Aos 83 anos, Carlos Nejar é o patrono da 68ª Feira do Livro de Porto Alegre, que será realizada da sexta-feira da semana que vem (28/10) até 15/11, na Praça da Alfândega. Poeta, ficcionista, ensaísta, tradutor e advogado, Nejar tem uma carreira prolífica na escrita em suas mais de seis décadas de trajetória. Desde 1989, ocupa a cadeira número 4 da Academia Brasileira de Letras (ABL). Lançou obras de destaque como Livro de Silbion, Danações, O Poço do Calabouço, Riopampa – O Moinho das Tribulações, História da Literatura Brasileira, entre outros trabalhos de poesia, romance, ensaio, contos ou literatura infantojuvenil. O próprio escritor já perdeu as contas de quantas publicações acumula – estima-se que sejam mais de 80. Além da escrita, também exerceu a advocacia e chegou a ser procurador de Justiça do Rio Grande do Sul. Em conversa com GZH, fala sobre a poesia nos dias de hoje, sobre a vida entre o Estado e o Rio de Janeiro, onde mora, e sobre ser imortal da ABL.
O que significa ter sido escolhido patrono da Feira do Livro de Porto Alegre?
Foi emocionante. Eu já não esperava mais. E as coisas que não se esperam são as mais belas e felizes. Para mim, essa escolha teve muitos significados. O primeiro é ser lembrado no Rio Grande do Sul. Eu sei o quanto a Feira do Livro é importante na minha terra. Outro aspecto é ter recebido o bastão de meu amado filho (Fabrício Carpinejar). Isso é muito especial. Terceiro: ser patrono no aniversário de 250 anos da minha cidade natal. Então, o encontro não é apenas com o Rio Grande, mas com Porto Alegre. E por que não, também, com a minha infância.
O bastão foi passado de filho para pai. Quando Fabrício Carpinejar foi escolhido patrono, em 2021, o que o senhor sentiu?
Fiquei muito orgulhoso. Sei do grande valor de escritor e amado filho que é Fabrício. Acho que o Estado fez justiça com ele. Me sinto muito orgulhoso quando meus filhos são homenageados, me sinto um pouco homenageado junto. Agora estou duplamente feliz.
O que o senhor mais admira no trabalho de seu filho?
O Brasil o reconhece como um grande poeta e um espantoso cronista. Ele é muito inventivo. Também tem uma enorme carga de erudição e de lucidez. Sou suspeito para comentar, mas não deixo de falar, mesmo assim.
Conversei com o Fabrício, e ele me contou um pouco sobre o seu método criativo. Disse: “O pai escreve em pequenos cadernos para carregar no bolso”. Ainda acrescentou que “para ele, a inspiração da escrita pode surgir a qualquer momento”. Isso procede? Como é seu processo de escrita?
Escrevo tudo à mão. Tanto a poesia como a ficção e também a crítica. Preciso sentir o pulsar do vento na escrita. Sentir a palavra viva. No computador, não tenho como sentir isso. Depois, passo para o computador. Ao fazer isso, já realizo uma autocrítica com rigor. A escrita exige rigor. Não gosto do lugar comum. Tento deixar que as palavras me inventem.
Como as palavras aparecem para o poeta?
As palavras aparecem sem que eu veja. Vêm da imaginação, como se fossem um rio que descesse em cima de mim, e eu fosse a margem. As margens nós vamos inventando.
Como o senhor se descobriu poeta? Qual foi o momento em que percebeu que a poesia seria um destino-manifesto em sua vida?
Foi interessante. Eu tinha lá meus 14 anos. Havia uma vizinha, que talvez possa até nem saber, mas foi ela quem me inspirou como poeta pela primeira vez. Fiz um acróstico com o nome dela. Percebi que tudo funcionava. Não precisei estudar dicionário de rimas para elaborá-las. Não inventei o ritmo, o ritmo me inventou. Os poetas nascem. Eu não escolhi ser poeta. A poesia que me escolheu.
Durante um período de sua trajetória, o senhor foi procurador de Justiça e também advogou, mas, em paralelo, exercia a escrita. Como foi deixar as atividades ligadas à área jurídica e focar na literatura?
