Gilberto Amaro do Nascimento tinha seis anos e passeava com o pai pelo centro de Pelotas. Caminhava com a cabeça inclinada para cima, às vezes tropeçando pelas calçadas. Virava a cabeça para todos os lados. Era começo dos anos 1940, e os prédios da cidade o encantavam. Ao perceber a admiração do filho por aquela arquitetura, o pai, Juvêncio Cardoso, o indagou: "Está vendo esses prédios? Está vendo as calçadas?". "Tô". "Fomos nós, os negros, que construímos".
Gilberto ficaria mais conhecido como Giba Giba. Aquele diálogo com o pai seria constantemente relembrado por ele. Foi ali que iniciou a convicção de que nunca deveria se sentir inferiorizado por sua negritude. Convicção que permeou sua arte e seu discurso.
Sua trajetória virou tema de exposição, intitulada Giba Giba: o Guardião do Sopapo, que ficou de novembro a fevereiro em cartaz no Museu Júlio de Castilhos, na Capital. Nos próximos meses, a mostra visitará outras quatro cidades do Estado — Osório, Bento Gonçalves, Santa Maria e Pelotas. Seu nome batizou o auxílio emergencial da prefeitura de Porto Alegre destinado aos profissionais da cultura. Para novembro deste ano, está prevista a terceira edição do Festival Cabobu — A Festa dos Tambores, evento que foi criado por ele. Neste mês, seu único disco lançado em vida, Outro Um (1992), deve chegar às plataformas digitais — ainda sem data definida. Ou seja, há muito do legado do artista para ser conhecido e reverberado.
Natural de Pelotas, Giba Giba nasceu em 6 de dezembro de 1936. No começo da adolescência, ele se encontrou com o sopapo — tambor de grandes dimensões (1m50cm de altura por 60cm de diâmetro, produzido com tronco de árvores e revestido com couro de cavalo), oriundo de escravos da região das Charqueadas, em Pelotas, no século 19. Originalmente utilizado em rituais e celebrações, o instrumento passaria a integrar o Carnaval pelotense na primeira metade do século 20. Mais tarde, o sopapo se expandiria pela música popular do artista pelotense.
— Giba Giba e o sopapo formavam uma identidade inseparável. Ele trazia um som da África, e ninguém mais conduziu aquele tambor assim — descreve o escritor e compositor Luiz Coronel, amigo do músico. — Onde chegava com o sopapo, estava decretado o reino da alegria.
O instrumentista e sua família se mudaram para Porto Alegre nos anos 1950. Na mala, estava o sopapo. Já em 1960 ele ajudou a fundar a primeira escola de samba da cidade, a Praiana. Progressivamente, Giba foi ganhando notoriedade no meio artístico da Capital, com apresentações em bares. Logo se notou algo distinto nesses shows.
— Era Giba Giba tocando sopapo e banda. Isso fazia uma diferença enorme na sonoridade. Por isso, as músicas dele eram únicas, pois eram pensadas para o sopapo, aí o arranjo vinha depois — relata o percussionista Edu do Nascimento, um dos cinco filhos de Giba, que chegou a integrar o grupo do pai.
Ao longo de sua trajetória, o músico se consolidaria como um verdadeiro guardião do sopapo. Quando percebeu que o tambor estava caindo em desuso, passou a temer por sua extinção. Com a finalidade de promover o sopapo, criou o festival Cabobu, em Pelotas, em 2000 e 2001. Graças ao evento, viabilizou que 40 sopapos fossem montados para serem usados no Cabobu. Depois, esses instrumentos foram doados a escolas de samba e instituições, pois sua intenção era que o tambor voltasse a ser tocado no Carnaval. O resgate da técnica e a construção dos tambores foi realizado pelo griô e luthier Mestre Baptista, por sua esposa Maria e pelo filho do casal, José Batista. O protótipo elaborado a partir do festival passaria a ser reconhecido como oficial na contemporaneidade.
