Após dois anos longe dos palcos, Pitty volta a Porto Alegre na próxima quinta-feira (17/2), para um show no Auditório Araújo Vianna. Aos 44 anos, sendo 25 de trajetória na música, a cantora baiana viu a agenda de shows paralisada durante a pandemia. De 2020 para cá, a também integrante do time de debatedoras do programa Saia Justa, do canal GNT, seguiu se reinventado: criou um selo musical, virou apresentadora na plataforma Twitch, lançou singles e, em janeiro, o EP Casulo – que conta com participações de nomes como Jup do Bairro e Drik Barbosa. Nesta entrevista a GZH, Pitty fala sobre seus projetos, o impacto da crise sanitária global sobre a arte e o entretenimento e demonstra suas visões sobre a indústria musical, incluindo aí o universo das plataformas de streaming e os chamados NFTs.
O que você está preparando para sua retomada aos palcos?
Estou numa superexpectativa. Vivemos semana a semana nessa maluquice. Desde o ano passado estou preparando essa volta. Seria uma continuação da turnê Matriz (disco lançado em 2019), mas não é a mesma apresentação. Há novidades, músicas novas que surgiram durante a pandemia. A banda estará com novo formato. Então, nós nos adaptamos. Estamos trabalhando nesse roteiro, para que quem já viu esse show tenha novidades. O espetáculo envolve tanto músicas novas quanto aquelas que as pessoas conhecem. É um show completo, que passa por todas as minhas fases.
Como você está se sentindo para voltar?
Como cidadã, tenho que cumprir esse papel de só me apresentar quando for seguro para todo mundo, embora minha vontade seja a de sair tocando desde o ano passado. Optei por não fazer porque achei que ainda não era seguro. A população não estava tão vacinada. Agora eu acho que a gente começa a ter um pouco mais de tranquilidade para poder voltar. Como artista, fico triste, pois toda a equipe e cadeia de produção dependem disso, e ficaram parados dois anos. Mas temos que pensar nesse aspecto da saúde pública. Então, vamos indo.
O quanto você sentiu falta de fazer shows?
Não é fácil dizer. Cada artista e geração têm suas especificidades. Para mim, tudo o que faço é para chegar ao palco. Tudo. Cada música, cada entrevista, cada trabalho é para ter aquele momento de catarse. Nada supera um show ao vivo. Tivemos a experiência na pandemia de vivenciar muitas lives, que foi o que salvou muita gente de enlouquecer, além de dar um pouco de acesso à arte. Mas, cara, cantar junto com milhares de vozes, sentir aquela energia e aquela troca, é muito poderoso. Faz muita falta.
“Casulo” batizou um quadro no seu canal do Twitch, seu selo, um EP e também dá nome à série documental sobre o desenvolvimento do álbum. O que essa palavra simboliza para você?
Essa palavra foi criando contextos e contornos. Foi se ressignicando e crescendo. Começou como parte da grade da minha web TV. Havia vários programas em dias diferentes. Durante a pandemia, senti a necessidade de criar. Pensei: vou montar meu canal de TV na internet. Tinha programa de entrevista, tinha programa sobre literatura, cinema e música. Havia luau que a gente tocava. E tinha o Casulo, cuja ideia era chamar artistas e produtoras que admiro, de uma cena mais nova ou alternativa. Trazer para o estúdio e bora criar uma música. Esse era o desafio. Eu nunca tinha visto isso, tampouco tinha referências. Fomos inventando o jeito de fazer. Deu muito bom! As sessões foram incríveis. Foram quatro Casulos (edições). Aí acabou, fui fazer outras paradas e fiquei com as músicas na cabeça. Fui maturando, a lagarta foi se transformando e a palavra “casulo” foi ganhando cada vez mais significado para mim. Esse projeto ficou um ano encasulado (risos). Então, saiu agora. Tivemos um tempo para trabalhar as faixas com calma, mixando com muita atenção.
De que maneira você pretende tocar o selo musical? No que pretende focar?
Criei o selo sem querer, na verdade (risos). Estou sempre ligada nas coisas novas. Troco muita ideia com Rafael Ramos, que é meu diretor artístico e produtor há muitos anos. Estamos sempre de olho nas cenas. Gostamos de pesquisar, ver o que está sendo feito. Como se está gravando hoje em dia, como se consome música. Tive vontade de ter um selo para, de repente, movimentar um pouco a cena. Ouvir vozes novas, principalmente femininas. Há tanta banda de rock massa, com mulheres. Não só de rock, de todos os estilos: funk, pop, hip hop. Casulo veio para ser esse catalizador, para juntar muita coisa a partir desse primeiro produto, que é o EP com o documentário. Agora vou ver como vou tocando. Até porque temos que ir nos adaptando às coisas que estão acontecendo. Eu não imaginava que em 2022 a gente ainda estaria nessa situação pandêmica. Lembra quando há dois anos disseram para a gente que seriam 15 dias?
