Depois de dois anos de realizações a distância em razão da pandemia, o Fronteiras do Pensamento voltou a receber o público presencialmente em Porto Alegre na noite desta quarta-feira (10). O reencontro ocorreu na Casa da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa), com direito a plateia cheia. O evento contou também com música e arte, possibilitadas pela parceria entre o Fronteiras, a orquestra e a Bienal do Mercosul.
A geóloga e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Silvia Rolim, 62 anos, frequentou quase todas as edições do evento desde sua primeira realização, em 2007. Durante a pandemia, não acompanhou as conferências online, e aguardava o retorno ao encontro presencial.
— Agora no retorno, assisti Sidarta Ribeiro, na segunda-feira (8), em uma tela bem grande em casa. Não consegui desgrudar os olhos, foi realmente muito legal. Mas eu gosto do presencial. Gosto de ficar vendo as pessoas, fazer esse sharing, não só assistir às palestras, mas poder conversar sobre palestrantes, sobre tudo. É bom a gente socializar, eu venho aqui na Ospa também, está sendo um retorno bem bacana — avaliou.
Quem optou por assistir à palestra na Casa da Ospa pôde desfrutar de uma abertura diferenciada, que ocorreu ao som da peça Divertimento de Mozart para Trio de Madeiras, interpretada pelo Ventus Trio, composto por oboé, flauta e fagote.
— Estamos convidando grupos da Ospa que têm trabalhado em recitais de música de câmara. Os grupos vão variar de duos a quartetos, com diversificado repertório, dos períodos clássico, barroco — explicou o maestro Evandro Matté, responsável pela curadoria musical do evento, destacando a importância de receber as conferências no local, que se apresenta como um novo espaço cultural da cidade, e de mostrar a música da orquestra.
A experiência será repetida antes de cada palestra presencial. O público também poderá vivenciar uma verdadeira tríade cultural, complementada pela Bienal — na entrada, será possível conferir a instalação Experimento de Suspensão nº 1, de Paulo Nenflídio, atualmente em cartaz em São Paulo.
Stuart Firestein e o poder da ignorância
O primeiro tema a ser tratado na edição deste ano do Fronteiras do Pensamento foi a ciência. O mediador da noite foi o jornalista Tulio Milman.
A conferência, intitulada Incertezas, teve como primeiro palestrante o neurocientista e pesquisador da Universidade de Columbia Stuart Firestein. Há mais de 15 anos, ele ministra um curso sobre as incertezas do processo científico, que originou os livros Ignorância: como ela impulsiona a ciência e Failure: why science is so successful (ainda não disponível no Brasil).
A fala do neurocientista foi baseada em três eixos: incerteza, fracasso e ignorância, buscando transformá-las em algo mais positivo, vistas como um caminho bem-sucedido para adquirir conhecimento sobre o mundo. Firestein comparou a ciência à expressão "procurar gatos pretos no escuro", destacando que, quando o cientista "encontra o gato", segue em frente — e que gasta "um bom tempo no escuro".
Ao longo de sua apresentação, Firestein se debruçou sobre a ideia de que começamos sempre na ignorância, sem saber, e, então, fazemos algo para adquirir algum tipo de conhecimento. Para o autor, o propósito do conhecimento é criar mais ignorância, de melhor qualidade, fazendo perguntas melhores do que as do início — ou, como o autor disse, "procurar uma ignorância melhor". Durante a sua exposição, o neurocientista trouxe reflexões de pensadores e cientistas, como Erwin Schrödinger, que defendia acatar a ignorância de forma indefinida.
— O conhecimento é um grande tema, e a ignorância é ainda maior — definiu, apresentando os conceitos de ignorância de baixa qualidade e de alta qualidade.
O pesquisador relatou ainda que há uma ignorância mais profunda, representada pelo desconhecido: aquilo que não sabemos que não sabemos e cuja descoberta, portanto, se torna um desafio. Para o autor, o melhor portal para isso é o fracasso.
— Gosto de pensar no sucesso e no fracasso não como dois lados opostos, mas como dois cavalos puxando a mesma carroça na mesma direção — comentou.
Conforme Firestein, embora necessário, o fracasso deve ocorrer apenas em certa dosagem, de modo que não ocorra em 100% das vezes. No entanto, as pessoas subestimam a quantidade aceitável, ponderou ele.
Para o autor, lidar com certezas torna as pessoas felizes, mas a chave para o progresso — sobretudo na ciência, área em que não há uma solução final ou resposta completa — está na incerteza. É esse processo que explica porque fatos científicos nunca devem ser "escritos na rocha" e devem sempre ser revisados.
E como ter sucesso aceitando e compreendendo as incertezas? De acordo com o neurocientista, a questão não deveria ser "como nos tornamos certos de algo", porque a crença é provisória. É preciso aprender a navegar na "incerteza navegável".
— Como o capitão de um navio, temos que ter a capacidade de navegar contra incertezas, como as pressões de onda e vento, e levar o navio ao porto.
Firestein ainda argumentou que o pensamento apresentado ao longo da palestra seja adotado no ensino:
— Temos que apresentar ignorância, fracasso e incerteza no currículo.