— O Cabobu se destinava a ser um despertar coletivo, voltado aos valores culturais das regiões sulistas, registrando a presença e a importância do povo escravizado na formação do sul do Brasil — sublinha o luthier, músico e compositor José Batista, autor do livro O Sopapo Contemporâneo — Um Elo com a Ancestralidade. — A importância dessa ação ecoa nas vozes que hoje se organizam por seus direitos de cidadania, lutando pelo reconhecimento e pelo respeito, preservando os direitos dos negros exercerem a liderança de suas heranças culturais.
Produtora de Giba em seus últimos anos de vida, além de ser a curadora da exposição Giba Giba: o Guardião do Sopapo, Sandra Narcizo tem atuado na preservação e divulgação do legado do músico. Ela conta que, quando Giba se mudou para Porto Alegre, ele já trazia o discernimento do que significava o sopapo para Pelotas: o legado da cultura negra.
— Ele queria mostrar para o mundo que os negros trazidos à força para cá trouxeram também muitos legados, na área agrícola e na tecnológica — frisa Sandra. — Esse conhecimento todo foi invisibilizado por muito tempo, com o branqueamento e a colonização branca. Era muito difícil as pessoas entenderem isso. Quando Giba falava em ancestralidade, as pessoas levavam para o lado dos rituais religiosos, e, na verdade, ele se referia ao legado do negro que fez esse Rio Grande do Sul ser grande também.
Unidade de conduta
Giba entendia que havia uma visão muito "branqueada" sobre a civilização do Rio Grande do Sul. O instrumentista costumava promover discussões a respeito não só em suas falas, mas também na construção de suas músicas e peças teatrais. Um exemplo dessa visão podia ser vista nos espetáculos musicais que ele concebeu e participou, como Osso, Própolis, Missa da Terra Sem Males e Ópera dos Tambores — este último adapta o poema Navio Negreiro, de Castro Alves, misturando música e dança.
Seu único disco, Outro Um, venceu o Prêmio Açorianos de Música nas categorias melhor disco e melhor compositor em 1993. O álbum foi produzido pelo amigo cantor e compositor Nelson Coelho de Castro.
— Foi um disco tardio. Ele já poderia ter gravado uns 15 álbuns até ali. Giba já tinha várias músicas conhecidas, mesmo sem gravar, apenas na memória das pessoas. Quando entrava no palco, o público conhecia suas músicas e cantava junto. Foi uma alegria enorme ver a emoção dele em registrar suas canções — lembra Castro.
Aliás, o músico brinca que caminhar com Giba Giba na Rua da Praia era "a pior coisa”:
— Ele era abordado e parado a cada três metros. Feira do Livro, então, nem pensar. Todo mundo conhecia o Giba, e ele dava atenção igual para todos.
Outro Um traz faixas marcantes como Feitoria, Lugarejo, Beirando o Rio e Tassy — essa em tupi-guarani, gravada também por Kleiton & Kledir. Trata-se de um trabalho com uma multiplicidade de gêneros a partir do sopapo, percorrendo ritmos afros, samba, MPB, entre outras sonoridades.
— Giba fazia uma música geral, com características novas, tanto no estilo quanto na forma de compor. Ele não tinha um conhecimento formal de música. Era tudo intuitivo e da forma dele. Às vezes tu ouvias alguma coisa de longe e podia se perguntar: "Parece coisa do Giba". Sempre era (risos). Tinha curvas e retas diferentes. É uma música vibrante na maioria das vezes — descreve o arranjador, compositor, violonista e produtor Toneco da Costa, que foi parceiro musical de Giba.
Toneco foi um dos compositores parceiros do instrumentista, ao lado de nomes como Wanderlei Falkenberg, Toneco, Pery Souza e Maria Betania Ferreira — que foi esposa de Giba. De acordo com o violonista, o amigo tinha percepção muito profunda de que as coisas não andavam no país.
— Por exemplo, alguém comentava: "Bá, cara, há uma nova freeway". Giba respondia: "É, mas as vilas não têm água e saneamento". Ele cobrava o olhar para o social. Possuía essa visão bastante além — recorda Toneco.
