Disponível na Netflix, o show de stand-up Ultimato marca uma nova fase na carreira de um dos grandes nomes nacionais do gênero de comédia em que o humorista sobe ao palco sem caracterização, apenas com um microfone. O espetáculo de uma hora, lançado na plataforma de streaming em setembro como parte de um pacote internacional de humor, marca o retorno do gaúcho aos palcos antes da mudança para Los Angeles, nos Estados Unidos, onde vive atualmente, como um misto de comediante estrangeiro iniciante e embaixador do stand-up brasileiro em Hollywood. Na conversa a seguir, realizada por telefone, o gaúcho de 42 anos fala sobre TV, internet, redes sociais, sucesso, fracasso e patrulha.
Antes de Ultimato, fazia algum tempo que você não se dedicava a escrever piadas para um show de stand-up. Por que voltou?
Estou botando no ar algo que foi gravado há um bom tempo. Quando gravei essas coisas todas, não estava ainda na função dos Estados Unidos (o humorista se mudou para Los Angeles no final de 2017). Fazia muito tempo que eu não me focava única e exclusivamente no stand-up, porque fiz muita coisa nos últimos anos: três séries (Chamado Central e Eu, Ela e um Milhão de Seguidores, no Multishow, além de A Vida de Rafinha Bastos, série cancelada pela FX) quatro filmes (Copa de Elite, de 2014, Superpai, de 2015, e Mais Forte que o Mundo, de 2016), produzi um filme (Internet: O Filme, longa-metragem no qual também atua), fiz programa de TV (o mais recente é Tá Rindo do Quê?, em 2016), talk-show (mantém o programa de entrevistas 8 Minutos, em seu canal no YouTube). Entre 2017 e este ano, comecei a pensar nisso. Assinei com a Netflix o projeto de fazer um show e recomecei a trabalhar a minha ideia do stand-up.
Ter ficado um tempo afastado fez com que você se sentisse enferrujado na hora de escrever? E a recepção do público, mudou?
Eu não sinto que se tornou mais difícil escrever com o passar do tempo. A questão é que mudou muito o meu status, hoje eu sou um cara muito conhecido, as pessoas sabem um pouco da minha história, então quando brinco com um processo judicial que tomei, as pessoas já têm referência do que aconteceu. Elas sabem. Tenho uma história de vida que posso brincar. Pessoalmente, mudei muito: casei, passei por um divórcio, voltei a namorar, tenho um filho. As coisas mudaram muito na minha vida, o que me dá muito material para comédia, mas, ao mesmo tempo, é um desafio de transformar tudo em humor. O que eu senti que tinha enferrujado um pouco é o processo de transformar a minha realidade em piada. Isso é um trabalho de carpinteiro, bem detalhista, quase matemático para fazer funcionar. A questão é focar em algo – e algo que eu sei fazer.
Você vem de um tempo em que o stand-up estava começando no Brasil. Hoje, já é algo popular, incluindo maior cobertura. A patrulha também aumenta. Isso incomoda o humorista?
Não é meu papel pensar nisso. Não tenho nada a ver com isso. Analisar a comédia, eu faço porque me perguntam. Mas meu papel quando subo no palco é fazer as pessoas rirem da maneira que eu achar mais legal. Tem piada que resolvo não fazer, mas não por achar que é errada ou preconceituosa, mas porque não acho engraçada. Às vezes, até o público acha engraçado e eu não acho, então não faço. Meu nível de exigência aumentou muito com o passar do tempo.
Você fez uma série no YouTube mostrando toda a preparação para Ultimato. Em um dos episódios, Diogo Portugal (humorista paranaense que começou junto com Rafinha) comenta que a maioria dos comediantes que iniciaram em stand-up tomaram outros rumos: viraram empresários, apresentadores de TV, atores. Por que isso aconteceu?