No Ministério Público do Estado, tive um momento maravilhoso na minha vida. Sinto saudades da minha experiência de cavaleiro andante da Justiça. Se pudesse, eu continuava trabalhando como procurador. Depois advoguei, me aposentei, mas nunca me aposentei da escrita e da criação. A verdade é que sempre estou escrevendo, pesquisando. Escrever é uma felicidade. Aprendi que as palavras também me amam. Acho que foi a longa convivência com elas que fez com que me amassem mais. Um amor recíproco. Nada é sozinho, tudo tem um sentido coletivo. O poeta é um ser coletivo. Meu nome como procurador era Luís Carlos Verzoni Nejar. Um nome tão longo que eu não escolheria, não. Meu nome como poeta é Nejar, ou Carlos Nejar. Eu inventei meu nome, assim como Fabrício inventou o dele. Eu separava o procurador e dizia que o poeta era meu primo ou irmão, pois começaram a aparecer algumas reportagens sobre o tal Carlos Nejar. Eu, como procurador, não queria que usassem poemas meus nos júris. Eu separava as duas personas. Mas, com o tempo, não adiantou mais. O tal Carlos Nejar tinha o mesmo rosto, não podia ser, por exemplo, um irmão.
A criação tem de ser maior do que nós. Se for menor, vai ficar dentro do meu limite. Se for maior, pode atingir o limite do eterno, do permanente. Nós somos pequenos. A criação é imensa. É o universo.
Gêmeos, quem sabe.
Pois é (risos). O poeta, então, começou a tomar conta da minha vida. Ninguém mais me conhece como Luís Carlos Verzoni Nejar. Quando me mandam diploma ou honraria, às vezes vem grafado o nome completo, e eu estranho. Parece que estão falando de outra pessoa, de um personagem.
A persona poeta se apossou do senhor?
A poesia tem o poder de tomar conta de tudo. Vai tomando conta da nossa vida. Como Deus toma conta da nossa vida. Mas Deus é maior ainda. A poesia tenta buscar a origem de Deus. E o que nós sabemos? Deus é tão imenso que a gente se perde. É o pai da eternidade.
A religiosidade é recorrente em seus textos. Deus é bastante presente na sua escrita.
Muito! É minha experiência viva. Eu falo do que sei. Conheci esse Deus vivo na minha vida e Ele me iluminou. Tem me ajudado, tem me sustentado. Inclusive, a Justiça que recebo é no tempo dele. O que eu posso esperar? O tempo avança, as coisas avançam. Acredito em Deus como meu maior amigo. Aliás, até pedi isso para a minha epígrafe: “Carlos Nejar, poeta e amigo de Deus”. É a minha maior honra.
Em um mundo com tanto caos e desgraças, que papel acaba tendo a poesia?
A poesia vai existir enquanto existir o espírito humano. É uma erosão do espírito. É uma explosão da realidade. Não podemos fugir da realidade, assim como não fugimos do sonho. Enquanto houver liberdade, a poesia vai continuar. Mesmo que não houvesse liberdade, a poesia se manteria, então, nos esconderijos. Estaria nas catacumbas. Mas permaneceria viva. Não se mata o espírito humano. Nada mata a criação. Só mesmo aquele que cria pode fazer isso. Independentemente disso, nunca a criação vai se apagar. Continuará sempre enquanto existir palavra, enquanto existir sopro e enquanto o espírito estiver presente e avivando a palavra. Eu creio na eternidade da escrita porque creio na eternidade do espírito.
O que é necessário para ser um poeta, para ter essa percepção e esse amor para com as palavras?
Nós somos a palavra. E a palavra é a primeira manhã do mundo. Quando a gente escreve, é como se a gente redescobrisse a criação.
E quando as palavras não aparecem, como o senhor faz?
Mas elas são fiéis! Nós podemos falhar, mas a palavra é fiel. É impressionante isso. Às vezes acho que um poema terminou, quando de repente ele me aparece em sonho.
Em sonho?