Luiz Coronel rememora que Giba lamentava muito o esquecimento das temáticas sociais na música do Rio Grande do Sul. O instrumentista achava que isso afastava a produção local de se integrar com a música brasileira. Giba Giba falava em "unidade de conduta", termo que guiava a sua produção.
— Acho que todo trabalho dele é um apito que convoca a herança africana a participar da criação musical gaúcha. Ele cobrava, entrava em “desintonia” com a ausência de alegria do que se chamou de música tradicional gaúcha. Ele buscava a alegria que a música africana conduz. Aquele convite à dança. Esse caráter estático da música regionalista não servia para ele. Esse era seu posicionamento estético dentro da arte — avalia Coronel.
Giba se integrou à música de caráter regional, chegando a participar de festivais. Beirando o Rio, música composta por ele em parceria com Celso Ferreira, venceu o 8º Musicanto, em Santa Rosa, em 1990. A interpretação foi de Neto Fagundes. Em 1993, ele tocou com o intérprete na 7ª Moenda da Canção Nativa, em Santo Antônio da Patrulha. A canção foi Sete Fuzilados (composição de Neto e Antônio Fagundes), que saiu vencedora.
— Giba sempre foi querido e carismático, praticamente uma entidade andando pela cidade. Quando se encontrava com o sopapo, era um momento muito forte — descreve Neto.
Legado
Inquieto, Giba foi um agente cultural atuante. Compôs para a trilha sonora de Netto Perde sua Alma (2011) e do curta Negrinho do Pastoreio (2004). Realizou parceria com músicos eruditos, como o pianista Geraldo Flach. Participou de peças de teatro e integrou grupos musicais como Canta Povo e Mordida na Flor. Foi condecorado com a Medalha da Cidade de Porto Alegre e o Prêmio Quilombo dos Palmares e integrou o Conselho Estadual de Cultura.
Na primeira metade dos anos 2010, surgiu o projeto de seu segundo disco, que seria focado no samba. O maestro pernambucano Rildo Hora – conhecido por trabalhar com nomes como Zeca Pagodinho, Beth Carvalho e Martinho da Vila — assumiria a direção musical.
— Quando apresentei as músicas do Giba ao Rildo, ele ficou encantado e topou na hora. "Não existe mais gente tão original quanto esse senhor, quero muito isso". Rildo selecionou alguns músicos no Rio para a gravação. E também backing vocals direto da Velha Guarda da Portela – relata Sandra.
O projeto havia obtido financiamento da Fundação Nacional das Artes (Funarte) para realizar uma turnê de 50 shows para divulgar o disco, o que incluiria convidados como Carlinhos Brown, o uruguaio Rubén Rada e músicos gaúchos que trabalharam com Giba.
— Tínhamos um projeto belíssimo para executar em 2014. Mas o Giba fez essa “maldade” de ir embora antes — lamenta a produtora.
Giba morreu em 3 de fevereiro de 2014, após sofrer um choque hemorrágico em uma gastrectomia (procedimento de remoção de parte do estômago). Ele lutava contra um tumor no duodeno.
O instrumentista deixou um acervo inédito, que deverá ser catalogado por uma instituição privada. Sandra aponta que, para isso, há conversações com uma universidade. Ela calcula mais de 300 músicas catalogadas.
— Ele tinha uma lucidez impressionante. Essas músicas precisam em algum momento vir à tona, pois são incríveis — pontua.
Outro legado de Giba poderá ser conferido em novembro, em Pelotas: o Festival Cabobu foi selecionado pelo Edital Natura Musical 2021 e terá sua terceira edição promovendo shows, oficinas e ações formativas.
Mas o legado do guardião do sopapo vai além de suas iniciativas e produções artísticas. Para José Batista, Giba mostrou que a cultura africana se espalhou por todo país, sem perder sua identidade, apenas sofrendo as mudanças de cada local em que habita, o que inclui o sul do Brasil. A herança cultural deixada por Giba é um chamado para um despertar, ele analisa:
— Giba abriu caminhos para que hoje possamos falar sem medo, em todos os lugares, com a diversidade de talentos pessoais que ele carregava. Deixou o exemplo de ser humano igual e simples, com a coragem de dizer o que ninguém cogita ser dito, através de uma linguagem simples, mas com laços ancestrais latentes.