O dinheiro não me move e acho que não é o principal combustível da maioria. Houve certas oportunidades que apareceram para nós e que não dava para desperdiçar. Todo mundo adora fazer stand-up, todo mundo estava apaixonado por aquilo, mas daqui a pouco nos chamaram para fazer um programa gigantesco na Band e tudo mais (refere-se ao CQC). A gente precisava disso? Não, não precisava. Eu fazia temporada lotada em São Paulo, Curitiba, fazia show para mil pessoas em Maceió, não precisava daquilo. Mas, ao mesmo tempo, era uma oportunidade do c*. O que acontece é que tem armadilhas nesse meio do caminho, que é perder o frescor. Uma armadilha que nunca me deixei cair é me ver através dos olhos do público. “O que o público quer de mim? Ele quer que eu seja um apresentador de TV, mais politicamente correto? Ou ele quer que eu fale absurdos, porque é isso que ele gosta?” Se você não se conhece, não sabe quem você é, você fica muito perdido nessa posição. Isso aconteceu com muitos colegas. Tem que ter respeito com o público, mas não pode ser escravo da repercussão das coisas que você escreve. Aí, você mata a sua criatividade e a sua personalidade.
Minha mudança para os EUA tem a ver com tentar vencer onde os caras são grandes. O cara, quando joga basquete, quer jogar na NBA. Hoje, eu jogo na NBA. Estou longe do All-Star Game, mas estou ali, fazendo minhas cestas.
Em 2011, o jornal The New York Times chegou a considerá-lo a personalidade mais influente do Twitter. De que forma o humorista, que lida com temas como fracasso, trabalha com o sucesso?
A fama e o sucesso são muito legais. Não dá para desconsiderar isso. É muito legal você sair na rua e alguém falar “gosto muito do seu trabalho”. Imagina você, jornalista, sair na rua e alguém te parar: “muito legal o artigo que você escreveu”, “que bacana a página que eu li”, “continua sendo assim, a minha família te adora”. Eu estava há alguns dias no McDonald’s com o meu filho e um cara me parou: “Cara, a minha esposa faleceu na semana passada, mas eu só queria te agradecer, porque a gente deu muita risada a vida inteira com as tuas coisas”. Essas coisas naturalmente te tocam, tocam na tua vaidade e te fazem se sentir bem. Não vejo problema nisso. A outra questão é você achar que é intocável por ser uma pessoa conhecida ou admirada. Essa é a bobagem do negócio. Até hoje, não teve nenhuma piada que fizeram comigo que tenha me ofendido. Se brinco com o outro e ofendo o outro, sou o último que tenho que estar irritadinho por causa de uma brincadeira feita comigo.
Você saiu de Porto Alegre, morou em São Paulo e agora se mudou para Los Angeles, três cidades de tamanhos diferentes. Existe alguma diferença de mentalidade no seu trabalho?
Mesma coisa. (Pensa por alguns segundos.) Não chega a ser exatamente a mesma coisa, porque existem vários processos pelos quais a gente está passando no Brasil e pelos quais os americanos já passaram há muitos anos. Essa coisa de, por exemplo, eu ter que pagar uma grana e ir na Justiça por causa de uma piada. Ser execrado publicamente. O Lenny Bruce (comediante norte-americano que foi condenado por obscenidade em 1964 e, ao fim da carreira, subia ao palco apenas para ler o texto dos processos por que era acusado) já havia passado por isso em 1950, 1960. Os caras já passaram por esses momentos, mas eles também têm as chatices deles, os melindres deles. Tem certas piadas que faço no Brasil, traduzi para lá e ficou um peso insuportável. Está todo mundo vivendo esse momento um pouco policiador, cerceador da comunicação. A diferença é que lá o comediante já é entendido como esse bobo que fala o que pensa. Aqui, ainda se leva muito a sério o que o comediante tem a dizer. Ainda tem um processo a acontecer.
Isso teve a ver com a sua mudança para os EUA?