Saudades.
“Não, galera, dois mesesinhos e só.” Estamos agora há dois anos… Não quero ter uma ideia rígida a respeito desse projeto porque quero entender o que isso pode ser. Mas sempre me inspirei nos selos alternativos, como a Ipecac Recordings, do Mike Patton (vocalista da banda Faith no More).
Toda ferramenta nova pode ser boa ou ruim. Só que, se a gente não troca ideia sobre isso, vai pelo caminho fácil, de usar a ferramenta de modo passivo.
O selo seria, então, algo como era a Banguela Records para a Warner.
Exatamente. Para lançar coisas mais alternativas e diferentes. Como é o selo do Jack White, o Third Man. Como o selo da Madonna, Maverick, que lançou o Jagged Little Pill, disco de estreia da Alanis Morissette. Me inspirei em selos assim.
A faixa de abertura do EP é Diamante, parceria sua com a Drik Barbosa e Weks (Daniel Weskler, marido de Pitty). De que modo essa música reflete suas vivências?
Quando a gente escreveu a letra, pensávamos na condição da mulher como um todo na sociedade. Acho que, quando fomos construindo ali, fomos pensando nisso. Ela trouxe a ideia do refrão, aí fui dropando as notas que ela foi propondo. Casulo foi um projeto de muita entrega, de abrir a porta do coração e ver no que dá, baixar as armas, mesmo. Não ter algo premeditado, e sim ver o que acontece. Deixa eu ver o que acontece quando encontro a Drika. E foram acontecendo coisas diferentes, pois cada uma das quatro faixas tem sua própria onda.
Tem um verso de Diamante que diz: “Presa em manchetes garrafais/ Inocentada numa nota de rodapé”. Quantas vezes isso não aconteceu com você?
E quem lê a nota de rodapé? (Risos.) Também é uma analogia às coisas que acontecem na vida. Essa cultura do cancelamento, de apontar o dedo, do “lacrou” ou “matou”, essa coisa meio violenta. Como se, quando alguém se dá bem, outro tem que se dar mal. Uma vez que rola a fake news, para tirar aquilo ali de cima, mano, é treta. Difícil.
Você já vivenciou várias mudanças na indústria. Agora a gente vive uma época de engajamento, algoritmo, números de execuções em plataformas de streaming. Quais são as principais dificuldades que você enfrenta para viver nesse mercado?
As coisas estão mudando cada vez mais rapidamente. Acho que é muito importante entender os movimentos atuais e jogar com eles. Como era em qualquer época, há concessões que são matadoras de arte, digamos assim. Isso sempre aconteceu. Música sempre tem um lado avassalador, e você pode escolher o que faz bem para si. Hoje a gente vive essa cultura do algoritmo. Por mais que as pessoas achem que estão escolhendo o que querem ouvir, os algoritmos às vezes te entregam produtos que são predeterminados. A gente tem que se adaptar a esse cenário. Agora me disseram que a onda era fazer músicas com menos de dois minutos, pois ninguém ouve mais de 30 segundos... Pô, beleza. Então vamos voltar a ouvir punk rock, pois o som mais longo ali tem dois minutos. Vamos ouvir Ramones (risos). Então, no fim acaba sendo sobre o tipo de preocupação que se tem com o conteúdo. Como a gente coloca a arte, a lírica e o trabalho de quem compõe. Será que tudo se resume a estética? É só forma? Por que a forma também é importante. O rock, por exemplo, é um movimento estético muito forte. Observamos décadas através de imagem. Mas sempre há ali uma mudança cultural que vem junto.
Esse contexto mudou sua forma de trabalhar?
