo – Mãe!... Mãesinha!... Mãesinha querida!...
Rubens – Pronto, Cirilo. Está tudo acabado. Ela descansou. (Soluços de Cirilo e de Suzana.)
(CORTINA MUSICAL)
A cena descrita acima pode parecer um dramalhão exagerado e até soar engraçada hoje em dia, mas saiba que, há 80 anos, esse tipo de conteúdo estava na crista da onda. Antes da televisão, o rádio reinava. Por meio dele, o público se informava, ouvia música, entrevistas, piadas e, também, acompanhava novelas – ou melhor, radionovelas. O formato, que chegou ao Brasil em 1941, com Em Busca da Felicidade, transmitida pela Rádio Nacional, não demorou para ganhar produções gaúchas. A estreante foi O Solar dos Alvarengas, da qual foi retirado o trecho à esquerda, sem alterações na escrita. Ela foi lançada em 1943, há 80 anos.
Essa história octogenária, em que os galãs e as mocinhas mexiam com o imaginário da população apenas com suas vozes, começou a ser irradiada aos domingos à noite, mais especificamente em 28 de março, às 20h, na Rádio Difusora, de Porto Alegre, surgida da mente criativa do gaúcho Érico Cramer. O autor já vinha apostando em produções artísticas radiofônicas, como o humorístico Os Serões da Dona Generosa, lançado nos anos 1930, tornando-se um grande sucesso. Tudo isso dentro do ainda aflitivo cenário da Segunda Guerra Mundial e da ditadura então vivida no país, a do Estado Novo. Assim, as pessoas ansiavam por um respiro fora da realidade.
Cramer, que assinava suas histórias sob o pseudônimo Roberto Lis – pois trabalhar em rádio era malvisto por muitas famílias à época –, pretendia criar algo que destoasse do formato predominante do radioteatro gaúcho até então, como o Teatro Farroupilha, encabeçado pelos artistas Estelita Bell e Pery Borges. A diferença seria fazer algo seriado, com continuidade, ao contrário das apresentações únicas, com começo, meio e fim no mesmo dia. E, claro, tudo isso embrulhado na icônica sonoplastia presente para dar a atmosfera da trama, batendo cocos para fazer o trotar de um cavalo, amassando papel celofane para simular o fogo ardendo, entre muitas outras peripécias criativas.
O Solar dos Alvarengas, segundo os roteiros remanescentes guardados no Museu da Comunicação Hipólito José da Costa (MuseCom), inicialmente, teria cada episódio contando uma história diferente, sem continuidade, apesar de manter os mesmos personagens. Porém, provavelmente inspirado por Em Busca da Felicidade, que passou a ser transmitida no Estado pela Farroupilha nesse meio tempo, Cramer decidiu mudar o rumo e, a partir do 21º episódio, começou a haver uma recapitulação, formalizando, assim, a modelo sequencial que cravou esta como a primeira radionovela gaúcha.
O enredo do programa acompanhava a antes bem-sucedida família Alvarenga, que passa a viver com a decadência e, também, com o conflito geracional, entre o comendador Carlos, que não abria mão dos costumes antigos, e seus netos, inclinados a abraçar a modernidade e sem medo de se entregar às aventuras amorosas. Foi o começo de uma próspera produção local, dentro de um Estado com alta taxa de analfabetismo e que apenas perdeu espaço após a popularização da televisão, já na década de 1960.
— Não tinha como aferir a audiência porque, em Porto Alegre, não havia pesquisa de opinião. Media-se, então, pela quantidade de cartas e, também, como a cidade era pequena, todo mundo comentava sobre as produções na Rua da Praia, nas rodas de conversa — explica o professor e pesquisador Luiz Artur Ferraretto, autor de Rádio no Rio Grande do Sul – Anos 20, 30 e 40: Dos Pioneiros às Emissoras Comerciais (2002).
