Reunindo casos emblemáticos do embate entre música e censura no Brasil, o livro Mordaça – Histórias de Música e Censura em Tempos Autoritários foi lançado em dezembro. De autoria dos jornalistas João Pimentel e Zé McGill, a obra foca nos artistas vivos, dando espaço para que contem seus embates com o autoritarismo.
Mordaça foi escrito a partir de depoimentos de alguns dos nomes mais importantes da música brasileira, colhidos entre 2018 e 2021. Foram entrevistados, entre outros, Chico Buarque (que relata perseguições e dribles nos censores), Beth Carvalho (em uma de suas últimas entrevistas), Odair José (que fala das consequências da autocensura), Gilberto Gil (que reflete sobre a impermanência da censura), Caetano Veloso (que viu a palavra “reggae” ser censurada), Leo Jaime (que aborda sua relação com a famosa censora Solange Hernandes) e Geraldo Azevedo (que fala sobre Geraldo Vandré, além de relatar as torturas que sofreu enquanto esteve preso).
Há espaço também para aqueles que agiam nos bastidores para liberar as canções, como Genilson Barbosa, ex-funcionário da RCA que conta como subornava censores, e o advogado João Carlos Muller.
Embora Mordaça tenha um foco maior no período da ditadura militar (1964-1985), deixa claro que a censura apareceu ao longo de toda a história brasileira. Há um capítulo que aborda um episódio recente que ocorreu com BNegão, que denuncia um caso de censura ao seu show no Mato Grosso do Sul, em 2019.
A seguir, Pimentel e McGill contam bastidores da apuração e critérios para seleção das histórias.
O que motivou vocês a escreverem Mordaça?
Zé McGill – Fomos convidados pela editora, mas é inevitável dizer que a motivação para a gente embarcar nesse trabalho foi o atual momento político do Brasil. A censura era um assunto já muito falado em documentários e livros, não estávamos muito empolgados no início. Mas aí começamos a ver novos casos de censura pipocando no governo Bolsonaro e aqui no Rio, com o Marcelo Crivella (ex-prefeito). Então, sentimos a necessidade de fazer esse livro como uma forma de resistência. Como um ato político.
João Pimentel – Os entrevistados queriam falar por conta do momento que estamos vivendo. Todos contando suas histórias com a perspectiva de hoje, fazendo uma ponte para os dias atuais.
A censura não é uma exclusividade da ditadura militar. como Vocês observam no livro, está presente desde os tempos coloniais, quando os índios sofreram várias formas de interdição. hoje, a censura age de diferentes formas, como vocês também pontuam, citando o episódio da Queermuseu. É uma característica inerente à história brasileira?
McGill – Acho que a censura é um derivado de muitas tragédias brasileiras, do nosso conservadorismo, sobretudo. Gil fala no livro que a censura é a briga do velho mundo conta o novo. O conservadorismo querendo manter padrões antigos. A censura está enraizada, mas por conta também de uma mentalidade escravocrata que persiste até hoje. A censura é uma consequência disso tudo, ela se renova, por exemplo, em ataques à Lei Rouanet, na burocracia do Estado. Resolvemos deixar isso bem claro no subtítulo do livro.
Chico Buarque acredita que a perseguição (dos censores) começou quando aprovaram a letra de 'Apesar de Você' por engano. A censura achou que era dirigida a uma mulher mandona, só que era um recado ao presidente Médici.
ZÉ MCGILL
Pimentel – Tivemos poucos períodos realmente democráticos no Brasil. Na ditadura, houve uma geração fantástica da nossa música, de pessoas iluminadas. Tiveram que aturar aquele momento. As coisas vão e voltam. Seja de direita ou de esquerda, a censura é tudo o que o poder quer, cercear o pensamento, cortar as vozes dissonantes.
Artistas entrevistados classificam os censores como pouco qualificados. Ou burros, como declara Caetano. No começo da ditadura, os censores pareciam ter pouco embasamento. Depois, adquiriram mais capacitação. Havia algum ponto em comum entre as pessoas que desempenhavam essa atividade? E o que as levava a fazer isso?
