Há uma turma nascida em 1942 que acalenta o coração dos brasileiros. Um grupo que contribuiu para a definição da sigla MPB nas décadas de 1960 e 70. Que inspirou gerações de músicos. Que fez e faz história. Em 2022, quatro entidades da arte nacional completam oito décadas: Gilberto Gil (no dia 26/6), Caetano Veloso, (7/8), Milton Nascimento (26/10) e Paulinho da Viola (12/11).
Outros nomes importantes logo chegarão à casa dos 80, como Chico Buarque (completa 78 em junho), Gal Costa (77 em setembro) e Maria Bethânia (76 em junho). Só a idade de Jorge Ben Jor é um tanto controversa: a jornalista e escritora Kamille Viola, autora do livro África Brasil: Um Dia Jorge Ben Voou Para Toda a Gente Ver, encontrou evidências de que ele nasceu em 1939, mas o músico defende que nasceu em 1945. Sobre o dia, não há dúvidas: 22 de março é a data para celebrar seus 83 ou 77 anos. Entre os artistas do país também nascidos em 1942, mas que já partiram, há Tim Maia, Nara Leão, Celly Campello e Clara Nunes.
Às vésperas de se tornarem octogenários, os quatro artistas seguem ativos, cada um à sua maneira. Seja com shows, discos ou diferentes demandas. Sempre relevantes, o tempo agrega frescor às suas obras. Celebrando essa longevidade artística, confira, a seguir, como essa turma de 1942 chega aos 80 anos e o que cada um anda produzindo.
Gilberto Gil: em trânsito
Gilberto Gil é uma multipresença espalhada por diferentes meios. Entre setembro e outubro de 2021, ele voltou aos palcos realizando turnê pela Europa. O cantor deve retornar ao continente em junho para um giro comemorativo dos 80 anos, a ser documentado pelo cineasta Andrucha Waddington, também diretor da série Família Gil, prevista para estrear no segundo semestre no Amazon Prime Video.
Em janeiro, foi lançada a minissérie Infinito Brasileiro, protagonizada por Gil e dirigida por Marcelo Hallit. Disponível na plataforma Casa do Saber+, traz o cantor compartilhando suas visões sobre o país a partir de suas vivências. Ainda no campo audiovisual, vale lembrar o especial Amor e Sorte com Gilberto Gil, que estreou no Globoplay em 2020. Os quatro episódios mostram a história por trás da criação de alguns sucessos do cantor, além de trazer performances e parcerias (como Elza Soares, Milton Nascimento e Pitty) para gravar novas versões dessas canções durante a quarentena. As entrevistas foram conduzidas pelo cineasta Jorge Furtado e pelo escritor Carlos Rennó.
Gil vai chegar aos 80 sendo um imortal: em novembro, o compositor foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras (ABL). Trata-se de apenas o terceiro negro na trajetória da ABL, após Machado de Assis e Domício Proença Filho.
O último disco de inéditas é Ok Ok Ok, de 2018. De lá para cá, ele lançou dois registros ao vivo: Gil Baiana ao Vivo em Salvador (2020), com a banda BaianaSystem, e São João em Araras (2021), gravado em seu sítio.
O doutor em história Maurício Barros de Castro, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e autor de Gilberto Gil: Refavela, aponta que a música de Gil sempre esteve conectada a questões contemporâneas, refletindo os múltiplos interesses do artista: tecnologia, políticas culturais, ancestralidade africana, herança nordestina e o diálogo constante com as novas formas de pensar o mundo.
— O disco que gravou com o BaianaSystem mostra como Gil chega aos 80 anos, repleto de vitalidade e com a obra em total diálogo com as novas gerações — diz Castro.
Cássia Lopes, professora e pesquisadora nas áreas de Letras e Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia e autora do livro Gilberto Gil: a Poética e a Política do Corpo, salienta que o cantor pensa e interpreta os tecidos sociais brasileiros não só com suas canções, mas traz, ao longo de sua carreira, uma poética e uma política com o corpo. Ela lembra que, quando foi Ministro da Cultura (2003 a 2008), Gil participou de eventos de cunho político nos quais o seu lado artista também era convocado à cena, produzindo uma politização da arte e uma estetização do político.
