Autor de mais de 70 livros traduzidos para mais de 45 idiomas, Luc Ferry, 71 anos, incorpora como poucos a ideia do que é ser um filósofo pop. O francês, que tem formação em Ciência Política e é professor universitário, já foi ministro da Educação em seu país e se tornou conhecido dos brasileiros com obras como 7 Maneiras de Ser Feliz, O Homem Deus, A Inovação Destruidora, A Nova Ordem Ecológica, Dicionário Amoroso da Filosofia e A Revolução Transumanista, entre outros. Em Porto Alegre ele já esteve no Fórum Social Mundial e no Fronteiras do Pensamento, projeto que o trará à cidade pela terceira vez em setembro. Nesta conversa, que seguindo um pedido do entrevistado foi realizada por e-mail, fala sobre as revoluções que as relações humanas estão vivenciando a partir dos avanços da ciência e da tecnologia. A tradução é da repórter de ZH e GZH Letícia Paludo.
“A terceira revolução industrial terá um impacto em nossas vidas, nas próximas três ou quatro décadas, maior do que toda a evolução tecnológica anterior.” Essa sua frase serviu de inspiração para o Fronteiras do Pensamento 2022. O senhor pode, por favor, desenvolver esse raciocínio?
A terceira revolução industrial é revolução da inteligência artificial, da robótica e da tecnologia digital. Ela começa verdadeiramente com a criação da web por Tim Berners-Lee e Robert Cailliau, em 1990. A web, que não deve ser confundida com a internet, é apenas um sistema, mas um sistema extraordinário que consiste em “descompartimentar” a rede, rompendo as barreiras que a atrapalhavam, inventando uma linguagem comum a todas as nossas comunicações. Pela primeira vez na história, a humanidade está totalmente conectada consigo mesma. No mundo inteiro, qualquer indivíduo é capaz de se comunicar tecnicamente com qualquer outro, não importa onde ou quando. Com o desenvolvimento da inteligência artificial que permite o processamento de big data em tempo real, surge uma nova economia “colaborativa”, com aplicativos como Uber ou Airbnb e dezenas de milhares de outros que hoje ignoram o intermédio de profissionais e conectam indivíduos entre si. Isso tem repercussões em todas as áreas das nossas vidas, na economia, é claro, mas também na saúde – em particular na luta contra o câncer, com terapias direcionadas e imunoterapias que não seriam possíveis sem a inteligência artificial –, no âmbito da mobilidade, com os carros autônomos, nas biotecnologias, com guerras comerciais e infelizmente reais. Em suma, praticamente em qualquer coisa que possa perturbar nossos modos de vida tradicionais.
A pandemia nos forçou a ficar em casa, escancarou nossa dependência da ciência e fez com que as relações fossem repensadas. Que impacto esse período tem na atual revolução tecnológica?
O efeito da pandemia no mundo do trabalho foi colossal, particularmente pelo nascimento do teletrabalho e de aplicativos como Zoom e Google Meet. Foi assim que que 38 milhões de americanos deixaram seus empregos em 2021, porque estavam cansados de perder a vida... para ganhá-la! No trabalho, aparecem novas exigências: 1) De sentido, para começar (uma característica por vezes mais importante do que a própria renda); 2) De liberdade e autonomia, onde a organização do horário de trabalho torna-se tão essencial quanto o tempo de trabalho, e o teletrabalho permite aproximar o trabalho e a vida privada; 3) De utilidade social, por fim (o impacto ecológico de uma empresa torna-se, por exemplo, um fator de decisão). Em resumo, o qualitativo prevalece sobre o quantitativo, com o bem-estar e a utilidade do trabalho se juntando ao poder de compra. Quando falamos das “dificuldades do trabalho”, não é mais apenas uma questão de desgaste físico, mas de ausência de sentido, responsabilidade, autonomia e liberdade. Mas, convém ressalvar, é claro que esses pré-requisitos não são os mesmos para um jovem graduado em uma grande universidade, que pode ser mais exigente, e para um desempregado de 45 anos que procura desesperadamente uma forma de sustentar sua família.
A humanidade sempre viu a inteligência artificial e o processo de robotização com fascínio e medo – basta ver as ficções científicas para constatar isso. O que, entre aquilo que se anuncia para essas três ou quatro próximas décadas, deve nos amedrontar? E o que justifica nosso fascínio?