As radionovelas movimentaram toda uma engrenagem, alavancando muitos nomes ao estrelato. Um deles foi Cândido Norberto. Antes de falecer, em 2009, ele falou com a atriz e professora Mirna Spritzer, que conduzia um projeto de pesquisa sobre os atores radiofônicos – o resultado foi o livro Bem Lembrado: Histórias do Radioteatro em Porto Alegre (2002), organizado por ela e Raquel Grabauska.
— Cândido Norberto disse uma coisa muito interessante, de que tudo o que é feito na televisão foi feito antes no rádio. Ele citou teleteatro, programa de humor, seriado, programa de jornalismo. E a radionovela foi a expressão maior de tudo isso o que se chama de era de ouro do rádio. O rádio era um veículo por excelência, então tudo passava por ali — salienta Mirna.
Intérpretes e contrarregras
Boa parte dos nomes da era de ouro do rádio, infelizmente, já não está mais viva para contar as histórias da época. Wilson Roberto Gomes, autor de cinco produções e ator em mais de 60, é um remanescente. Ele, que começou sua jornada no mundo radiofônico aos 16 anos, hoje tem 81 e lembra com nostalgia de quando só o som conduzia uma vasta audiência para uma realidade completamente nova.
— A diferença das novelas de rádio é que a gente colocava a imaginação para trabalhar. Imaginava a mocinha, a bandida, um personagem mais caricato, os locais. A novela da televisão a gente vê, ela dá tudo mastigado — comenta o ator e escritor.
Da época em que trabalhava nas radionovelas, na década de 1960, Gomes recorda a intensidade que era fazer os programas ao vivo, em que eram necessários muito ensaio e disciplina. Segundo o radioator, os envolvidos compartilhavam o mesmo sentimento: o amor pelo trabalho. Antes das férias, todos se uniam e passavam noites em claro para deixar os episódios gravados. Afinal, o show não podia parar.
Mesmo ficando muitos anos envolvido com o formato, Gomes enfatiza que nunca conseguiu o papel de protagonista, o que não o impedia de estar sempre presente em pontas e com personagens secundários — porém marcantes. Ele fez desde um galã cínico que disputava o coração da mocinha, em Ódio que Mata, até um jovem negro de 13 anos que trabalhava em uma fazenda, em Castigo do Céu.
— Fiz muitas coisas, mas, como eu tinha a voz gravíssima, não iam deixar de dar um papel principal para o Adroaldo Guerra, por exemplo, para dar para mim. Então, sempre tive papéis secundários — recorda Wilson, que assina com o nome artístico até hoje e acha estranho quando lhe chamam de Edison Azevedo Gomes, como foi batizado (tal qual Érico Cramer, mudou por causa da família).
O filho de Adroaldo Guerra, o comentarista esportivo Adroaldo Guerra Filho, o Guerrinha, era pequeno quando o seu pai estava no auge das radionovelas. Mesmo assim, ainda lembra de detalhes de quando visitava as gravações ao lado de um dos grandes nomes das radionovelas do Rio Grande do Sul – inclusive, o endereço: 11º andar do edifício União, no Centro Histórico de Porto Alegre, onde ficava a Rádio Gaúcha.
— Me marcou que as radionovelas eram ao vivo. Tu não podias deixar para depois. E o meu pai não precisava decorar, porque ele lia o texto, não era filmado. Ele foi um radioator de mão cheia, não porque é meu pai, mas foi muito bom. Eu também achava muito interessante o contrarregra, que imitava o cavalo galopando, por exemplo. Eu ficava impressionado. O contrarregra era tão importante quanto os atores — salienta Guerrinha.
Um dos clássicos protagonizados por Adroaldo Guerra foi Os Três Homens Maus (1948), da Rádio Gaúcha, em que atuava ao lado de Cândido Norberto e Walter Ferreira, fugindo um pouco do melodrama predominante. O sucesso foi tão arrebatador que furou a bolha das donas de casa, a quem esses programas eram geralmente destinados, e era popular até em oficinas mecânicas, com homens acompanhando a narrativa e torcendo pelos personagens.