Natalia Pasternak e a transparência da incerteza
A segunda conferência da noite foi conduzida por Natalia Pasternak, microbiologista, pesquisadora da Universidade de Columbia e presidente do Instituto Questão de Ciência — eleita uma das mulheres mais influentes e inspiradoras do mundo em 2021 pela BBC 100 Women. A microbiologista também embarcou no "navio" de incertezas de Firestein, reforçando que é preciso aceitá-las na ciência e abraçá-las na vida, como cidadãos.
— Aprendemos, na escola, a ciência como um aglomerado de fatos que vêm prontos, que a gente tem de decorar, porque vai cair na prova, com resposta de "sim ou não", "certo ou errado". Eu quero esse certo e errado para a minha vida também, não quero "talvez", "depende". Então como a gente vai fazer para aceitar navegar nesse mar de incertezas, principalmente quando a gente tem de navegar em meio a um mercado de ilusões que tenta vender falsas certezas com um marketing muito poderoso, que mexe com culpa, emoção, responsabilidade, mas que traz conforto, porque são certezas, mesmo sendo falsas?
Para tentar responder a essa pergunta, Natalia relembrou as casas de café dos anos 1600 na Europa, conhecidas como universidade de vintém, nas quais qualquer cidadão podia entrar, tomar café e escutar as conversas e incertezas das sociedades literárias e científicas que se reuniam ali. Contudo, isso mudou, e os cientistas começaram a tomar café sozinhos, em congressos, e o público ficou do lado de fora — algo que, em sua opinião, precisa ser revertido.
— A gente precisa voltar a "tomar café" com os cientistas. Essa aproximação vai fazer com que a gente se sinta confortável para navegar nesse mar de incertezas que é o processo da ciência — pontuou.
Para Natalia, se essa aproximação entre ciência e sociedade for bem-sucedida e permitir uma comunicação eficaz, estarão disponíveis todas as ferramentas necessárias para medir os riscos, benefícios e probabilidade — que precisamos para entender as incertezas.
A pesquisadora explicou que as pessoas fazem análises no dia a dia, como deixar uma criança brincar em um parquinho, avaliando riscos e benefícios. No entanto, ressaltou que, em áreas como saúde e alimentação, esquecem de fazer essa análise e criam expectativas impossíveis por medicamentos ou vacinas 100% seguros ou sem efeitos colaterais, sem perceber que, assim como o parquinho não é 100% seguro, isso não existe. Deste modo, não conseguem fazer boas análises de risco.
A microbiologista ainda destacou que os seres humanos são movidos por culpa, responsabilidade e viés de inação — no qual não fazer nada é mais confortável do que fazer, livrando-se da responsabilidade e da culpa. Segundo ela, é o que ocorre no caso da não vacinação, no qual a culpa de uma tragédia passa a ser da natureza ou de uma força superior.
O viés de inação e a culpa são explorados pelos movimentos antivacina, conforme Natalia. Esses movimentos oferecem uma falsa certeza de que, se a pessoa se vacinar, terá reações adversas, e a culpa será do responsável. De acordo com Natalia, pesquisas concluíram que os alvos preferidos são mães e mulheres.
— Imagina isso falado para mães que estão com filho pequeno tentando decidir se vão ou não vacinar, tentando navegar nesse mar de incertezas, e alguém vem e fala "a culpa vai ser sua… a não ser que você compre o meu livro que ensina a ter uma vida saudável, que vai melhorar o sistema imune do seu filho e você não vai precisar dessas vacinas cheias de químicos, ou assista meu canal ou assine minha newsletter por apenas US$ 50 por ano". Tem muita gente ganhando muito dinheiro vendendo falsas certezas — alertou.
Para navegar e aceitar as incertezas, Natalia argumentou que a sociedade precisa cobrar que a informação chegue de uma maneira honesta, transparente, em uma linguagem compreensível. Ela lembrou ainda aos comunicadores de ciência que apenas dar a informação não basta: é preciso saber como acolher as dúvidas da população e inoculá-la contra a desinformação, além de desmentir informações falsas, fornecendo ferramentas para que o cidadão comum consiga reconhecer as armas utilizadas pelos negacionistas.
— Cada criança que não morreu de coqueluche, de covid, cada pai e mãe que levou para vacinar porque aceitou navegar conosco, cientistas, nesse mar de incertezas e não foi enganado por vendedores de falsas certezas… sim, valeu a pena — concluiu, fazendo referência aos esforços em meio a certezas falsas que enganam as pessoas.
Próximas palestras
A 16ª temporada do Fronteiras do Pensamento terá ainda as conferências presenciais com Frédéric Martel, Steven Johnson, Luc Ferry, Élisabeth Roudinesco e Marcelo Gleiser. No ambiente virtual, Maria Homem, Martha Gabriel, Rodrigo Petronio, Mayana Zatz, Jorge Caldeira e Sidarta Ribeiro compartilharão as suas ideias. A programação completa pode ser conferida no site fronteiras.com.
O Fronteiras do Pensamento tem patrocínio de Hospital Moinhos de Vento, Unimed Porto Alegre, Dexco e Icatu Seguros, com parceria acadêmica da PUCRS, parceria empresarial de Uniodonto, Sinergy e Colégio Bertoni Med, parceria institucional do Pacto Global e promoção do Grupo RBS.