Foi em 1945 que a primeira tribo carnavalesca de que se tem notícia, Os Caetés, foi vista pelas ruas de Porto Alegre. De pés descalços, rosto pintado e vestindo fantasias inspiradas em etnias indígenas, um grupo formado majoritariamente por homens negros da periferia passava pelos coretos da cidade cantando: "Nós somos Os Caetés/ Índio forte e destemido/ Nosso pai é o Sol/ Nossa mãe é a Lua/ Abençoa, Senhor, os nossos coirmãos/ Saravá, saravá para eles/ Que combatem sem temor". Era a inauguração despretensiosa de uma manifestação cultural genuinamente porto-alegrense e única no país, que viveria seu auge nos anos seguintes e viria a marcar para sempre o Carnaval da cidade.
Porto Alegre era outra em meados dos anos 1940. O Carnaval de Porto Alegre, também. Não havia escola de samba, somente blocos. Muitos blocos. Criados de forma espontânea nas proximidades dos chamados territórios negros, eles garantiam a folia das camadas populares da cidade. Enquanto isso, o "carnaval dos ricos" levava a elite branca para festejar os dias de Momo nos clubes sociais da época, inacessíveis para a maior parte da população. Havia o Carnaval dos brancos e o dos negros, afinal. Foi a partir d'Os Caetés, do surgimento das tribos carnavalescas, que o Carnaval dos negros experimentou a sua primeira forma de organização.
Nascia aí o "negro Carnaval de índio" da capital gaúcha. Ainda que sem indígenas envolvidos, só negros, como explica o pesquisador de Carnaval Jackson Raymundo, professor do Programa de Pós-Graduação em Literatura da UnB:
— Quem constrói esse movimento são pessoas da periferia urbana de Porto Alegre, que viviam nos lugares à época ocupados pelas camadas populares. Regiões como a que hoje abriga a Cidade Baixa, antigo território negro da Capital. Pessoas negras, sobretudo, e pessoas brancas, sem a participação de indígenas. Somente depois, principalmente a partir dos anos 1990, tivemos desfiles dos quais comunidades indígenas do Estado participaram.
Por que os negros porto-alegrenses queriam ser índios na folia? Ninguém sabe exatamente. Pesquisas acadêmicas que investigam o surgimento das tribos carnavalescas divergem sobre a "razão de ser" da manifestação cultural, mas a explicação mais acatada diz respeito ao contexto de construção de identidade nacional vivido pelo Brasil naquele momento, em meio ao Estado Novo de Getúlio Vargas.
Conforme Raymundo, nessa busca por definir "o que é ser brasileiro", o indígena era tratado como uma espécie de símbolo, o ancestral comum de todas as pessoas do país, alguém a ser respeitado e digno de homenagem. Eram outros tempos.
A tese vai ao encontro do que Hemetério de Barros, um dos fundadores d'Os Caetés, descreve em seu livro de memórias ao remontar a criação da primeira tribo. O carnavalesco revela o desejo de implantar uma espécie de bloco que "representasse os modos e os costumes rudimentares de nossos silvícolas, pois os considerava os verdadeiros donos da nacionalidade". Por isso os pés descalços, os rostos pintados, as fantasias étnicas e a música exaltando a força e a bravura dos povos indígenas. Mas não só por isso.
Eugênio da Silva Alencar, o griô Mestre Paraquedas, aponta para um desejo, por parte dos negros, de se reconectarem com a sua ancestralidade africana por meio de costumes que também são compartilhados pelos povos indígenas. Paraquedas viu de perto o nascimento das tribos (o pai, Sizenando, fundou Os Aratimbós; a mãe, Augusta, fundou As Iracemas; ele, anos depois, ajudou a fundar Os Comanches) e defende que, muito mais do que instrumentos de homenagem, elas foram o pretexto que possibilitou uma reconexão do negro gaúcho com a África.
— Eu sempre brinco que foi porque os negros queriam sair pelados na rua batendo tambor (risos) — diverte-se Paraquedas. — Quando os africanos chegaram ao Brasil, eles se identificaram com os índios. Há várias coisas que aproximam a raça negra e a raça indígena: a relação com a natureza, o andar de pé no chão, a religiosidade, a música, a dança, a coisa de serem povos guerreiros... Então, na minha visão, quando Seu Hemetério criou a primeira tribo de índio, foi na intenção de que os negros pudessem dar vazão às suas necessidades ancestrais. Mas era preciso o pretexto da homenagem, entende? Se criassem uma entidade de negros para sair daquela forma, naquela época, não iam deixar sair — explica.