Nos últimos 50 anos, de fato há uma verdadeira proliferação de todos os tipos de medo. Hoje em dia, nós temos medo de tudo. Temos medo do sexo, do álcool, do tabaco, da velocidade no carro, da carne vermelha, das nanotecnologias, dos micro-ondas, da inteligência artificial, da robótica, do buraco na camada de ozônio, da globalização, dos transgênicos, do aquecimento global e de mil outras coisas terríveis. Mas o mais surpreendente é que essa proliferação de medos foi acompanhada por um movimento ainda mais profundo: um movimento de desculpabilização do medo. Quando eu era criança, nossos pais e nossas escolas nos diziam que menino ou menina grande “não tem medo”. Que crescer, tornar-se uma “grande pessoa”, era ser capaz de superar os medos. Superar os medos era uma das tarefas mais importantes para qualquer adulto razoável. Essa, aliás, era a mensagem constante da filosofia desde os gregos: o medo sempre foi considerado uma paixão vergonhosa e infantil, que nos aprisiona, que nos retrai em nós mesmos e, ao mesmo tempo, nos impede de pensar livremente e de nos abrirmos aos outros. Além disso, como sempre disse a sabedoria popular: “o medo é um mau conselheiro”. Creio que, diante do mundo que está vindo, para regulá-lo e torná-lo melhor, precisamos de coragem e de inteligência, não nos paralisando pelo medo.
Já é tempo de entrar no mundo das grandes espiritualidades laicas, as únicas que me parecem capazes de libertar os humanos das correntes da superstição.
O ser humano que surgirá após a atual revolução tecnológica será mais racional ou apelará mais à religião e à espiritualidade?
Para poder lhe responder, seria necessário entender que existem dois tipos de espiritualidades, duas maneiras de abordar a questão da sabedoria e da boa vida para aqueles que irão morrer e sabem disso, isto é, nós todos: as espiritualidades com deuses e pela fé, que são as religiões; e depois as espiritualidades sem Deus e pela simples razão, que são as grandes filosofias que, inegavelmente, desde Platão, cuidaram dessa questão sem passar por Deus ou pela fé. Acho que já é tempo de entrar no mundo das grandes espiritualidades laicas, as únicas que me parecem capazes de libertar os humanos das correntes da superstição. A esse respeito, sou um herdeiro do Iluminismo.
Em sua conferência anterior no Fronteiras do Pensamento, em 2019, o senhor falou sobre transhumanismo, que defende a transformação das pessoas para além do que a natureza reservou a elas. Trata-se de um ponto de vista polêmico à medida que permite que se pense, por exemplo, na criação de super-humanos, além da própria acentuação da desigualdade, pelo fato de que o acesso aos recursos tecnológicos não é irrestrito. Qual o limite do avanço da ciência?
Assim que falamos em transhumanismo, as boas almas tanto da esquerda anticapitalista como da direita religiosa ultraconservadora uivam eugenia, para não dizer hitlerismo, fantasiando sobre o que haveria de “neoliberal” e, portanto, diabólico no projeto de aumentar a longevidade humana. Descartando as fantasias, o transhumanismo na verdade se baseia em quatro ideias fortes, que não têm nada a ver com o super-homem nazista, nem com a eugenia exterminadora do século 20: 1) Trata-se, em primeiro lugar, de complementar a medicina terapêutica com uma medicina aumentativa ou de “melhoria”. 2) Mas o que exatamente se está melhorando, aumentando? Resposta: a longevidade em boas condições de saúde, o tempo da juventude! Trata-se de lutar contra o envelhecimento, até mesmo de reverter certos aspectos dele para retardar a morte e dar à humanidade a possibilidade de ser, se necessário, menos estúpida, menos inculta e menos selvagem. 3) Trata-se, então, de complementar o combate às desigualdades econômicas e sociais com o combate às desigualdades naturais. A loteria genética é cega, amoral e injusta. Seu filho tem uma malformação, uma deficiência, uma doença genética? Você não tem nada a ver com isso, não foi Deus que te puniu, mas a natureza que “bugou”. E se o livre arbítrio dos homens pudesse corrigir as calamidades que a natureza cegamente nos dispensa, isso não seria um progresso? 4) Por fim, trata-se de dizer que a natureza não é uma entidade sagrada, muito menos um modelo moral. A luta contra as desigualdades naturais pressupõe que finalmente deixemos de considerar a natureza uma entidade intocável e necessariamente boa. Hoje em dia, alguns ecologistas e também a psicologia positiva e algumas ideologias da felicidade clamam por um “retorno à natureza”, como se esta pudesse nos dar lições de sabedoria. Mas a lógica da natureza não é a da caridade nem a da solidariedade, muito menos a da igualdade, porque a natureza em seu estado original, não corrigida por decisões humanas, visa sistematicamente à eliminação brutal de fracos, doentes, velhos e deficientes. É o que chamamos de “seleção natural”. Está claro que todas as melhores coisas que inventamos desde o nascimento de nossos estados de bem-estar em termos de proteção dos mais desfavorecidos são radicalmente antinaturais: quer se trate de nossos sistemas de pensões, assistência médica ou educação gratuita, proteção dos fracos, dos velhos e dos deficientes, quer se trate do progresso da democracia e da medicina moderna, nada disso está de acordo com a natureza. O transhumanismo faz parte dessa perspectiva. Claro que podemos debater isso, mas considerar o transhumanismo uma doutrina neoliberal ou mesmo um retorno do nazismo é simplesmente estúpido.