Sim. Lembro que O Livro de Silbion, de 1963, foi publicado pela primeira vez em uma edição pobre. Na segunda edição, tentei fazer grandes mudanças. E aquilo que cortei me veio de volta em sonho. Aí eu percebi que tinha de obedecer ao livro original. Não tinha que mudar. As coisas se impõem a nós. Eu nunca sei o que vou escrever. Sei que vou escrever e, pela fé, eu escrevo. Para mim, é o desconhecido sempre. Nunca raciocinei ou previ a criação de um romance. De repente, me vem o ânimo de escrever um romance e começa a vir o texto na imaginação. Eu escrevo enquanto existir o texto. Como se fosse uma música. Quando terminar, terminou. Tem um livro em que estou trabalhando há mais de 40 anos, que é Os Viventes. Estou preparando a quarta edição, são mais de mil viventes. É uma verdadeira comédia humana em miniatura, como disse Fabrício uma vez. A cada nova edição, eu invento novos personagens. Não importa aonde vou chegar, importa que eu tenha que criar. Que o leitor depois descubra. Se eu não consigo encantar as palavras, porque são elas que me encantam, o que posso fazer? Eu não explico a criação, a criação tem que se explicar sozinha.
A poesia vai existir enquanto existir o espírito humano. creio na eternidade da escrita porque creio na eternidade do espírito.
O jeito, portanto, é ter paciência com as palavras.
E ter paciência com a gente mesmo. E, sobretudo, acreditar. A fé não é apenas a grande experiência da crença ou da obra de Deus, é também a experiência da criação. O artista tem de acreditar. Precisa acreditar tanto no que vai fazer, que a obra que nasce também vai acreditar nele. O texto tem de acreditar em nós também, não é?
Então, encarar o branco da tela ou do papel já é escrever?
Tudo o que nós vivemos fica numa espécie de depósito da memória. Tenho uma experiência curiosa. Eu era procurador público e levava livro no meio de um júri. Aprendi a separar as coisas. Sou capaz de assistir à televisão, ler e escrever. Porque a poesia vai criando em nós novos sentidos. Agora, quando a criação não nasce, é porque não tem que nascer. Quando ela tem que nascer, ela se impõe. Às vezes nós criamos espaços entre o trabalho que nós fazemos e a nossa criação. Por exemplo, a criação me vem até nos sonhos. Tem soneto que escrevi em sonho e, depois, pela manhã, me veio inteiro, com rimas e tudo. Muitas vezes, na madrugada, eu acendo uma lanterna para escrever. O que escrevo nessa circunstância não precisa ser trabalhado detalhadamente. Isso eu deixo para o dia seguinte. Se há uma palavra fora de lugar, corrijo depois. O que tem de vir, nasce. Aparece, flui. Não adianta. Se estou num trabalho, e o poema me nasce, eu escrevo e vou adiante. Quando é um romance, minha imaginação fica a serviço da palavra. Às vezes o excesso de trabalho põe nossa mente nas obrigações, assim não há criação. Às vezes não é por conta do trabalho, mas sim por causa de nós mesmos. Nós inventamos desculpas. Gosto de pensar também que a literatura vai sempre se refazendo. Sempre há uma nova geração. As gerações são como navios.
Por que como navios?
Vão parando nos portos. O importante é ver além das gerações, os que ficam e os que não ficam. O livro é que diz isso.
Nesse contexto, o senhor se encaixa onde?
Acho que estou entre os que vão sobreviver. A palavra é mais forte do que eu. Se o que eu escrever não for maior do que eu, vai ser muito pequeno. A criação tem de ser maior do que nós. Se for menor, vai ficar dentro do meu limite. Se for maior, pode atingir o limite do eterno, do permanente. Mesmo que eu não veja. Não preciso ver. Deus vê a minha palavra. Por que temos de controlar tudo? Temos de deixar que a palavra nos controle, e a revelação nos veja. Nós somos pequenos. A criação é imensa. É o universo.
O senhor também trabalhou como professor, lecionando Português e Literatura em escolas de diversas localidades do Rio Grande do Sul. Independentemente da área, o senhor circulou bastante pelo território gaúcho. De que maneira viver o interior foi importante na sua formação?
Isso me humanizou. Ainda sou um homem do interior do Rio Grande do Sul. Fiquei muito ligado à gente do Rio Grande. Um povo muito simples, cavalheiro e generoso. Às vezes desconfiado, mas, quando amigo, um amigo sincero.
