O francês André Comte-Sponville, 69 anos, é um filósofo altamente respeitado nos círculos universitários, mas que abdicou da carreira acadêmica buscando sair da bolha que com frequência limita o alcance do conhecimento científico. Palestrante e escritor, autor do best-seller internacional O Espírito do Ateísmo (publicado originalmente em 2006) e de uma série de livros que refletem de diversos modos sobre vida contemporânea (entre os quais O Pequeno Tratado das Grandes Virtudes e A Felicidade, Desesperadamente), ele é uma das atrações da Maratona Fronteiras, que marca a abertura do Fronteiras do Pensamento 2021, neste sábado. O evento, gratuito e virtual, com quatro horas de duração, também terá as presenças de dois outros astros do pensamento atual, a artista visual Marina Abramovic e o escritor e psicólogo Andrew Solomon (leia detalhes sobre o evento ao final desta entrevista). Antes do encontro, Comte-Sponville respondeu as seguintes questões que GZH enviou a ele por e-mail (a tradução é de Letícia Paludo).
O Brasil é um país muito religioso. o apelo à fé foi se adaptando aos novos tempos no país. de um modo geral, a espiritualidade se mantém forte na contemporaneidade. Por que o apelo das religiões persiste, mesmo em sociedades avançadas do ponto de vista da racionalidade científica?
Porque a humanidade precisa da vida espiritual! Mas fique atento para não confundir espiritualidade com religião. Toda religião é uma forma de espiritualidade, mas também existem espiritualidades que não são religiosas, como as grandes sabedorias da Antiguidade, no Ocidente, ou como o budismo, na Ásia (Buda nunca mencionou qualquer Deus). Quanto a mim, expliquei isso no livro O Espírito do Ateismo, cujo subtítulo é Introdução a uma Espiritualidade sem Deus. O que é a vida espiritual? É a vida do espírito (spiritus, em latim). Bem, os ateus não têm menos espírito do que os outros! Por que teriam menos espiritualidade? Por que se interessariam menos pela vida espiritual?
Em que medida o ódio e o ressentimento, tão marcantes nas relações sociais do mundo atual, podem ser uma consequência da falta de espiritualidade?
O ódio e o ressentimento não são de ontem! Eu diria inclusive o contrário: nossas sociedades nunca foram tão pouco religiosas, e jamais houve tão pouca violência (sobre esse assunto, leia o formidável livro de Steven Pinker, Os Anjos Bons da Nossa Natureza, sobre a história da violência e seu declínio). Que ódios, que ressentimentos, que horrores nos tempos do Ocidente Cristão! Lembrem-se dos conquistadores muito cristãos e dos massacres que fizeram de milhares de indivíduos nativos americanos. Lembrem-se das guerras religiosas. Lembrem-se do comércio de escravos negros. Lembrem-se do stalinismo, do nazismo, dos ditadores fascistas na Europa e na América do Sul. Vamos parar de embelezar o passado. Nossa época é muito imperfeita, muito injusta e, por vezes, muito cruel. Mas, nos séculos passados, no tempo em que as religiões dominavam tudo, era bem pior.
Como é possível alcançar uma espiritualização sendo ateu?
A espiritualidade é a vida do espírito, principalmente no que diz respeito ao infinito, à eternidade, ao absoluto: é a nossa relação finita com o infinito, nossa relação temporal com a eternidade, nossa relação relativa com o absoluto. Não é preciso acreditar em Deus para habitar essas dimensões. Basta ter um espírito, o que quer dizer, nesse caso, ter um cérebro humano em funcionamento. Pratique a meditação, a contemplação, a atenção desinteressada: a espiritualidade virá com isso! Viva no presente: é a única forma de habitar a eternidade.
O que, na sua opinião, tornam a ansiedade e a depressão dois dos problemas mais e recorrentes no século 21?
Novamente, a ansiedade e a depressão não datam de ontem. Se elas são mais frequentes do que antigamente (algo que ainda precisa ser demonstrado: pergunte aos especialistas), talvez seja porque, em um mundo amplamente descristianizado, nós finalmente levamos a morte a sério, não mais como o início de outra vida, mas como o fim da única vida disponível, portanto, como o nada final. No mínimo estaríamos angustiados e deprimidos. Como sair disso? Aceitando serenamente a nossa finitude e, portanto, também a nossa mortalidade. Amando ainda mais a vida, já que sabemos que ela não irá durar para sempre. Finalmente agindo e amando a vida, ao invés de temer a morte. Montaigne, nos seus Ensaios, disse o essencial em uma frase: “Quero que ajamos e que prolonguemos os ofícios da vida o máximo que pudermos, e que a morte me encontre plantando minhas couves, mas despreocupado dela, e mais ainda de meu jardim imperfeito”.
