Um dos principais autores em língua portuguesa palestra nesta quarta-feira (5/10) sobre educação, via videoconferência, na Mostra Sesi Com@Ciência, em Porto Alegre. O moçambicano Mia Couto, pseudônimo de Antônio Emílio Leite, é hoje o autor de seu país mais traduzido e divulgado no Exterior. Filho de imigrantes portugueses, ele publicou seus primeiros escritos (poemas) no jornal Notícias da Beira, aos 14 anos. Entre 1974 e 1985, atuou como jornalista – depois disso, formaria-se em Biologia. Em 1983, após publicar o livro de poesias Raiz de Orvalho, não parou de escrever – já são mais de 30 obras, entre as quais Terra Sonâmbula (1992) e A Confissão da Leoa (2012). Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, fala sobre sua obra mais recente (O Mapeador de Ausências), política, meio ambiente, Moçambique e seu amor pelo Brasil.
Você falará sobre educação na Mostra Sesi Com@Ciência. Qual a importância desse tema na formação do ser humano hoje? Como tornar a educação escolar, por exemplo, instigante em tempos de acesso à informação por diferentes meios e em tempo real?
Existe uma grande confusão entre instrução, informação e educação. O acesso à informação é hoje muito mais simples, mais acessível e no quadro daquilo que se chama “tempo real”. Essa tendência é saudável e pode ser inclusiva. Contudo, enquanto essa acessibilidade abre portas aos saberes, também abre comportas à imbecilidade, à mentira e à difusão do ódio. Deveria fazer parte da formação escolar a capacitação das crianças para interrogarem a inundação de informações majoritariamente falsas. Devia haver uma disciplina nas escolas que ensinasse a ter uma postura crítica perante as notícias. Atualmente, esse território da comunicação virtual é marcado pela ambivalência de ser o meio mais eficiente para difundir informação produtiva e positiva, mas também o canal mais eficaz para intoxicar o mundo e poluir a esperança dos mais jovens. De qualquer modo, a função mais importante da escola continua a ser o seu papel como emancipadora e criadora da paixão pela pesquisa, guardando a curiosidade que marca a nossa infância e a tendência natural de agirmos em coletividade. O motor da evolução não é a competição, como diz o darwinismo social, mas a simbiose. É o atual modelo de escola que foi fundado na ideia da rentabilidade que pode legitimar a ideia de que o progresso nasce do domínio dos chamados “vencedores” sobre os “perdedores”.
Qual é a importância da literatura nesse cenário? A literatura seria capaz de salvar?
Sozinha, a literatura não pode mudar o mundo. Mas pode sugerir que não existe isso que chamamos “o mundo”, ou seja, algo único. Existem mundos, no plural. Cada pessoa traz um mundo dentro de si, e esse mundo é único e singular, mas, ao mesmo tempo, tem sua universidade. A literatura pode apaziguar medos e angústias que hoje estão ao serviço da instabilidade.
Como ter ou manter um olhar ainda sensível diante do mundo em tempos de violência e intolerância?
A sensibilidade para com as chamadas pequenas coisas é vital para ser feliz. Essa atenção que torna o invisível algo tangível é uma fonte inesgotável de prazer. Aprendi isso com meus pais, que faziam na vida aquilo que o poeta Manoel de Barros fez na poesia: encontravam brilho no meio da poeira.
Em entrevista recente, você disse não ser “tão otimista” com relação a mudanças mais profundas no ser humano – tornando-se mais solidário, por exemplo – após a pandemia. Segue assim ou mudou de opinião?
Não sou otimista em relação a transformações de fundo. Aquilo que insistimos em chamar de “novo normal” será, em grande parte, a continuação do “velho anormal”. Iremos continuar a desvalorizar a importância da prevenção nas estratégias de saúde em nível nacional e internacional. Continuaremos a privilegiar a medicina privada, mantendo fragilizado o setor público e os sistemas nacionais de saúde. Iremos manter a marginalização da Organização Mundial de Saúde e das instituições internacionais que podiam assegurar um comando central para as próximas pandemias. Vai-se manter intacta, ou mesmo agravar-se, a chocante falta de solidariedade humana que se manifestou na distribuição da vacina, e os países ricos continuarão a virar as costas aos apelos para partilharem recursos com os mais pobres. Vai-se manter uma agenda da investigação científica baseada em interesses de lucro das grandes companhias farmacêuticas. Vamos continuar a fazer de conta que muitas das nossas escolas não deveriam ter de ser fechadas durante a pandemia porque, a rigor, nunca antes deveriam ter sido abertas. Falo daquelas escolas que não reúnem as mais básicas condições de higiene. E o mesmo se pode dizer para grande parte dos transportes públicos, dos mercados, dos ginásios, das instituições públicas. Vai-se manter a ideia de que a saúde diz respeito aos médicos, hospitais e Ministérios da Saúde. Vamos esquecer que a prestação de cuidados de saúde é uma tarefa de todos os governos, uma tarefa de toda a economia e de toda a sociedade. Em suma, nós sabemos quais lições a recolher. Mas não somos donos das respostas. Assim que surgir a próxima epidemia iremos reagir como se fosse algo de inesperado. A covid-19 poderá ser daqui a umas dezenas de anos uma lembrança tão vaga como é agora a recordação da gripe espanhola.