Uma das fundadoras do Sarau Sopapo Poético – dedicado à poesia e música negras, além de homenagear o tambor afro-gaúcho em seu nome –, a cantora Pâmela Amaro destaca que Giba é uma das maiores estrelas da arte e da cultura do Rio Grande do Sul:
— Na composição, deixou em suas letras e canções um legado para o cancioneiro negro do Sul. Ele falava através do sopapo, uma fala forte e profunda. Suas críticas e seu pensamento eram sábios, carregados de muito conhecimento acumulado e vivido. Giba se posicionava, às vezes, com uma certa ironia que tornava suas críticas únicas e marcantes.
A cantora, violinista e doutora em Etnomusicologia Clarissa Ferreira aponta que Giba se tornou muito representativo para a cultura afro-gaúcha. Ela salienta que a trajetória do instrumentista, assim como de personalidades negras gaúchas como o poeta Oliveira Silveira, só chega ao conhecimento geral quando se busca mais sobre o Rio Grande profundo, ou o "Rio Grande autêntico", para além dos mitos, como escreveu Erico Verissimo, e para além das representações do regionalismo tradicional e nativista.
— Assim como eles, grande parte da população negra do Estado teve suas crenças, criações artísticas e histórias invisibilizadas, em detrimento de uma imagem do gaúcho descendente de europeus e construído a partir do mito, nessa sociedade que é pensada “um para a frente, outro para trás”, como fala a genial canção Outro Um, de Giba com Xyko Mestre — assinala Clarissa.
Sandra acrescenta que Giba costumava estar à frente de seu tempo, tanto que muitas vezes era difícil entender o que dizia.
— Naquela época, ele falava de hoje. No dias atuais, seria fácil compreender Giba Giba. O que se está falando hoje era o que ele falava há 50 anos. As letras dele eram muito adiantadas — atesta.
O filho de Giba, Edu do Nascimento, corrobora. Ele reflete que agora tem uma compreensão maior do pai:
— Ele estava sempre adiantado, uns 10 ou 20 anos. Muitas vezes, o pai falava coisas contigo que tu não percebias na hora. Fui descobrindo através do tempo que ele não dava nada mastigado, sempre filosofava. Montar o pai é um quebra-cabeça.
O Auxílio Giba Giba
Anunciado no final de dezembro, o Auxílio Giba Giba (nada a ver com o Auxílio Paulo Gustavo, que é nacional e foi vetado na semana que passou pelo presidente Jair Bolsonaro) já recebeu mais de 4,5 mil inscrições de artistas e profissionais do setor residentes em Porto Alegre. O benefício é pago em uma parcela única de R$ 800, via depósito bancário.
Segundo o secretário municipal da Cultura, Gunter Axt, o guardião do sopapo foi homenageado por conta de sua importância para a cidade e o Estado.
— E também para mobilização da classe artística em torno dos seus direitos, algo pelo que ele sempre lutou muito — pontua Axt.
Contando com apoio financeiro do governo estadual, o auxílio é uma política de contenção das dificuldades acarretadas pela pandemia. O pagamento não é só aos artistas que sobem aos palcos, mas também visa aos trabalhadores da retaguarda. Não há prazo para o término das inscrições: o auxílio só será encerrado quando atingir a cota de 5 mil pessoas beneficiadas.
As inscrições são filtradas por comitês de avaliação, que indicam quem pode ser habilitado, de acordo com os critérios. Em seguida, o nome do beneficiado é publicado no Diário Oficial de Porto Alegre. Já o benefício deve ser depositado na conta bancária em até 60 dias.
Para Axt, o balanço do Auxílio Giba Giba é positivo, pois o programa recebeu mais de 5 mil inscrições. Dessas, até o momento, 4,5 mil foram validadas:
— Acho que houve uma resposta boa da comunidade. Quando propomos esse auxílio, muita gente perguntava se haveria 5 mil agentes culturais para serem alcançados em Porto Alegre. É muito importante a cultura mostrar a sua amplitude.