Fama até no Exterior
As tribos carnavalescas marcaram época na folia de Porto Alegre. A cidade chegou a ter quase 20 entidades do tipo entre os anos 1960 e 1970, quando a manifestação cultural viveu seu auge. Havia tanto tribos que exaltavam etnias nacionais, como Os Aimorés, Os Xavantes e Os Charruas, quanto as que referenciavam indígenas da América do Norte, a exemplo de Os Comanches e Os Navajos. Era o auge dos filmes de faroeste, o que também acabou por servir como referência.
— O ideal nacional estava muito forte quando as tribos surgiram, mas é interessante que, quando pesquisamos os nomes das tribos criadas nessa época, os seus enredos, o que vemos é uma perspectiva muito mais ameríndia do que puramente brasileira. Ousaria dizer que, ainda que o contexto de criação das tribos dialogue com a busca da brasilidade, a prática delas é baseada na ideia de que há algo em comum entre os índios da América — observa Jackson Raymundo.
Enquanto isso, as escolas de samba davam os seus primeiros passos no Carnaval porto-alegrense. A primeira a atuar nos moldes que hoje conhecemos foi a Academia de Samba Praiana, fundada em março de 1960 (na década de 1940, a folia da cidade já contava com a Bambas da Orgia, mas, até meados dos anos 1960, a entidade era mais próxima do conceito de bloco, conforme as fontes ouvidas pela reportagem). Passando longe da suntuosidade que se via no Carnaval do Rio de Janeiro, mas mirando nela, as primeiras agremiações da Capital não chegavam nem perto do que já eram as tribos carnavalescas na virada da década de 1960 para 1970. Elas eram a sensação do momento.
O jornalista Renato Dornelles, que acumula 36 coberturas de Carnaval no currículo, lembra que Porto Alegre chegou a virar destino turístico por conta das tribos. Todo mundo queria ver de perto o "negro Carnaval de índio" da cidade, cuja fama corria até fora dos limites do país.
— Na década de 1970, lembro bem do Carnaval na Avenida João Pessoa. Umas 30 mil ou 40 mil pessoas iam para as arquibancadas, fora quem ficava no entorno. Muitos turistas uruguaios e argentinos vinham a Porto Alegre para assistir ao Carnaval. Vinham para ver as tribos. Depois que elas passavam, os turistas iam embora. Eram espetáculos visuais e teatrais muito fortes — recorda Dornelles.
Embora ambas desfilem em alas e carros alegóricos, quase tudo nas tribos carnavalescas é diferente das escolas de samba. A começar pelo mote do desfile, que é chamado de tema, não de enredo, e tem sempre temática indígena. E a música, que não é um samba-enredo, mas o chamado hino. Há bateria e harmonia dando o tom, mas a batida remete a um ritmo tribal, mais acelerado, diferente dos três tempos do samba. E quem dança o hino, por óbvio, não samba. A coreografia inclui pulinhos e passos marcados que, em outro exemplo do mix afro-indígena que são as tribos carnavalescas, lembram muito as danças para orixás das religiões de matriz africana.
Há rainha e musa de bateria dançando dessa forma na frente do grupo de percussão, mas não há casal de mestre-sala e porta-bandeira, como nas escolas. O que há é uma porta-estandarte, que leva o emblema da tribo sem ninguém a cortejando, e um bandeirista, responsável por fazer malabarismos com um bandeirão nas cores da entidade. As manobras aéreas são muito bem ensaiadas nas sedes das tribos, chamadas de tabas, e não quadras.
A principal diferença está no andamento do desfile. Enquanto as escolas passam reto pela avenida, as tribos pausam o trajeto no meio para apresentar uma espécie de número teatral, a chamada encenação. O hino para de ser tocado, e outra música toma conta da avenida, servindo de trilha sonora para a cena a ser representada, sempre ligada ao tema daquele ano. É o ponto alto do desfile, o momento mais aguardado, quase sempre responsável por fazer os jurados decidirem qual tribo será a campeã. Depois que termina, o hino volta a tocar e os "índios" seguem avançando pela avenida.