Quando faço música, não fico pensando em números. Reflito se aquela música faz sentido para mim, se fará sentido para quem gosta do meu trampo, mas, principalmente, se é aquilo que quero transmitir naquele momento. Pode-se fazer sob encomenda também, mas não é o caso para mim como artista. Tem que ser a expressão do que estou sentindo e observando. Nina Simone falava isso, que é dever do artista refletir seu tempo. Para mim, é ser uma cronista deste tempo e dos meus sentimentos. Não é seguir uma fórmula. Você vai em muitas vertentes ou lugares e o papo é: “Ó, começa assim, depois vai para esse acorde aqui, depois tem que ter uma parte assim, tem que dizer tal coisa, durar esse tempo e acabar”. É uma caixa, um pacote pronto. Um jeitinho de fazer no que, aspas, é o “gosto popular”. Mas o gosto popular também pode ser provocado, também ser alertado para ouvir outras coisas. Em todas as gerações houve alguém que ousou desafiar esse status quo e sair da fórmula. É aí que os movimentos acontecem, as revoluções: sempre que alguém resolve sair do padrão do momento. Então, meu negócio é quebrar as fórmulas.
É aí que os movimentos acontecem, as revoluções: sempre que alguém resolve sair do padrão do momento. Então, meu negócio é quebrar as fórmulas.
Existe a sensação de que não só o artista, mas profissionais de diferentes áreas precisam gerar conteúdo a toda hora. Não basta só a arte ou o trabalho, também têm de alimentar as redes, estar atento ao que acontece. Você sente essa pressão? Não é exaustivo?
Não sei se chamo de pressão. Isso faz parte da contemporaneidade. Agora, o quanto disso a gente deixa entrar na nossa vida, o quanto a gente considera importante para o nosso trabalho, ou seja, a medida que você vai dar para isso é outra coisa. Acho que nada disso adianta se você não tiver uma música ou uma arte consistente, algo com mais substância, algo que toque as pessoas de forma diferente. O tempo é rei, é o que vai dizer o que fica ou não. Esses dias vi um tweet muito engraçado que dizia: “Amiga, você não está produzindo conteúdo, só está reproduzindo a dancinha do TikTok que alguém desesperado inventou para ganhar um coraçãozinho” (risos). É isso, a galera está reproduzindo conteúdo. Que conteúdo é esse mesmo? Mas tudo bem. É uma época de ressignificar muitas palavras. É tudo novo para muita gente.
Houve alguma melhoria no mercado musical?
Acho que sempre há. Essa coisa de ter o mundo inteiro na sua mão, ter acesso a culturas que antes eu não teria como alcançar sem intermediários. Por exemplo, há uma banda indiana de rock, e eu tenho a possibilidade de chegar até ela, não preciso de uma curadoria me dizendo aonde encontrar. Toda ferramenta nova pode ser boa ou ruim. Só que, se a gente não troca ideia sobre isso, vai pelo caminho fácil, de usar a ferramenta de modo passivo.
Você se reinventou na pandemia, com uso do Twitch. Como é a experiência de streamer?
Eu não achava que ia me divertir tanto. Aprendi para caramba. Foi muito doido, porque entrei numas e falei: “Cara, isso vai ser a minha válvula de escape criativa”. Em cada programa no Twitch, eu ficava operando a mesa de corte. Não eram só lives de abrir a câmera e ficar falando. Tínhamos VT, estilo MTV. Por exemplo, fazia um top 10 músicas que mais curti na semana, aí passava um trecho de cada música para a galera. E quem rodava o VT era eu mesmo apertando um botão (risos). Às vezes tinha que ficar cortando câmera ao vivo. Então, imagina o que não foi o aprendizado desse negócio. Fazia roteiro, fazia pesquisas. Eu amei.
A sensação que tenho é que está cada vez mais difícil se aprofundar. Não significa ser intelectual. Não é isso. É trocar mais ideia sobre as coisas do que simplesmente ‘arrasou kkk’.
Você pretende seguir elaborando programas para a Twitch quando o calendário de shows voltar plenamente?
Olha, eu curti muito, mas não dá para conciliar. É um trabalho full time: faz o roteiro de manhã, busca os convidados, testa equipamentos, uma hora antes do ao vivo já estava lá pronta. Tive convidados muito legais, como Arnaldo Antunes e Adriana Calcanhotto. Aprendi para caramba. O Saia Justa me trouxe essa desenvoltura de ficar ao vivo na frente da câmera. Você vai pegando a manha. Mas é difícil conciliar com a vida de artista musical. Algum dia, posso voltar a ter um programa. Vou vivendo as coisas. No momento, estou focada no Casulo e entender como a gente volta para os palcos.
Em dezembro, você anunciou que teria uma loja que venderia NFTs. Alguns usuários no Twitter te criticaram. Como ficou esse projeto?
É uma coisa que achei bem interessante. Estou sempre ligada em tecnologia, no que pode vir a ser, e surgiu essa proposta de uma loja de NFTs. Agora, preciso pesquisar e estudar, marcar com algumas pessoas, para eu poder tocar essa ideia. Estou buscando estofo para entender primeiro.