A lógica da natureza não é a da caridade nem a da solidariedade, muito menos a da igualdade, porque a natureza em seu estado original, não corrigida por decisões humanas, visa sistematicamente à eliminação brutal de fracos, doentes, velhos e deficientes.
“O ódio é talvez maior do que o amor no ser humano. O século 20 foi genocídio atrás de genocídio.” Essa é uma frase sua de 2019. É possível pensar em algum tipo de reversão dessa perspectiva ou a revolução tecnológica em curso deixará tudo ainda mais sombrio?
Não acredito na existência do Diabo. Mas na existência do diabólico ou demoníaco, sim. Sempre me impressionei com a fraqueza da moral baseada na convicção de que o homem é bom por natureza. Os animais ferem uns aos outros, mas não tomam o mal como um projeto. Entre os humanos, pelo contrário, o mal radical ligado ao ódio não consiste em “fazer o mal”, mas em tomar o mal como um projeto – o que é bem diferente. É isso que a teologia tradicional define como essa maldade, que é um dos traços próprios da humanidade. O que é evidenciado pelo fato de que o mundo animal parece ignorar amplamente a tortura. Por outro lado, há um museu em Ghent, na Bélgica, que nos deixa pensativos: o museu, justamente, da tortura. Lá você pode contemplar os surpreendentes produtos da imaginação humana nessa área: tesouras, facas, alicates, queimadores, esmagadores de cabeça, puxadores de língua, trituradores de dedos. Os animais às vezes devoram um deles ainda vivo. E nos parecem cruéis. Mas basta pensar sobre isso para entender que não é o mal como tal que eles estão buscando. Sua crueldade deriva apenas de sua indiferença ao sofrimento dos outros. E, quando eles parecem matar “por diversão”, eles estão, muito provavelmente, apenas exercendo um instinto predatório natural. O homem às vezes tortura ou mata sem nenhum propósito: por que os milicianos sérvios forçaram um avô croata a comer o fígado de seu neto ainda vivo? Por que os hútus cortam os membros das crianças tutsis para melhor encaixar suas caixas de cerveja? Por que tantos cozinheiros se divertem cortando sapos vivos, quando seria mais simples e lógico matá-los antes? Temo que não haja uma resposta convincente: o ódio demoníaco, por ser de outra ordem que não a da natureza, escapa à lógica do utilitarismo. Ele é inútil e até contraproducente. É essa disposição antinatural que lemos no olho humano: ao contrário da lagosta ou do pássaro, o olho humano não é um espelho que reflete a exterioridade, mas a interioridade. Podemos ler tanto o pior como o melhor, o ódio e também o amor e a generosidade.
No livro Do Amor – Uma Filosofia para o Século XXI, o senhor escreve que o amor foi um propulsor de avanços e movimentos políticos e sociais: “As paixões têm com frequência um papel infinitamente mais eminente na História do que os interesses propriamente ditos”. O quanto isso se mantém na sociedade que surgirá após a revolução tecnológica em curso? Ao contrário do que tanto os liberais quanto os marxistas afirmam, não são os interesses que governam o mundo, mas as paixões. Os políticos, capitães da indústria, artistas ou escritores são apaixonados. Isso é bom ou ruim? Eu não saberia dizer. Na paixão existe o “passivo” e, com certeza, a política é uma droga pesada. Mas, sem paixão, nada de grande pode ser feito. Cabe ao povo ser lúcido para escolher aqueles que são apaixonados e prontos para servir ao invés de servirem a si mesmos.