Não. Minha mudança tem a ver com tentar vencer onde os caras são grandes. O cara, quando joga basquete, quer jogar na NBA. Hoje, eu jogo na NBA. Estou longe de ser o melhor, de jogar no All-Star Game, mas estou ali, fazendo minhas cestas, aprendendo a cada dia. Tenho certeza de que algo legal vai acontecer. Pode demorar um tempo, mas estou disposto a apostar. É um desafio para mim. Minha ideia é ficar nos EUA durante um tempo, não sei qual é o prazo, nem para onde vai, o que vai acontecer, mas é isso.
Como um nativo da internet, que começou sua carreira quando a web brasileira dava seus primeiros passos, de que modo você vê esse ambiente hoje em dia?
Não me decepciona. O caos tem dessas questões. É um ambiente muito caótico, o que torna ele muito interessante. A gente tem muita liberdade de falar, de expressar, mas da mesma forma a internet também faz parte do mundo. As regras que a gente segue em sociedade são respeitadas ali dentro da mesma forma. A gente está vivendo um momento meio chato, e isso se reflete em todos os ambientes, inclusive no virtual. Hoje, temos a internet um pouco mais organizada, muito em cima de rede social. Antigamente você tinha seu blog. A gente passava 90% do tempo visitando site, vendo coisa. Hoje, é rede social, então mudou um pouco. Mas é interessante, o processo em si é muito interessante, é um reflexo do nosso convívio em sociedade. Não é que o ambiente tenha mudado, a gente mudou e ele acompanha. Aquilo é só uma plataforma tecnológica, a gente que está fazendo aquilo ser daquela forma. Se aquilo está chato, é porque o mundo está chato. Atrás daqueles numerozinhos, são pessoas.
Meu papel quando subo no palco é fazer as pessoas rirem da maneira que eu achar mais legal. Tem piada que resolvo não fazer, mas não por achar que é errada ou preconceituosa, mas porque não acho engraçada.
Você é um entusiasta da internet. Convive com novos nomes da rede, faz parceria com a Netflix, lança no YouTube.
Eu gosto. Daqui a pouco, nem vai mais existir a palavra “internet”. Não tem mais o virtual e o não virtual. A gente vive isso o tempo inteiro. Pela internet, o cara fecha o portão de casa, liga a luz. Essa integração está acabando com essa noção de “feito para a internet”, “feito para a TV”. Eu fazia um talk-show do qual algumas entrevistas bombavam no YouTube, eu fazia conteúdo para o YouTube que depois era transmitido pela TV, então o que é uma coisa e o que é outra vai morrer logo, logo. O que importa é que história você está contando e o que você está dizendo, isso é muito mais importante do que a plataforma.
E você gosta da galera que está surgindo?
Adoro, adoro todo mundo. Porque tem uma liberdade que eles se dão. Não tem ninguém cuidando daquele conteúdo, são eles que produzem, conhecem seu público, atendem ou não a demanda deles. É uma escolha muito individual. E é nesse ambiente de escolhas individuais que nascem os projetos mais criativos.
Nesse sentido, é um trabalho bem diferente daquele feito na TV.
Muito. Ainda mais em um programa diário, que você tem de preencher... O Porta dos Fundos faz duas esquetes semanais de dois minutos e meio. Um talk-show tem uma hora e meia por dia. Para você ter conteúdo para isso, nem sempre vai fazer exatamente o que você quer. Não tem como estar sempre na ponta dos cascos.
Os fatos da sua vida viram temas para suas piadas, tanto o sucesso quanto a dificuldade, como o divórcio recente. Existe algum momento que seja mais propício para piada?
Não acredito que a arte seja construída na base do sofrimento. Ver o humor na desgraça é a maneira que você tem de lidar com questões complicadas da sua vida. Vou confessar que as coisas duras da minha vida deram excelentes piadas, não tenha dúvida. Mas também tive textos construídos em cima do nada. A questão é ver o mundo de maneira bem humorada, seja no momento ruim ou no momento bom.
Ter um filho mudou seu trabalho?
Não. Muda como ser humano, mas não como humorista.