Para Cássia, Gil sempre esteve atento a diversos ritmos e saberes presentes na paisagem brasileira, transitando sem estabelecer uma hierarquia entre eles:
— Com Dorival Caymmi, aprendeu a não ter a dor como uma rival, mas a afirmá-la de maneira criativa. Também a ler o mar e a sentir a poesia e as tensões presentes na paisagem baiana e brasileira. Com Luiz Gonzaga, abriu a sanfona mundo afora, numa descoberta do sertão e de suas festas populares. Atravessou o samba, o reggae de Bob Marley, o rap, ouviu a Banda de Pífanos de Caruaru, a canção romântica, o violão de João Gilberto, revelando a riqueza da musicalidade brasileira, sem fechar os olhos para a arte que se faz em nível global. Foi da soul music, em Refavela (1977), em que também se inspirava no Nordeste, à música de discoteca no álbum seguinte, Realce (1979).
Caetano Veloso: inquieto
Como músico e agente político, Caetano Veloso está sempre em movimento. A principal iniciativa que encabeça neste momento é o Ato Pela Terra, manifestação prevista para o dia 9 de março, em Brasília. Acompanhado de artistas como Seu Jorge, Lázaro Ramos e Christiane Torloni e ONGs, o cantor e compositor vai protestar contra um combo de projetos de lei chamado por ambientalistas e opositores de “pacote da destruição”. Os textos flexibilizariam o rigor sobre a proteção da Amazônia, afrouxariam o uso e registro de agrotóxicos e liberariam a mineração em terras indígenas – reivindicação que parte de garimpeiros e empresas mineradoras.
A preocupação de Caetano com a natureza se intensificou nos últimos anos. Em 2020, ele lançou uma série de encontros musicais no Rio, para comemorar o Dia do Meio Ambiente. Gravadas em 2019, as apresentações marcaram o lançamento do app da 342Amazônia, plataforma de ativismo ambiental que tem Paula Lavigne, companheira do músico, como uma das idealizadoras.
Além da causa ambiental, Caetano vive se posicionando contra o governo do presidente Jair Bolsonaro. Em entrevista ao jornal Metrópoles, disse que “O governo que temos agora não tem paralelo com a ditadura, tem saudade dela, paixão pela deformação do poder público” e “é o avesso do que devemos ser”.
A produção musical segue fértil. Em outubro de 2021, lançou Meu Coco, seu primeiro álbum solo de estúdio desde 2012. A turnê passará por Porto Alegre, com três datas no Auditório Araújo Vianna: 8, 9 e 10 de abril.
Em janeiro, Caetano virou desenho animado no clipe O Leãozinho, da Rádio Bita, braço do projeto de animação Mundo Bita. Até o fim do ano, devem sair mais vídeos. Outro lançamento previsto é o livro Letras (Companhia das Letras), com todas as canções do artista. A organização é do poeta e ensaísta Eucanaã Ferraz.
Vale lembrar que, em 2020, o documentário Narciso em Férias, de Renato Terra e Ricardo Calil, trouxe um relato íntimo do artista sobre sua prisão pela ditadura militar em dezembro de 1968.
Ou seja, Caetano é uma multipresença, espalhada em diferentes linguagens ou discursos. Para Rafael Julião, doutor em literatura brasileira e autor do livro Infinitivamente Pessoal: Caetano Veloso e Sua Verdade Tropical (2017), seria até possível afirmar que Caetano é uma onipresença, pois está sempre pronto para se instalar no cerne da discussão de seu tempo. Julião reflete:
— Sua fala pública e sua afirmação política espalharam-se por jornais e memes, ao exaltar a inteligência e contestar a burrice. Continua estando aqui presente, como um vate teimoso, a seguir insistindo em um destino luminoso para o Brasil em meio a mais esse momento angustioso. E é com essa teimosia que se permite afirmar, em recente canção (Não Vou Deixar, do disco Meu Coco), que não vai deixar que esculachem com nossa história, porque aqui há quem saiba cantar.
