Por Clarissa Ferreira
Musicista, doutora em Etnomusicologia, autora de "Gauchismo Líquido" (2021)
A trajetória de Rolando Boldrin como escritor, ator, compositor e apresentador tornou-o uma das principais figuras defensoras da cultura popular brasileira. Tal circunstância confirma como os indivíduos são produtores da cultura e de tradições. Boldrin atuou como mediador da arte do povo brasileiro a partir de dois importantes meios de comunicação de massa da nossa sociedade: a televisão, em uma fase de ascensão, e a história oral, a partir da contação de causos onde se aprende, se ensina, se comunica, se expressa e se brinca, características tão genuínas da brasilidade.
Para entendermos o legado de Rolando Boldrin é necessário compreender o Brasil como país colonizado, que vem há décadas buscando saber quem é, e termos em mente que vivemos um capitalismo cultural, em que o sentido e os bens simbólicos estão em constante recriação por inúmeras motivações, sendo uma delas o lucro. Discutir e compreender a complexidade das funções artísticas tem sido um tema cada vez mais distante da sociedade contemporânea embebida em produções voltadas ao mercado e ao entretenimento. Qualquer temática que tente conversar sobre o tema buscando entender o fenômeno cultural contemporâneo com uma visão crítica soa como elitista, o que é reflexo de um passado colonial que impôs verticalmente o que seria considerado “boa música” e “alta cultura”.
Mas há fatos que precisam ser ditos, e Boldrin comunicava. É dele uma fala que diz: “Música sertaneja não existe, foi inventada. Como o termo caipira tinha um significado pejorativo para muitos, então criou-se um novo termo. A música caipira é a música do caboclo, purinha, sem influência nenhuma. Essa música sertaneja de alto consumo eu não considero música brasileira porque é produto de importação. (…) Então rotularam e venderam esse produto como sertanejo, como se fosse uma coisa regionalista, lá da roça, e isso é mentira. É música súper influenciada por vários países, e rotularam de sertanejo para vender discos e ficarem ricos”.
A indústria fonográfica compreendeu como a música é capaz de constituir identidades coletivas, e o agronegócio capitaneou os novos movimentos desse gênero musical, buscando representar uma “modernização do campo” a partir da confluência de tradições musicais distintas. A busca por reconstruir uma identidade rural a partir da ótica dos patrões dialoga muito com a música campeira contemporânea do Rio Grande do Sul, especialmente em seus discursos de legitimação e fronteiras simbólicas demarcadas.
Em entrevistas, é contado pelo próprio Rolando Boldrin como não permitia que artistas usassem “chapéu de caubói” em seu programa. É interessante observar quais os valores eram evidenciados em suas mediações por tantas décadas. Valores de simplicidade, de contemplação, em metáforas que unem seres humanos e animais em uma mesma vivência e em meio a poéticas sobre o campo, sobre a vida cotidiana.
Boldrin traz um espelho e direciona em frente ao rosto do Sr. Brasil, de forma quase terapêutica: se veja, se aceite! Escute suas vozes e seus jeitos de expressar, que são tão seus. Seu trabalho nos mostra nossa própria casa de uma forma que não precisa de teorias científicas para argumentar a beleza de cantar sua aldeia, mas sim como um conto que instiga no trejeito das palavras em línguas ancestrais e novas que surgem quando aceitamos os sons que saem de nós, nossas heranças auditivas, gestuais, que trazem visões de mundo e que criam realidade tecendo o presente com essas linhas do passado.
Em séculos de domínio estético político cultural estrangeiro, ainda falta um tanto para nosso país se (re)conhecer, se ver, se ouvir. Mas, com a curadoria de Boldrin, temos um caminho para o interior, para o Brasil profundo. Fica para nós a inspiração ao ocuparmos espaços de construção dessas narrativas e expandirmos cada vez mais esses lugares, onde ouviremos os aboios dos cantos da diversidade dos povos que carregam em seus corpos eras e que aqui, neste chão, renascem com suas memórias e pertencimentos.
Nas periferias, ao redor do foco, é onde se pode enxergar com maior nitidez o que o excesso de luz cega. Os sotaques abundantes que de lá ressoam realçam as fontes de onde brotam as essências, e assim como Boldrin quero seguir bebendo dessas nascentes.