Retorno
As radionovelas praticamente foram extintas duas décadas depois de seu boom. Mas, nos anos 1990, um apaixonado por essa nobre arte decidiu trazê-las de volta: o radialista Cláudio Monteiro começou a investir no formato na emissora 1.120 AM, do Grupo RBS. Comprando os direitos das obras do paulista Raymundo Lopes, o gaúcho reuniu boa parte da turma que havia feito história com o formato no passado e colocou todo mundo para atuar em frente ao microfone novamente.
Gustavo Gossen, filho de Monteiro, salienta que o sucesso da retomada conduzida pelo seu pai foi O Homem Sem Passado (1994), que foi a primeira – e tinha Wilson Roberto Gomes como um dos personagens principais. A empreitada durou dois anos. Foram sete novelas ao todo.
— Meu pai ouviu a versão original dessa novela na década de 1960 e disse para si mesmo que, um dia, seria ator e interpretaria Alex, o galã da novela. Então, ele realizou esse sonho, além de dirigir, era o ator principal — explica Gossen.
Monteiro, que ficava ofendido quando a família dizia que a época das radionovelas já havia passado, após deixar os microfones da Rádio Gaúcha, dedicou-se a vender os títulos para rádios do Interior e, também, para associações de cegos. O site dedicado às radionovelas que ele mantinha foi seu grande amor até morte, em 2019. Os CDs, fitas K7 e roteiros seguem conservados na casa de Gossen, guardando o legado do pai, um dos grandes entusiastas do formato do Estado.
Ouça um trecho de O Homem Sem Passado:
Comercial
Em Busca da Felicidade, a novela que detém o posto de ser a primeira do Brasil, foi idealizada por uma agência publicitária, a Standard, para vender creme dental. Detentora da conta da Colgate-Palmolive, a empresa tinha como objetivo entregar uma produção que alavancasse os produtos para as donas de casa da época — por isso, a radionovela foi transmitida nas manhãs de segunda, quarta e sexta-feira. Não era o horário nobre, mas pegava o público que interessava às vendas, já que os maridos saíam para trabalhar e as mulheres ficavam cuidando do lar. Era outra época.
Importando o formato das soap operas norte-americanas, as produções tinham muito do melodrama latino, principalmente dos feitos em Cuba, no México e na Argentina. Tanto que os 284 capítulos de Em Busca da Felicidade têm texto original do cubano Leandro Blanco, com adaptação do brasileiro Gilberto Martins.
O sucesso fez encher os olhos da Rádio Nacional e não demorou para que novas produções do gênero fossem criadas na emissora, preenchendo outros horários. Em 1945, havia nada menos do que 14 capítulos diários de radionovelas na programação, variando entre 28 minutos e meia hora – ou seja, cerca de sete das 24 horas eram dedicadas aos títulos melodramáticos.
— Essas novelas, geralmente, eram muito conservadoras. A gente tem que entender a sociedade da época, em que a mulher, quando trabalhava, era pobre, operária. Não havia divórcio. Havia conservadorismo, racismo. Gays? Não existiam nessa sociedade. Se o personagem saísse do que era socialmente aceito, seria punido. Se a mulher tivesse uma relação sexual fora do casamento, seria punida. Ela morreria, se arrependeria ou viraria freira — comenta Ferraretto.
Com a TV, os patrocinadores decidiram que valia mais a pena investir no audiovisual, mostrando seus produtos e não apenas falando deles. Assim, as radionovelas foram perdendo o espaço e as rádios, adotando um novo perfil. Isso só foi mudar a partir de um novo contexto, no século 21, com a popularização da internet, dos serviços de streaming e de novos modelos de ficção radiofônica que não são necessariamente irradiados pelas ondas hertzianas.