É também o tipo que não se acomoda com o sucesso, destaca o poeta e escritor Carlos Eduardo Drummond, autor, em parceria com Marcio Nolasco, de Caetano, Uma Biografia:
— Como na máxima dos modernistas, para ele o passado não é para se repetir. O olhar é para o novo, é na direção do futuro, e com uma necessidade constante de ruptura, que são ferramentas vitais para sua produção.
Essa necessidade, ressalta Drummond, pode ser percebida desde os primeiros discos. Basta comparar a estreia (Domingo, em parceria com Gal Costa), de 1967, com Caetano Veloso (1968) e Tropicália ou Panis et Circenses (1968), onde o Tropicalismo se consolidou. Ou o clima melancólico do exílio do cantor em Londres, o experimentalismo de Araçá Azul (1973), a parceria com a banda Black Rio no auge da soul music, a influência do rock brasil no disco Velô (1984)...
— Também como os modernistas, Caetano devora essa cultura diversa que chega até ele e depois recria à sua maneira — atesta Drummond.
Julião corrobora:
— Esse Caetano que vai se desdobrando em muitos chegou ao novo milênio atento a tudo, renovando seu público, experimentando sonoridades e mantendo elevada a discussão sobre cultura e política no país. Seu mais recente álbum, Meu Coco, tem esse vigor de se mostrar cheio de novidades e, ao mesmo tempo, de afirmar mais uma vez tudo aquilo que, de ponta a ponta, sua obra enuncia.
Milton Nascimento: global
Ao mesmo tempo que irá festejar oito décadas de vida, Milton Nascimento pretende se despedir dos palcos em 2022. O anúncio da turnê A Última Sessão de Música foi realizado em outubro de 2021, mas ainda não foi divulgada nenhuma data de apresentação.
O show mais recente de Milton foi a live com a Orquestra Ouro Preto, em dezembro, quando celebrou os 50 anos do disco Clube da Esquina, que serão completados neste mês. A apresentação foi realizada no Cine-Theatro Central, de Juiz de Fora (MG), sem presença de público. Aliás, três shows de encerramento da turnê Clube da Esquina adiados por conta da pandemia foram remarcados para abril.
A comemoração do álbum já havia começado com a minissérie Milton e o Clube da Esquina, que foi ao ar em 2020, pelo Canal Brasil (hoje disponível no Globoplay). Com direção de Vitor Mafra e participações de nomes como Samuel Rosa, Iza e Ney Matogrosso, o programa se debruça sobre as canções e a intimidade de Bituca, Ronaldo Bastos e os irmãos Márcio e Lô Borges.
O último disco de estúdio com inéditas de Milton foi lançado em 2010, intitulado ...E a Gente Sonhando. A partir daí, Bituca se dedicou a registros ao vivo e regravações. Um desses trabalhos foi o EP Existe Amor, de 2020, em parceria com Criolo. Em dezembro do mesmo ano lançou o single Drão, composição de Gilberto Gil, para a trilha sonora da série Amor e Sorte. Mas há novidade prevista para 2022: Milton publicou em janeiro um vídeo em estúdio, destacando que estava na gravação de seu primeiro projeto do ano, sem dar maiores detalhes.
Falando nisso, Milton costuma ser ativo em suas redes, com vídeos e publicações ternas. Porém, ele já aproveitou o espaço para falar de política: no feriado de 7 de setembro de 2021, quando vários apoiadores do governo federal ocuparam as ruas de cidades do país com discursos contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso, publicou um vídeo interpretando Cálice. Composição de Chico Buarque e Gil, a música é um símbolo da resistência à repressão da ditadura militar no Brasil. Na legenda da postagem, Milton protestou escrevendo “Fora Bolsonaro”.