Os desfiles das tribos eram tão grandiosos que não havia como as incipientes escolas de samba competirem, lembra Renato Dornelles:
— As escolas estavam engatinhando, eram quase bloquinhos, ao passo em que as tribos já estavam organizadas. Os espetáculos das tribos eram muito ricos, então, quando tribo e escola competiam juntas, sempre ganhava uma tribo. Achou-se melhor ter uma noite só de tribos e uma só de escolas, para que as escolas também pudessem ganhar.
Só que o jogo virou. No início dos anos 1980, as escolas de samba começaram a ganhar força em Porto Alegre. Foi o período em que o Carnaval carioca virou uma espécie de paixão nacional, impulsionado pelas transmissões televisivas. Quando o modelo do Rio de Janeiro vingou em Porto Alegre, as escolas gaúchas conquistaram a simpatia da população. Além disso, após 20 anos desde o surgimento da primeira, as agremiações já não eram mais tão modestas. Havia dinheiro entrando.
Nessa época, teve quem guardasse o figurino de índio no armário e migrasse para as escolas. Muitas tribos carnavalescas encerraram suas atividades nos anos seguintes — algumas, inclusive, para virar escola. Quanto mais uma crescia, mais a outra declinava.
— As escolas de samba ganharam força e condições de sobrevivência, enquanto as tribos estavam sempre correndo atrás. E faziam promoção, traziam astros do samba brasileiro para vir aqui cantar, coisa que as tribos não tinham como fazer. Conforme as escolas iam subindo, os índios iam caindo — lembra Mestre Paraquedas.
Resistência comancheira
A derrocada levou ao cenário de 2023: as quase 20 tribos que marcaram a folia de Porto Alegre nos anos 1960 e 1970 viraram somente uma, Os Comanches, a única ainda em atividade na Capital. A entidade foi fundada em 1959 por um grupo de amigos da Vila São José, entre eles Mestre Paraquedas e Valdir Ribeiro, o Dir, atual presidente da tribo e o único dos fundadores que ainda segue atuante na taba — Paraquedas, por questões de saúde, acompanha somente de longe.
— Sou o último dos moicanos (risos) — brinca Valdir. — Quando criamos Os Comanches, a gente era guri. Um dia sentamos na praça aqui do morro e inventamos de criar a tribo. Fizemos uma ata, botamos a data e fomos embora. A cada ano a gente ia se aprimorando um pouco mais, mas patinamos bastante no começo. No sétimo ano me convocaram para presidente. Montei uma equipe tipo Seleção Brasileira, escolhi a dedo, e a gente ganhou o Carnaval. Bá, aquilo ali foi uma coisa de louco para nós.
Figura conhecida no morro, o último moicano dos Comanches orgulha-se da trajetória vitoriosa da tribo: são mais de 30 títulos de campeão do Carnaval ornando a Taba de Urupá, como é chamada a sede comancheira. O último Carnaval competitivo foi o de 2019, quando a tribo Os Guaianazes ainda estava em atividade. Depois disso, só sobraram Os Comanches.
— Não sei dizer por que só restou a tribo Comanches, não sei por que as outras desistiram. Só sei que estou resistindo porque tenho a minha comunidade do meu lado. Quis desistir quando perdi minha mulher, mas ninguém aceitou — diz ele, lembrando dos anos de glória que a tribo viveu sob o comando dele e da esposa, Georgina, falecida há 13 anos. — Conheci ela aqui nos Comanches. Ela participava normal, depois ficou fanática. Nós dois dava uma dupla desgranida, bá. Tinha que ver o Carnaval que a gente fazia.
Era uma época para deixar saudade. Agora, os desfiles da tribo remanescente passaram a ser somente participativos, já que não há outra entidade do gênero para concorrer com ela. Até houve quem sugerisse que Os Comanches virassem escola de samba, Valdir conta, mas a ideia nem passa pela cabeça de ninguém no morro. Nunca uma escola vingou na Vila São José.
— O povo aqui é índio, tchê. Se eu fizer uma escola, ninguém vai ir. Aqui é vício de tribo, não adianta — diz o presidente.
