O olhar penetrante, as mãos capazes de coordenar o mundo, a fúria de quem fazia da música a sua arma letal. Era difícil olhar para a figura de Neri Soares Gonçalves, o Neri Caveira, sem ficar hipnotizado. Um dos maiores mestres de bateria que já passaram pelo Carnaval de Porto Alegre (para muitos, o maior de todos), ele roubava todas as atenções. Quando estava na avenida, Neri Caveira era o próprio Carnaval.
O ano de 2024 marca duas décadas da lacuna deixada pelo mestre de bateria. Quando partiu, em janeiro de 2004, vítima de falência múltipla de órgãos após alguns anos convivendo com as sequelas de um AVC, Neri levou consigo uma parte insubstituível da folia porto-alegrense: ele próprio. Nunca desfilou no Complexo Cultural Porto Seco, que foi inaugurado após a sua morte, em fevereiro de 2004, mas está eternizado na passarela do samba na Capital. O recuo de bateria leva o nome dele, que deixou suas marcas espalhadas por toda a avenida.
— Tudo o que a gente vê no Porto Seco hoje, em termos de musicalidade, tem dedo do mestre Neri Caveira. Ele foi o grande professor do Carnaval de Porto Alegre, o mestre dos mestres, pois todos foram influenciados por ele — diz Julio Lucena, o mestre Inho, 57 anos, formado no ofício pela "escola Neri Caveira", como se orgulha em dizer.
— Ainda não nasceu outro Neri Caveira. No nosso Carnaval, ninguém ainda conseguiu ser tão bom quanto ele era — afirma Ilton Gonçalves, 61 anos, filho mais velho de Neri que seguiu os passos do pai como mestre de bateria, mas reconhece o talento intangível dele.
Estilo próprio
Muitos eram os diferenciais do mestre dos mestres. Dono de um estilo próprio, ele dispensava o uso do apito, acessório usado por quem está à frente da bateria para coordenar os naipes de ritmistas. Neri Caveira preferia usar uma batuta, tal qual um maestro. Com as mãos, também fazia sinais numéricos. Cada número representava uma bossa (as "firulas" que as baterias executam). Neri gostava tanto do samba "balaqueiro" que chegava a criar 15 tipos diferentes de bossas para um mesmo samba-enredo, conforme lembra mestre Inho.
Não havia quem ousasse criticar o estilo do mestre, tamanha excelência com a qual os arranjos eram executados. Hoje essenciais para a boa avaliação das baterias perante os jurados, as bossas já eram a marca registrada de Neri Caveira no final dos anos 1970. Os músicos é que precisavam se virar nos 30 para aprender tudo caso não quisessem se desentender com o maestro da percussão. E ninguém era louco de querer isso.
— Se tivesse 250 ritmistas tocando e um lá atrás errasse, ele ia direto na pessoa. Podia até estar de costas. Só de ouvir, ele sabia quem tinha errado. Era impressionante — conta Ilton.
— Ele fazia careta, falava palavrão. Às vezes, chegava a atirar a batuta na pessoa (risos) — lembra Inho, que hoje comanda o bloco Panela do Samba. — Ninguém se ofendia porque, com aquele jeitão, ele acabava sendo uma figura engraçada. Era exigente porque levava o Carnaval muito a sério, e a gente entendia isso. Tanto que todo mundo queria entrar na bateria do Neri. Era como jogar na Seleção Brasileira.
É claro que todas as escolas queriam Neri Caveira como técnico. O mestre fez história na Imperadores do Samba, mas passou por agremiações como Império da Zona Norte e Praiana, além de tribos carnavalescas e blocos de sociedade. Era disputado porque não admitia nada menos do que a perfeição. Tê-lo à frente da bateria era quase como uma garantia de nota 10.
Para alcançar os bons resultados, o mestre levava a disciplina como máxima. Era festeiro, mas tudo tinha o seu momento. Em dia de ensaio, ninguém podia beber nem uma gota de álcool até a conclusão dos trabalhos. E o ensaios podiam durar horas, sobretudo às vésperas do Carnaval. Quem não concordasse com a didática, tinha total apoio dele para procurar outra bateria. Sem estresse.