Não estou contra o politicamente correto. Estou contra uma certa cruzada de purificação da linguagem que reduziu a luta política a uma cosmética de superfície. Mudar as palavras, por si só, não muda a realidade.
Em 2017, quando esteve em Porto Alegre para o Fronteiras do Pensamento, você falou que o Brasil precisava confrontar o seu racismo, mas não pela via da linguagem. E demonstrou ser contrário ao “politicamente correto”. Como seria possível, então, fazer esse confrontamento contra práticas racistas?
Não estou contra o politicamente correto. Isso seria o mesmo que dizer que sou a favor do politicamente incorreto. Estou contra uma certa cruzada de purificação da linguagem que reduziu a luta política a uma cosmética de superfície. Mudar as palavras, por si só, não muda a realidade. Apesar disso, é importante questionar a linguagem que tende a sedimentar ideias e preconceitos. Por exemplo, venho de um tempo em que a palavra “humanidade” era sinônimo de “homem”. Havia cartazes revolucionários que proclamavam a “libertação do homem”, e não das “pessoas”. Eu me questionei sobre o quanto essa fórmula era preconceituosa. E mudei meu modo de nomear a humanidade e as pessoas. Mas isso não se pode confundir com a ilusão de que, apenas por mudarmos palavras, estamos purificando o mundo. A humanidade não precisa de pureza, e sim de justiça. É preciso desconfiar dos movimentos que se propõem a purificar a humanidade. Em vez de cruzadas, é preciso sugerir debates. Esses debates não podem ter donos da verdade e devem ser centrados no confronto sereno de ideias. Da forma como vêm sendo conduzidos, dividem as forças que combatem pelos mesmos objetivos, que são um mundo sem preconceito, sem discriminação e sem exclusão. Não estou contra o politicamente correto. Estou contra certos grupos que acham que podem impor aquilo que, na sua pequena bolha, seja linguisticamente correto. As forças de extrema direita usam alguns desses excessos de puritanismo linguístico para recrutar militantes e mobilizar simpatias. Lenine diz: a melhor maneira de atacar uma ideia é defendê-la de forma ridícula. Um exemplo: um dia desses estive num debate sobre escravatura. Ao meu lado estava um jovem que mediava a discussão. A par e passo, ele me interrompia para corrigir: “Já não se diz ‘escravo’”. Perguntei, surpreso: “E como se diz?”. A resposta foi: “Pessoa escravizada”. Um pouco mais à frente falei de navio negreiro e a pessoa também me avisou que o termo estava incorreto. O que aconteceu é que, em vez de trocarmos ideias, passamos a discutir palavras. Um coletivo que se oponha firmemente contra a escravatura acabou se dividindo e se digladiando por assuntos que não me pareciam centrais. Concordo que não há palavras inocentes. Mas não concordo que se tome isso como assunto fulcral. Montou-se uma espécie de polícia de costumes que concedeu a si mesma a função de vigiar a linguagem. Voltando ao debate em que participei: mudar “escravo” por “pessoa escravizada” tem sentido, porque é preciso escapar de algo visto como uma essência do outro para uma condição histórica circunstancial. Mas essa preocupação também se coloca para quase todas as outras situações históricas. Eu não deveria dizer “pobre”, e sim “pessoa empobrecida”, trocar “preso” por “pessoa aprisionada” e assim por adiante. No limite, deixaremos de escutar ideias para ficar nisso.
Estou contra certos grupos que acham que podem impor aquilo que, na sua pequena bolha, seja linguisticamente correto. As forças de extrema direita usam alguns desses excessos de puritanismo linguístico para recrutar militantes e mobilizar simpatias.
Em coluna recente em GZH, o escritor Jeferson Tenório citou um trecho do seu livro Terra Sonâmbula, dizendo que, se tivesse uma definição de “pátria”, estaria muito próxima do trecho: “Ter pátria é assim como você está a fazer agora, saber que vale a pena chorar”. Trinta anos depois do lançamento desse livro, o senhor mantém essa definição?
Ter pátria nasce do choro apenas quando esse pranto nos junta. Prefiro que essa construção de identidade coletiva nasça da alegria partilhada. Nós sentimos ter uma pátria porque vivemos com outros uma mesma história e vivemos tão intensamente que acabamos por ser esses outros.
Você costuma destacar seu amor pelo Brasil e que, inclusive, aprendeu a conhecer melhor o seu país visitando o Brasil. Como observa o Brasil atual?