Os resistentes índios comancheiros apresentarão o tema "Comanches, nos caminhos das matas, revive os tempos de amor da bebida sagrada de Jurema" neste Carnaval. Percorrerão o Porto Seco na noite de 4 de março, cantando o hino composto por Mestre Paraquedas a partir do tema criado pelo carnavalesco Paulo Filandro. Serão dois carros alegóricos e 12 alas dividindo os cerca de 300 comancheiros que participarão do desfile. Ou seja: ao menos nos Comanches, ainda tem muito índio querendo pular Carnaval.
Sem o peso da competição, a tribo não fará a tradicional encenação. Era algo trabalhoso de se preparar, mas servia para contar pontos, que agora não existem mais. De resto, tudo segue com o mesmo primor de sempre, garante Valdir:
— A organização permanece. Não vamos sair na avenida de chinelo de dedo, de fantasia velha, deus o livre. Aqui não tem isso daí. Pode alguém querer falar, mas, se olhar nossas fantasias desse ano e dos outros, vai ver que é tudo novo. Isso para nós é questão de honra.
Tradição de pai para filho
Com a proximidade do desfile, Os Comanches vêm ensaiando duas vezes por semana, às terças e às quintas-feiras. A reportagem acompanhou um dos ensaios, no dia 7, quando cerca de 150 pessoas estiveram na Taba de Urupá. A maior parte dos participantes é negro e mora na própria Vila São José, onde a cultura da tribo de índio é passada de pai para filho — o que explica o número grande de crianças que corriam pela taba na noite do ensaio, sentindo-se como em casa.
O clima era de festa, em nada lembrando o difícil cenário que a manifestação cultural enfrenta hoje. Valdir relata dificuldade para manter a tribo funcionando. O investimento público que a entidade recebe para fazer o Carnaval não é o mesmo que vai para as escolas, ele diz. De fato, em 2022, o edital lançado pela prefeitura para as entidades carnavalescas distribuiu R$ 1,5 milhão, sendo R$ 120 mil para escolas da Série Ouro, R$ 83 mil para a Série Prata e R$ 40,5 mil para tribos carnavalescas e escolas da Série Bronze.
— As pessoas acham que tribo não gasta, mas tribo paga harmonia, paga intérprete, paga costureira, paga todo mundo, que nem escola. Toda vez que vou para o barracão, é comida para todo mundo, é Uber. Tudo é despesa. Eu queria ver pegarem esse dinheiro e fazerem o que a gente faz. Não conseguem — desabafa o presidente.
Quem controla as finanças dos Comanches é a filha de Valdir, Karem Ribeiro, que ocupa o cargo de tesoureira da tribo. Segundo ela, não raro é ver o pai colocando dinheiro próprio na entidade.
— A gente resiste porque a comunidade é muito ligada nessa coisa de tribo de índio. Quando não temos dinheiro, o presidente bota do bolso, um ajuda aqui, outro ajuda ali. Aqui é o Carnaval da resistência, a tribo da resistência. Não tem outra palavra — diz a tesoureira. — O que a gente consegue ganhar no edital da prefeitura não é o suficiente. E é bem diferente do que uma Imperadores ou uma Restinga recebem.
As comparações com o repasse feito às escolas de samba denunciam uma certa rusga na convivência entre as duas manifestações culturais. Karem afirma que não há rixa entre tribos e escolas, mas também não há nenhuma proximidade. É cada um no seu quadrado.
— Temos uma relação de respeito. De coexistência, digamos assim. Nos respeitamos, mas é eles lá e nós aqui. Não tem integração, a coisa de ir visitar uma escola, até porque não somos convidados. Mas, se nos convidarem, iremos sem problema. O Carnaval é feito por todos.
Para alguns, o Carnaval também é o projeto de uma vida, como no caso de Valdir. Dos 83 anos vividos por ele, mais de 60 foram no meio carnavalesco, sempre junto aos Comanches. O homem e a tribo já são coisas indissociáveis: não existe Dir sem Comanches, não existe Comanches sem Dir. Ele não sabe quanto tempo Os Comanches ainda vão sobreviver, mas sabe que, enquanto estiver vivo, a cultura das tribos carnavalescas também viverá:
— Já não bebo, já não fumo, o único vício que ficou foi o Carnaval (risos). Não importa se tenho que botar dinheiro do meu bolso. Com a idade que estou, não vale a pena juntar dinheiro, o que vale a pena é ter a minha satisfação de sair no Carnaval. Eu vou morrer pulando Carnaval, se Deus quiser.