Vivemos um momento e grande circulação de informações e fácil acesso ao conhecimento. Por que, nesse contexto, a desinformação (e com ela a pós-verdade, a indústria de fake news e os líderes políticos que se alimentam disso) também é tão presente?
Porque todo meio de informação também é, possivelmente, um meio de desinformação. Nunca tivemos tantas formas de divulgar a verdade, mas nunca tivemos tantas maneiras de espalhar mentiras ou notícias falsas. Cabe a nós sermos vigilantes ao invés de protestar contra as novas tecnologias.
Sua atuação fora da academia ajuda a tornar o conhecimento técnico-científico e a filosofia mais acessíveis. Como o senhor avalia os resultados colhidos até aqui nessa aproximação entre o conhecimento e as pessoas comuns, por assim dizer? E ainda: esse tipo de atuação poderia ser seguido por mais intelectuais?
Eu adotei o slogan de Diderot: “Apressemo-nos para tornar a filosofia popular!”. É a melhor forma de combater o fanatismo, o obscurantismo, a estupidez. Outros, como Luc Ferry ou Michel Onfray, vão na mesma direção, aquela de uma filosofia dirigida a todos – ao grande público educado, em todo caso – e não apenas a especialistas ou intelectuais. Fomos bem-sucedidos? Em parte, sim: os livros de filosofia (incluindo antigos e clássicos) nunca tiveram tantos leitores! Muito melhor! Então, sim, claro, é desejável que mais intelectuais façam esse esforço, mas sob a condição de que isso não signifique renunciar às exigências do rigor e da racionalidade. Na França, Descartes, Pascal e Voltaire mostraram que é possível. Cabe a nós pegar a tocha e dar prosseguimento a essa missão!
O que o senhor pensa sobre o impacto da pandemia na sociedade? Sairemos dela mais humanizados e altruístas, mais preocupados com o coletivo, ou, contrariamente a isso, nos tornaremos mais egoístas preocupados apenas com nossa individualidade?
Nem um, nem outro! Por que queres que uma pandemia mude a natureza humana ou o futuro de uma civilização? O impacto da pandemia será principalmente econômico, e serão os mais pobres, como de costume, que mais sofrerão suas consequências. Mas não contemos com um vírus para transformar a humanidade, nem para transformar nossas sociedades. Cabe a nós fazer isso! Atenção para não cair no que chamo de “panmedicalismo”, que faz da saúde um valor supremo e, portanto, tende a exigir tudo da medicina. Nós temos a imensa sorte de ter uma medicina e uma ciência muito eficazes, que rapidamente encontrou vacinas contra a covid-19. Portanto, sigamos o conselho dos nossos médicos: vamos nos vacinar o mais rápido possível e, até lá, respeitemos as restrições e o distanciamento físico. Só devemos não contar com a medicina para dar sentido à vida, nem para ocupar o lugar da política, da moral, da filosofia ou da espiritualidade. Para enfrentar os males de nossa sociedade, confio mais na política do que na medicina. E, para guiar a minha vida, mais em mim mesmo do que no meu médico!
A Maratona e o Fronteiras em 2021
- A 15ª edição do Fronteiras do Pensamento começa às 16h deste sábado (10/7), com o Maratona Fronteiras, evento de quatro horas de duração que terá entrevistas com a artista Marina Abramovic e o filósofo André Comte-Sponville e ainda palestra do escritor e psicólogo Andrew Solomon, tudo seguido de debates com convidados.
- Realizado online, o Maratona Fronteiras é gratuito. As inscrições podem ser feitas no site do evento: fronteiras.com.
- A programação da temporada, com conferências a serem realizadas entre agosto e dezembro, será anunciada na ocasião – quando também se iniciarão as inscrições via site. A organização já anunciou que, neste ano, haverá experiências em novos formatos e uma seleção de palestrantes que estão entre os mais pedidos do público.