Por Felipe Pimentel
Psicólogo e historiador
A tecnologia define o humano? Arqueólogos e historiadores estabelecem marcos a história dos hominídeos através da tecnologia. E é precisamente quando os seres humanos aprendem a fabricar ferramentas, há cerca de 2,5 milhões de anos, que damos início ao gênero homo em nossa história. Sendo o precursor o Homo habilis, cujo nome advém da sua grande habilidade de fabricar… ferramentas. A história da humanidade mistura-se à história da tecnologia.
Por isso, como espécie, nós falamos da tecnologia, a desejamos e nos assustamos com ela e as transformações que provocou. Podemos citar a tecnologia agrícola e pastoril, quando nos sedentarizamos; a fabricação de metais, quando nos “civilizamos”; a moeda, o arado de ferro, a nau, a pólvora, o éter; tudo isso modificou a história da humanidade definitivamente. No final do século 18, esse impacto tornou-se ainda maior. A Revolução Industrial introduziu uma singularidade que é preciso explicar. Todas essas invenções citadas até aqui são pré-industriais. Sua criação não gerou uma “revolução industrial”. Por quê? A tecnologia fabril é marcada não pela criação de uma mera ferramenta, mas de uma máquina. Qual a diferença entre elas?
Ferramentas são objetos que auxiliam determinado trabalho humano. Máquinas trabalham sozinhas. Isso aconteceu primeiramente no setor têxtil, com os teares mecânicos e a máquina a vapor, e esse princípio do automatismo se disseminou. No século 19 e início do 20, durante os quais vigorava já a Segunda Revolução Industrial, uma multiplicidade de invenções transformou a vida da humanidade para sempre: na medicina, antibióticos, vacinas e analgésicos; nos transportes, barcos a vapor, ferrovias, aviões e automóveis; nas comunicações, o gravador, o microfone, o rádio, o telégrafo e o telefone; na vida doméstica, o fogão e a geladeira; na indústria de base, o aço e o petróleo; e tantas outras. O efeito disso sobre a população foi acachapante, levando a humanidade de 1 bilhão de pessoas em 1800 aos mais de 7 bilhões do século 21.
Passamos também pela Terceira Revolução Industrial, iniciada na segunda metade do século 20, caracterizada por novos métodos de gestão de projetos (como o toyotismo), pela virtualização da economia e, principalmente, pela tecnologia da informática. De lá para cá, os computadores que ocupavam o espaço de uma sala inteira passaram a caber na palma da mão. Mas, para além disso, algo mudou?
Alguns teóricos já afirmam que estamos na Quarta Revolução Industrial. Outros são mais prudentes e perguntam pelo critério. As tecnologias do século 21 são distintas, por princípio, das tecnologias da terceira Revolução Industrial? É um debate. Agora, há algo peculiar no século 21: as novas tecnologias imiscuíram-se agudamente e transformaram todos os setores. O nosso modo de fazer política, cultura, dinheiro, jornalismo, educação. A tal “exponencialidade” dos negócios digitais, produtos completamente intangíveis, escalou os valores absurdamente. Se, há cerca de 10 anos, o Waze foi adquirido pela Google por US$ 1 bilhão, a notícia badalada recente mostra o Twitter avaliado em mais de US$ 40 bilhões. Na cultura e no jornalismo, novas mídias, práticas e valores emergiram com as possibilidades da informação descentralizada e não mediada. Hoje consumimos informação, ensino, produtos e até mesmo política através da tecnologia. Mas o que há de novo? Há algo realmente distinto de tudo o que já houve na história da humanidade e sua tecnologia?
Arrisco uma hipótese. Se as ferramentas forjaram a civilização e depois as máquinas dominaram uma produção, as máquinas do século 21 parecem ir além: não se trata só de melhorias técnicas em nossa vida ou de facilidades produtivas, pois não estamos apenas dividindo com as máquinas um trabalho; nós estamos habitando as máquinas. Elas não são mais companheiras da nossa paisagem, mas nós adentramos à paisagem delas, elas nos capturaram e virtualizaram nossa vida, trabalho, consumo e relações. Com a nossa anuência ou não, o seu algoritmo sabe mais do que nós mesmos sobre o que desejamos, e nós permitimos digitalizar a nossa personalidade, passando a viver e conviver neste mundo nublado das telas. O famigerado Metaverso nem precisa ameaçar chegar: já o habitamos há tempos, no trabalho, na escola, nas relações. O que isso tem feito de nós? A tecnologia tem essa capacidade de definir e questionar nossa humanidade. Enquanto isso, as pessoas acusam um certo mal-estar. Não parece possível retroceder. Mas para onde vamos, de onde viemos, quem somos nós?
O Fronteiras do Pensamento 2022
- Serão 12 conferências, em encontros presenciais e online. A primeira delas será em 29 de junho com o “Darwin da tecnologia” Steven Johnson. Os demais conferencistas são Stuart Firestein, Natalia Pasternak, Frédéric Martel, Luc Ferry, Élisabeth Roudinesco, Marcelo Gleiser (presenciais), Martha Gabriel, Mayana Zatz, Sidarta Ribeiro, Jorge Caldeira e Maria Homem (online).
- As inscrições podem ser feitas no site fronteiras.com. Saiba mais pelo fone (11) 9-7624-7423 ou pelo WhatsApp (11) 9-3775-5752. A cobertura completa de GZH, com entrevistas, artigos e textos sobre as conferências você acessa aqui.