O jornalista e diretor artístico Danilo Nuha convive com Bituca desde 2009, atuando na assessoria do artista. É autor do livro Milton Nascimento: Letras, Histórias e Canções. Há 13 anos ele acompanha o músico em suas viagens, shows, compromissos, gravações, encontros com outros artistas, atletas, fãs e celebridades de diferentes áreas. Ele assegura: agenda de Milton antes da pandemia era típica de um chefe de Estado.
— Numa sexta-feira em Nova York, show na ONU. No dia seguinte, Montreal, no mesmo festival que Prince e Robert Plant. Pouco depois, já está em Istambul, tocando numa mesquita com Herbie Hancock, Esperanza Spalding e Wayne Shorter. Essa era a rotina normal dele. E uma coisa que eu sempre pensava nessas viagens é que Milton já ultrapassou todos os parâmetros. Já não se trata somente de um artista e sua música. O que faz da obra de Milton tão relevante é o papel que ele exerce no mundo de uma forma geral — avalia.
Para o jornalista e doutor em Antropologia Paulo Thiago de Mello, autor do livro Milton Nascimento e Lô Borges: Clube da Esquina, Bituca reúne uma voz singular, o domínio da arte de compor e a capacidade construir melodias simples e poderosas com uma harmonia sofisticadíssima. Mello observa que o músico continua relevante hoje porque aprimorou o que antes era talento bruto:
— Isso o manteve relativamente a salvo do envelhecimento natural dos elementos que o tornaram singular. É como um vinho que envelheceu bem.
Paulinho da Viola: cronista
A última vez em que Paulinho da Viola apresentou um trabalho em que músicas inéditas predominaram no repertório foi em 1996, com o disco Bebadosamba. O Acústico MTV, de 2007, até trouxe quatro músicas que não tinham sido gravadas pelo músico. Em 2020, saiu um registro ao vivo feito em 2006, intitulado Sempre Se Pode Sonhar, em que a faixa-título era a única novidade na sua voz.
Paulinho revelou em entrevista ao Estadão, em dezembro de 2021, que já tinha sambas prontos e algumas melodias, além de algumas letras para um trabalho futuro. Em entrevista ao Globo, em janeiro, ele admitiu que já estava tudo combinado para gravar um novo trabalho, mas pediu um tempo para entender melhor como funcionam as formas de gravação e distribuição agora. Para Paulinho, é estranho gravar duas ou três músicas e depois lançar na internet.
Quando conversou com GZH, em fevereiro, o cantor disse que em algumas ocasiões esteve prestes a entrar em um estúdio de um amigo para trabalhar composições novas, mas o processo de gravação atual (cada músico registrando separadamente sua parte) sempre o afastou. Contudo, ele espera, de alguma forma, poder reunir os músicos e gravar um novo trabalho com todos juntos, quem sabe este ano.
Apesar de presente no Instagram — o músico não faz as postagens, embora passem por sua aprovação ou sejam suas sugestões — e tendo realizado em 2020 uma live disponível no Globoplay, Paulinho ainda é aquele sujeito do contato presencial, seja para gravar ou para consumir música (vinil ou CD).
Falando em presencial, Paulinho retomou sua agenda de shows em dezembro de 2021. Ele se apresentou em Porto Alegre em 10 de fevereiro, no Auditório Araújo Vianna.
Autora dos livros Paulinho da Viola e O Elogio do Amor e Ensaiando a Canção: Paulinho da Viola e Outros Escritos, a cantora e filósofa Eliete Negreiros pontua que a obra do músico é atemporal, tratando de temas caros à humanidade desde a Antiguidade, como a impermanência de tudo (Tudo Se Transformou) e o amor (Foi Um Rio Que Passou em Minha Vida).
— Além de lírico, é um cronista de seu tempo, como em Coisas do Mundo, Minha Nega, Comprimido e Sinal Fechado. Seu olhar confere dimensão universal a estes temas: a amplidão e profundidade de seu olhar conferem, às suas composições, um tom de eternidade — reflete a pesquisadora de canção brasileira. — Vejo Paulinho da Viola como um criador original que mantém acesa a chama da tradição do choro e do samba.