Seu disco de estreia, Admirável Chip Novo, completará 20 anos em 2023. Há um público que cresceu com você, mas que também se renova. Quais são os movimentos para se conectar com o público novo e manter o vínculo com o antigo?
Isso é um negócio que chama muito a minha atenção e acho maravilhoso. Também estou tentando entender. Tem uma galera que me acompanha desde o primeiro disco, que viajam para shows pelo Brasil inteiro, que droparam todas as eras, e continua fazendo sentido para essa pessoa chegar até aqui junto. Outras pessoas ficaram pelo caminho, afinal, a vida muda. E há outras que surgiram. Sempre foi somando. Acho que isso só fortalece. Se olhar meu DVD Matriz, que foi gravado na Bahia, eu ficava encantada em ver as câmeras no público. “Caraca, que galera massa!” Muita gente jovem, mas também muita gente mais velha, muito barbudão com filho. Tudo junto e misturado. Lembro que meu sogro, acostumado a shows de rock tipo Deep Purple, foi a uma apresentação minha. E comentou: “Nossa, o pessoal do rock hoje em dia está diferente, né? Na época só tinha uns caras” (risos). Bem-vindo a este século! Realmente, era isso o que eu queria.
O seu som, assim como o rock, passou por transformações. Hoje, rola um certo resgate do rock pelo pop oitentista, como você apontou esses dias no Twitter. Fãs de Anitta te atacaram pelo comentário, inclusive, achando que você se referia ao novo single da cantora, Boys Don’t Cry. Você acha que a indústria passa por um momento de reciclagem?
São coisas cíclicas. Essa estética tem sido revisitada há algum tempo, algumas vezes com maestria, como The Weeknd faz. Mas é engraçado o distanciamento temporal. Uma galera que hoje curte esse som não ouviu isso na época. Não escutou Duran Duran ou A-ha quando tocavam nas rádios. E era completamente diferente para quem viu aquilo no tempo real. E a gente fica com a sensação que a galera nunca escutou, que é uma novidade. Às vezes é uma novidade no sentido de pegar e resetar aquilo, colocando sua identidade sobre o original. Mas às vezes não tem identidade, é só um copia e cola. Cada um sabe que sente em relação àquilo. Nos anos 1980, esse tipo de som era bem radiofônico, bem pop. A galera que curtia rock’n’roll nem gostava. Eu só fui pensar sobre essa sonoridade depois que o tempo passou. O problema não é ser pop ou rock, mas não ter identidade em qualquer estilo.
Nos últimos anos, cada vez há mais clipes, filmes e séries cujo único atrativo é referenciar outros produtos culturais de outras décadas. Uma valorização do aspecto nostálgico e afetivo.
Você vê isso em todas as artes. Há assinaturas. AC/DC, por exemplo. Se alguém fizer aquilo ali, vai soar como AC/DC porque a identidade deles é muito forte. Há bandas que transcenderam. Mas que pegaram influência do que aconteceu antes. Ótimo: ninguém inventou a roda. Caetano falava sobre isso na Tropicália: pegar o que era brasileiro, mastigar e colocar para fora de outra forma. Antropofagia é isso.
Esse seu post sobre reciclagem gerou muita discussão. O que você acha do ambiente das redes sociais e dos debates gerados?
A sensação que tenho é que está cada vez mais difícil se aprofundar. Não significa ser intelectual. Não é isso. É trocar mais ideia sobre as coisas do que simplesmente “arrasou kkk”. Parece que as pessoas têm medo, não querem conversar. Nesse episódio, muitos comentários vieram com machismo, misoginia, xenofobia e etarismo. O jeito de a pessoa criticar é com preconceito. Fiquei pensando sobre o etarismo, pois algumas pessoas falavam: “Ah, ela é velha”. Como se isso fosse um demérito. Que valores são esses? Para quem isso é demérito? Quando você é jovem é bem comum achar que não vai envelhecer. Tcharam! Você vai chegar lá! Só envelhece quem está vivo. Juventude é uma condição. Beleza, também. Vi uns comentários do tipo “a minha fav (favorita) está com tudo em cima, bela e jovem”. Gente, beleza também é uma situação. O que mais me pirou foi ficar viajando nesses comportamentos, tentando entender o que essa geração está pensando. Vivendo na ilusão da embalagem, valorizando isso como um bem imutável. Fiquei com muitas perguntas na cabeça: será que a fama para essa galera é um valor em si? Qual a diferença entre fama e reconhecimento?