No Fronteiras do Pensamento de 2021, seu conterrâneo e contemporâneo André Comte-Sponville afirmou que “viver no presente é a única maneira de habitar a eternidade”, indicando que aproveitar o hoje é mais eficiente do que pensar no amanhã, o que segue uma linha contrária do raciocínio segundo o qual uma vida mais longeva apaziguaria tormentos das pessoas. São pensamentos de fato antagônicos?
Uma vida longa nunca encurtará nossos tormentos e, sejamos claros, a felicidade é uma ideia inconsistente, uma armadilha. O fato de todos nós buscarmos escapar do sofrimento e da infelicidade não significa que necessariamente busquemos a felicidade, como se fosse uma equivalência. Porque a felicidade, se nos dermos ao trabalho de pensar sobre, nunca é realmente definível, enquanto o infortúnio é inequívoco. Existe, e é isso o que mais chama a atenção no caso, uma total dissimetria entre o bem e o mal. Por exemplo, podemos espontaneamente pensar que o amor nos faz felizes. E de fato, enquanto durar, enquanto estiver tudo bem, enquanto estivermos apaixonados, estaremos “loucos de felicidade”. Que seja. Mas por quanto tempo? Nada e ninguém pode dizer, nem que seja por uma razão muito simples: assim que um ser nasce, incluindo o ente amado, ele tem idade suficiente para morrer. O que é certo, porém, é que todo amor acaba se perdendo. Seja porque a paixão se extingue para dar lugar à indiferença e ao tédio, seja porque um dos protagonistas acaba desaparecendo. Há algo mais triste do que esses casais de idosos que se amaram por toda a vida e um deles se vai, deixando o outro em uma infelicidade insuportável? Os crentes dizem a si mesmos que não há amor feliz fora da religião, fora da promessa de reencontro em outra vida. Mas e para quem não tem fé? Então, se a felicidade é impossível, devemos desistir de viver? E, nessas condições, para que serve filosofar? Isso não é desesperador? É bem pelo contrário. Para acessar a vida boa, feita de liberdade, sentido e de serenidade, mais do que felicidade, é preciso ancorar em si mesmo essa convicção de que tudo o que é humano tem um fim. O livro mais lindo do mundo tem uma última página, assim como um coral de Bach têm uma última nota. Saber que há um fim seria uma razão para não ler, não ouvir, não amar? É claro que não. Nossa vida será muito mais serena, livre e, ao mesmo tempo, aberta a momentos de alegria sem a ilusão desastrosa segundo a qual a felicidade plena e eterna é seu único objetivo final.
Saber que há um fim seria uma razão para não ler, não ouvir, não amar? É claro que não. Nossa vida será muito mais serena, livre e, ao mesmo tempo, aberta a momentos de alegria sem a ilusão desastrosa segundo a qual a felicidade plena e eterna é seu único objetivo final.
Além da conferência de 2019, o senhor proferiu a primeira palestra da história do Fronteiras do Pensamento, em 2007. Que lembranças tem de Porto Alegre e o que espera encontrar em sua nova visita?
Estive em Porto Alegre ainda antes de 2007, no famoso Fórum Social Mundial de alterglobalistas, que visitei de cima a baixo, no início dos anos 2000. Imediatamente me apaixonei pelo Brasil. Cruzei-o um pouco em todas as direções, fui a vilas antigas, montes, mas também à beira-mar, e é talvez o país mais bonito do mundo, com uma diversidade humana e natural que não há em nenhum outro lugar. Hoje tenho no Brasil amigos que considero irmãos, por isso o que eu espero, ao regressar, quase todos os anos, como tenho feito, é simplesmente reencontrá-los. Mas também espero que o Brasil encontre mais democracia, solidariedade e serenidade no âmbito político.
O Fronteiras do Pensamento 2022
- A conferência presencial de Luc Ferry está marcada para 21 de setembro. Antes, nesta quarta-feira (31/8) tem Frédéric Martel e, no dia 14/9, Steven Johnson. Confira o calendário completo, incluindo as conferências disponibilizadas online, em fronteiras.com. Leia outras entrevistas e artigos em gzh.rs/fronteiras.
- O patrocínio é de Hospital Moinhos de Vento, Unimed Porto Alegre, Dexco e Icatu Seguros, com parceria acadêmica da PUCRS, parceria empresarial de Uniodonto, Sinergy e Colégio Bertoni Med, parceria institucional do Pacto Global e promoção do Grupo RBS.