Contudo, por vezes, rolava uma ou outra tensão. O próprio apelido de "Caveira" surgiu de um atrito por conta do nível de exigência do mestre. Conta-se que a mãe de uma ritmista teria ficado irritada com a longa duração do ensaio e, em meio à discussão, esbravejou: "Nego magricela, parece uma caveira". Daquele dia em diante, Neri virou Neri Caveira.
— O pai era magrinho, cabeçudo e vivia fazendo careta. Aí já viu, né (risos) — diverte-se Ilton, filho do mestre. — Ele não dava bola. Até gostava.
A alcunha combinava com a postura do mestre, ajudava a impor respeito, mas a verdade é que não passava de uma couraça. O jeitão carrasco era como o traje de guerra de Neri Caveira. Tão logo os ensaios acabavam, o mestre tirava a armadura e mostrava-se carinhoso, gentil, solidário e brincalhão. Era como pai para os ritmistas e ostentava um sorriso largo que fazia dele o xodó das crianças nas agremiações pelas quais passou. Aliás, o mestre possuía um tino incomparável quando se tratava de identificar novos talentos entre os pequenos. Quando identificava, lapidava tal qual uma joia. O futuro do Carnaval dependia disso.
Grandes nomes da folia foram moldados pelo ourives Neri Caveira. Paulo Romeu Deodoro, 66 anos, fundador do Afro-Sul Odomode e da emblemática Garotos da Orgia, agremiação que marcou época na cidade, foi uma das crianças descobertas pelo mestre. Paulinho morava na região do Areal da Baronesa, quilombo urbano no qual Neri também vivia. Ele ficava encantado vendo a bateria da Imperadores ensaiar na Travessa Pesqueiro sob o comando do mestre. Neri Caveira viu que o guri tinha jeito para a coisa.
Paulinho começou como percussionista e logo foi treinado para se tornar mestre. Aos 15 anos de idade, orientado por Neri, assumiu sozinho sua primeira bateria, na Associação Israelita.
— Ele confiou em mim, botou a pilha, e eu fui na cara dura (risos). Fiquei meio assim, mas ele me deu a morta: "Leva uns 10 bons aqui da Imperadores e faz um cinturão com eles. Enquanto eles vão quebrando tudo, os outros só acompanham" — lembra Paulinho.
Entretanto, o principal ensinamento do mestre não dizia respeito à técnica:
— Quando eu comecei a assumir outros grupos por aí, ele me orientou: "Seja humilde, mas sem humilhação. Nunca deixa ninguém te humilhar".
Do Carnaval ao nativismo
De discípulo, Paulinho se tornou grande amigo de Neri. Assim ocorria com quase todo mundo que cruzava seu caminho com o do mestre (que, aliás, preferia ser chamado de "ensaiador", levando ao pé da letra a lição sobre humildade). Apesar de ter se consagrado no Carnaval, Neri circulava por ambientes diversos. Chegou a comandar a charanga da Coligay, emblemática torcida LGBTQIA+ do Grêmio, ganhou festivais nativistas e acumulou parceiros na chamada Música Popular Gaúcha.
Ícone da MPG, Nelson Coelho de Castro, 69 anos, define Neri como um homem agregador. Ele acolhia a todos, fosse um roqueiro cabeludo metido a cosmopolita ou um gaudério do rincão mais xucro do Rio Grande. E sempre fazia questão de levar os amigos à Imperadores do Samba. Era como um batismo.
— Nem dava para conversar muito com ele em dia de ensaio, porque ficava muito focado no trabalho. Mas ele fazia de tudo para que tu te sentisse bem — conta Nelson.
Foi voltando da quadra que o artista compôs Mestre Neri, música que narra a experiência de acompanhar o ensaio da Sinfônica Vermelho e Branco, como era chamada a bateria de Neri Caveira na agremiação. "Quando fui chegando, Imperadores/ Fui de encontro aos seus tambores/ Para ver o mestre brilhar/ A distância, ele estava tão mais lindo/ Quanta luz que vinha vindo de lá/ Fui atravessando o mar vermelho/ Mas quem disse que eu tinha medo desse mar?/ Seu Neri me olhou sorrindo/ Sejas bem vindo, aqui é o teu lugar", diz a letra da canção que integra o disco Da Pessoa, lançado por Nelson em 2001.