Eu me apaixonei pelo Brasil e essa paixão, em um primeiro momento, não me deixou ver o lado mais obscuro da realidade brasileira. Aprendi depois a entender esses contrários sem deixar de manter o mesmo afeto, agora mais maduro, pela nação brasileira. Digamos que, com o tempo, a paixão virou amor. O Brasil atual coloca na superfície aquilo que é mais retrógrado e mais violento da sociedade brasileira. E nos lembra que é uma sociedade que nunca se libertou do seu passado colonial, autoritário, patriarcal, racista e escravagista. Em Moçambique, nós empreendemos uma revolução contra esse passado, uma ruptura mais total e mais profunda. Estamos longe de ser um paraíso, mas demos golpes bem fundos na herança colonial. Voltando ao Brasil, tenho esperança de que a extrema direita brasileira perca rapidamente o seu fôlego, porque ele não se sustenta em nenhum projeto de construção de futuro. Assenta em medos, culpas e ressentimentos. Mesmo que tenha arma, falta-lhe a alma.
Como faz para ser “o tradutor das diferenças de seu país” capaz de fazer Moçambique atravessar fronteiras por meio dos seus livros?
Aprendendo a me apagar a mim mesmo, aprendo a esquecer as minhas certezas e a deixar-me dissolver nos encontros que tenho com os outros. Moçambique é uma boa escola de diversidade: somos uma nação em que mais de 96% da população é negra, mas com mais de 30 diferentes povos, com suas culturas, línguas e religiosidades diversas. Não é possível ser moçambicano se não houver dentro de todos nós essa permanente travessia de fronteiras.
O Brasil atual coloca na superfície aquilo que é mais retrógrado e violento da sociedade brasileira. E nos lembra de que é uma sociedade que nunca se libertou de seu passado colonial, autoritário, patriarcal, racista e escravagista.
As vozes do povo estão sempre presentes nos seus livros. Há alguma inspiração vinda de outros escritores? Como é trazer a cultura popular para a sua obra?
O que vem para dentro da minha escrita vai entrando sem pedir licença. São influências de escritores, de músicos, pintores e, sobretudo, de gente anônima que cruza comigo nas ruas e me sugere espantos perante aquilo que parecia rotina. Os moçambicanos, tal como os brasileiros, são grandes produtores de histórias. A oralidade é absolutamente dominante na sociedade moçambicana: as pessoas sabem que vivem nas histórias que coletivamente vão criando. Todos os dias regresso para casa com um manancial de ideias e sugestões que alimentam a escrita. Porque as pessoas falam sem medo da fronteira do que é privado, as pessoas conversam sem preocupação de que o outro lhe seja desconhecido. E isso é uma fonte infinita de criatividade.
No seu romance O Mapeador de Ausências, lançado em 2021, há uma relação quase biográfica com a história da sua vida. Como foi revisar essa história?
Foi, sobretudo, saber que aquilo que eu tinha como memória era, quase sempre, uma invenção. A minha história só importa se nela se inscrever a história de um tempo e de um lugar, as histórias de gente anônima, se a vida só minha for trocada, a todo o momento, com as vidas dos outros.
Livrarias de rua estão cada vez mais escassas no Brasil. Como o senhor percebe o movimento do comércio de livros e o consumo de e-books? você, pessoalmente, consome e-books ou segue fiel ao papel?
Consumo de tudo, livros em papel, livros em formato digital, livros em formato de pessoa, qualquer formato. Estou aprendendo, sem muita dificuldade, a ter o mesmo gosto lendo no papel e na tela. O importante, para mim, é que o leitor se sinta à vontade para se converter numa espécie de coautor do livro.
Para além da carreira de sucesso como escritor, o senhor também é biólogo. Por isso, lhe pergunto: como tem percebido as mudanças climáticas e sua ligação particularmente com o desmatamento da Amazônia?
Deixe-me, primeiro, contestar a palavra “sucesso”. Falamos há pouco dos excessos do “politicamente correto”. Existe também o “moralmente correto”, e acho que é preciso interrogar seriamente a palavra “sucesso” num momento em que se cultuam os valores da competição acima da solidariedade. Agora, falando sobre a questão das alterações climáticas: esse assunto é demasiado sério para ser deixado nas mãos de políticos, empresas e ativistas, por mais importante que seja o papel de todos esses intervenientes. Tal como aconteceu com a pandemia da covid-19, é fundamental que as vozes dos cientistas nos guiem. E é importante aceitar que essas vozes nem sempre são unânimes. É preciso não dar campo aos negacionistas, e isso implica uma ação sólida, fundamentada em provas que já existem, mas colocando em cima da mesa os cenários todos, e não apenas o cenário mais dramático. É vital darmos as notícias boas, que criam esperança e vontade de fazer coisas. O meu receio é que a prevalência de um discurso apocalíptico nos desencoraje e alimente uma ideia de impotência que depois serve de terreno fértil para o surgimento dos populistas e dos “salvadores” do mundo. Se atuarmos pela via do medo e teimarmos em encenar o apocalipse, a resposta só poderá vir dos que se apresentam como messias. E é preciso dizer também que não fomos nós, a espécie humana, que estragou o planeta. Essa culpa tem nomes e é urgente não generalizar. Uma economia predadora que pensa no patrimônio da Terra como recurso: esta é a causa principal. É isso que tem de ser mudado em primeiro lugar. Não deixaram a maior parte da humanidade entrar na casa grande. E agora culpam os da senzala pelo fato de a casa grande estar suja? Nunca dividiram a refeição. E agora querem partilhar as culpas por igual?