Porque, depois daquela piada com a Wanessa Camargo (Rafinha disse que “comeria ela e o bebê”), o Marco Luque disse que entendia quem se sentia ofendido.
O Marco Luque riu para c* quando a piada foi feita. Ele não acredita em nada disso, mas ele iria se f* com a propaganda da Claro, por isso ele não gostou. O objetivo é financeiro, ele faz isso para defender o bolso. Eu não mudei, a única coisa que mudou o fato de eu ser pai é que tenho algo muito legal do meu lado, que é o meu filho, um cara muito bacana, que me diverte, a gente vive muita coisa legal juntos e é isso. Eu estaria mentindo se dissesse que a minha vida mudou para caramba.
Após essa piada, a imprensa passou a assistir a seus shows e reproduzir suas piadas.
Eu não estava nem aí. Nunca foi um problema, porque é o meu trabalho. Eu tinha duas opções: ou parava de trabalhar ou me expunha. Preferi continuar trabalhando, e agora estou fazendo show na Netflix.
O que você acha dessa patrulha?
Não penso muito se vai acabar ou não. Algumas coisas não têm como mudar. Ninguém vai deixar de falar o que pensa. Vamos começar a nos habituar com diferentes pensamentos, raciocínios. Os problemas que eu tive há sete anos, o pessoal não está tendo tanto agora. A história do Cocielo (o youtuber perdeu patrocínios e foi processado por uma piada considerada racista publicada no Twitter) durou uma semana e, depois, ninguém mais falava nada. Os ciclos são mais rápidos, comigo as coisas duraram mais, rendeu, o processo dava sempre notícia nova. Atualmente, tem tanta coisa que vai mudando. Acho que as pessoas não vão deixar de encher o saco, o que acho é que as pessoas vão deixar de levar as coisas tão a sério e tão a fundo.
E sobre política?
É um assunto que não me interessa muito.
Sim, mas humoristas como Danilo Gentili e Gregório Duvivier assumiram isso para os seus trabalhos.
Não vou criticar a posição política dos caras, cada um faz o que quiser da vida. Posso discordar de algumas coisas, não concordo muito com o que eles falam, mas acho que a questão não é essa. Não perco tempo analisando se é certo ou errado. São caras que tiveram coragem de se posicionar sobre algo em que eles acreditavam. Nunca fiz isso porque nunca foi uma batalha da minha vida, estou cagando. Sou muito desiludido. “Mas por que você não faz nada?” Não vou fazer, quero viver minha vida. Vendo eles, penso: é algo em que você acredita e teve coragem de ir a público se expor? Mérito total para você. O Danilo fala um monte de coisa, as pessoas dizem “que absurdo”, mas quantos apresentadores têm milhões de crenças políticas e não se posicionam por pura covardia? Não faço porque não é do meu interesse, senão faria. Falar mal do Bolsonaro? É chutar cachorro morto. Estou morando fora, não faz parte do meu dia a dia. Não é para me blindar, é que não me interessa.
Em algum momento, falar de política causou problema para você?
Já. Caguei. Não faz diferença. A gente acaba dando valor muito grande para esse ambiente virtual porque desagradou a 250 haters. É muito pouco. É pequeno demais isso, se você parar para pensar. E a gente vive um tempo de histeria, que é ruim para todo mundo, e a imprensa se vale disso. Acho que a imprensa perde muita credibilidade por transformar tudo num campo de batalha. A imprensa alimenta isso. Outro dia vi uma notícia sobre pedofilia no MasterChef, porque várias pessoas disseram que uma criança era gostosa (em 2015, a participante Valentina, da edição infantil, foi alvo de comentários sexuais nas redes sociais). Fui ver e eram seis tweets de uns tiozões, cada um com 12 seguidores. O cara basicamente fez uma piada para os amigos do churrasco. Provavelmente ninguém ali é pedófilo, mas você levanta um escândalo de pedofilia num ambiente em que isso não existe, que foi criado, e cria uma histeria que te dá visualizações. Você só coloca lenha em uma fogueira que nem estava acesa.