— Cheguei em casa de madrugada, peguei o violão e compus de uma vez só. Estava tão emocionado que chorei fazendo a música — lembra.
Quem também se aproximou da Imperadores por intermédio de Neri foi a cantora Loma, 69 anos. Ela foi uma das primeiras parceiras do mestre no nativismo. Juntos, eles reivindicavam a valorização das contribuições negras para a cultura gaúcha.
— Naquela época, eu era a única mulher negra, enquanto o César Passarinho era único homem negro. O César era apaixonado pelo Neri. Com ele, nós fizemos um trabalho muito lindo de resgate das tradições afro do Rio Grande do Sul — conta Loma. — O que tu largasse na mão do Neri, ele saía tocando. Tocava até tambor de maçambique, que nem conhecia direito. Isso começou a chamar atenção nos festivais. Não demorou muito para que todo mundo se apaixonasse por ele — afirma Loma.
Quando sofreu o AVC, em fevereiro de 1998, Neri já era nome consagrado no cenário da música regionalista gaúcha. Conforme o filho mais velho, Ilton, o mestre circulava sem nenhum desconforto pelo universo tradicionalista.
— O pai conseguiu a façanha de unir Carnaval e nativismo (risos). Ele se sentia um nativista mesmo, usava até bombacha. Botava a pilcha dele, a alpargata, e ia onde quer que fosse. Ele era o Neri Caveira, ponto. E sempre foi muito respeitado, fez grandes amigos nesse meio.
Um deles foi Neto Fagundes. O músico de 60 anos frequentou a casa do mestre até os últimos meses de vida dele, acompanhando de perto a evolução da doença do amigo. Por conta do derrame, Neri passou a ter dificuldades com a fala e limitação de movimento. Neto lembra com carinho do dia em que conseguiu convencê-lo a comparecer a um ensaio Imperadores do Samba.
— Quando eu entrei empurrando a cadeira de rodas com ele, a Imperadores veio abaixo. Foi uma das cenas mais bonitas que já vi na vida — lembra Neto. — Nos últimos anos da doença, ele ficou recluso. Aí começava aquele burburinho, notícias meio desencontradas, e ninguém sabia ao certo como ele estava. Aquele foi o reencontro dele com a comunidade.
Legado
O mestre relutava em voltar à escola do coração porque não se sentia bem com a própria condição física, que foi piorando ao longo dos anos. As limitações impostas pela doença não combinavam com a personalidade de Neri Caveira, diz Ilton:
— Ele chorava e dizia: "Meu filho, deixa eu morrer". Nunca gostou de depender de ninguém, mas ficou totalmente dependente. Também foi difícil ficar longe do Carnaval, a coisa que ele mais amava. Aos poucos, ele foi se entregando. Era um homem da rua, da noite, do agito; estar naquela situação, para ele, era pior do que a morte.
Quando Neri morreu, centenas de pessoas compareceram ao Cemitério da Santa Casa para a despedida. Uma multidão cantou em coro os sambas favoritos dele, velando o caixão ornado pela bandeira da Imperadores do Samba. Neri Caveira deixou para trás um legado cultural incontestável e o número surpreendente de 24 filhos biológicos. Além de "mestre dos mestres", era também "o Don Juan do Carnaval", como brinca o filho mais velho.
Ilton tem como missão de vida não deixar que a memória do pai caia no esquecimento. Desde a morte de Neri, ele mantém o Centro de Cultura Neri Caveira e a escola de samba Mocidade Alegre, ambas instituições sediadas em Alvorada. A agremiação venceu o Carnaval da cidade no final do mês passado, levando para a avenida a trajetória do grande mestre Neri Caveira, descrito no samba-enredo como "o deus negro do tambor". Não poderia haver definição melhor. Neri Caveira segue presente em cada toque de tambor que se ouve nos carnavais do Rio Grande do Sul, tal qual um orixá que zela pela festa máxima da cultura popular.