O senhor já comentou que uma de suas lembranças favoritas da Feira do Livro era encontrar Mario Quintana no evento. Como era a sua relação com o poeta?
Ele era meu amigo. Dedicou um poema a mim. E eu dediquei um poema ao Mario no livro Os Viventes. Eu o encontrava muito no Correio do Povo (Quintana foi colunista do jornal). E pelo interior, pelo Pampa, com ele sempre tomando uma taça de café, a paixão dele. Na Feira do Livro, quantas vezes embaixo dos jacarandás estava o poeta... É um poeta mágico.
O senhor o procurou antes de se candidatar à ABL, não?
Isso quero deixar claro, até para que não entre aí uma nuvem de inveja e ressentimento. Tenho provação de que, antes de me candidatar, eu o procurei. Perguntei o seguinte: “Mario, se tu queres te candidatar, eu me retiro. Tu tens prioridade”. Ele respondeu: “Não, Nejar, me candidatei três vezes. Eu tenho vergonha na cara. Não quero mais me candidatar”. Aí me candidatei. Quando eu já estava praticamente certo para ser escolhido, de repente, inventaram coisas para me desestabilizar. E quem inventou foi um grande amigo meu, Antônio Houaiss, homem que escreveu tanto sobre a minha obra. Às vezes as pessoas nos amam e nos admiram quando estão de cima para baixo, não no mesmo nível. “Nejar, por que tu não cedes o lugar para Mario Quintana?”, me indagou. Quando eu já tinha trabalhado tanto! “Olha, Antônio, tu podes ser até uma águia, e eu, andar em árvores, mas procurei o Mario antes da eleição e ofereci isso a ele. Agora, se ele quiser entrar, vai lutar comigo”. É que nem a espada de Toledo: “Não me embainhe sem razão. E não me desembainhe sem honra”. Não entrego algo pelo que trabalhei. Era tudo conversa fiada do Houaiss. Sou grato a ele, sempre escreveu tanto sobre mim, mas isso não esqueço. Inclusive, não me apoiou na entrada da ABL. Quando fui eleito, Mario Quintana me convidou para visitá-lo no hotel onde ele morava. Me abraçou. Foi de uma honradez! Ele era muito íntegro, além de grande poeta.
Houaiss e o senhor conversaram sobre isso?
Continuamos grandes amigos. Depois ele passou a me considerar mais ainda. Previu que eu seria até presidente da Academia, como fui. Mas é curioso. Fez tudo o que podia.
No que mudou a sua vida ser imortal da ABL?
Olha, mudou nada (risos). Eu era um poeta já conhecido quando entrei. Já tinha publicado vários livros. Para mim, vale pelo convívio com grandes figuras e personalidades, como João Cabral de Melo Neto e Rachel de Queiroz, que foi como uma mãe para mim. O convívio, para mim, é uma coisa maravilhosa. Vou lá às quintas e encontro os companheiros. Eu prefiro tomar café do que chá. Entre o chá e a imortalidade, eu prefiro café.
A Feira
- A 68ª edição da Feira do Livro de Porto Alegre terá funcionamento das 10h às 20h (Área Infantil e Juvenil) e das 12h30min às 20h (Área Geral), diariamente, entre a próxima sexta-feira e o dia 15 de novembro, na Praça da Alfândega e em trechos da Rua dos Andradas, da Travessa Sepúlveda e da Rua Cassiano Nascimento, no Centro Histórico, em Porto Alegre.
- A primeira edição totalmente presencial do tradicional evento após a pandemia de covid-19 tem como tema “Uma Boa Festa Tem História”, em alusão ao aniversário de 250 anos da capital gaúcha. Mais de 150 escritores têm presença confirmada, entre eles o norueguês Geir Gulliksen (autor de História de um Casamento, 2022) e a best-seller argentina Florencia Bonelli (de O Feitiço da Água, 2022).
- A programação, que inclui debates, oficinas, contação de histórias e sessões de autógrafos, é gratuita. Há atividades que requerem inscrição prévia. Confira em feiradolivro-poa.com.br e acompanhe a cobertura de GZH em gzh.rs/FeiraLivro.