McGill – De 1964 a 1968, a censura era designada para pessoas pouco qualificadas. Funcionários da Polícia Federal eram deslocados para serem censores. Depois houve cursos para isso, aí passou a ser considerado um cargo mais nobre, que pagava bem. O perfil em geral dessas pessoas era conservador. Bem ou mal, estavam ali e desempenhavam um trabalho, precisavam alcançar metas. É injusto que muitos deles tivessem seus nomes divulgados. Os superiores desses caras, os generais e coronéis, não tinham os nomes divulgados. Acabava sempre sobrando para esses subalternos. Esses caras deviam receber uma pressão enorme.
Pimentel – No começo, eram pessoas remanejadas de outros cargos. Uma coisa burocrática. O cara era obrigado a mostrar serviço. Por isso, saía cortando, sem muito critério. Imagina pegar um cara mais ignorante para avaliar Construção, do Chico. Ou músicas com letras ambíguas. Na dúvida, ele corta.
Havia censura em músicas que eram “banais”. O que vocês destacariam?
McGill – Uma coisa que me chama atenção é que resolveram censurar duas músicas do Edu Lobo, Casa Forte e Zanzibar, que eram instrumentais. Podemos especular que os censores imaginaram que aqueles títulos eram nomes de quilombos. Também tem o caso do Ivan Lins, em que há um erro de digitação quando enviaram a letra para a censura: em vez de “amei”, foi “zmei”. O censor deve ter achado que era um código. O Caetano, com a palavra “reggae” em Nine Out of Ten, que o censor achou subversivo porque não conhecia a palavra.
Pimentel – Qualquer coisa estranha virava código secreto. Quem sabe mensagem para os comunistas?
O livro aponta que Chico era uma obsessão dos censores. Por quê?
McGill – Ele próprio acredita que a perseguição começou quando aprovaram a letra de Apesar de Você por engano. A censura achou que era uma coisa dirigida a uma mulher mandona, só que era um recado ao presidente Médici. Talvez Chico nem tenha sido o mais censurado – parece que foi o Taiguara –, mas era o alvo preferido. Os censores criaram uma raiva muito grande dele a partir do episódio Apesar de Você.
Pimentel – Qualquer coisa do Chico já vinha com o carimbão de “presta atenção”. E, quanto mais perseguiam, mais ele falava, mais ele criava metáforas geniais.
Na ditadura, a censura podia prejudicar a trajetória de um artista de maneira decisiva?
Pimentel – Podia acabar com a carreira de um artista. Praticamente acabou com a carreira do Taiguara. Muito censurado, ele foi sendo isolado. Imagina, você ter suas músicas, discos e shows proibidos. Era uma época em que não havia as redes sociais. Muitas vezes o cara perseguido tinha que sair do país.
McGill – Fora as histórias de sofrimento e tortura que há no livro. Geraldo Azevedo é um que conta como foi torturado. Ney Matogrosso narra que viu um cara morrer ao lado dele em uma cela.
Uma consequência era a autocensura. Odair José, por exemplo, tinha músicas que “atentavam contra a moral e os bons costumes”.
Se hoje há perseguição aos artistas é porque a arte é inimiga. Sempre será quando se trata de governos autoritários.
JOÃO PIMENTEL
McGill – Odair José é um artista subestimado. É um dos poucos que falam abertamente sobre a autocensura, que é um assunto meio tabu. Perguntamos para vários compositores, mas vários negavam. Não senti firmeza nas respostas sobre o assunto. Acho que era natural que ocorresse, pois sabiam de antemão que muitas coisas que queriam dizer seriam proibidas, aí eles devem ter dado outros jeitos.
A censura não era uma fabricante de sucessos? Por exemplo, não tinha esse efeito colateral de trazer mais notoriedade às obras proibidas?
Pimentel – Sem dúvida as pessoas ficam curiosas com algo censurado. O que é proibido atrai interesse.
McGill – É o tiro que sai pela culatra. Basta lembrar do episódio em que Crivella mandou recolher uma HQ com beijo gay na capa na Bienal do Livro (em 2019). Depois disso, a venda de livros com temáticas LGBTQ+ triplicou no evento. Especialmente nos anos 1980, Evandro Mesquita (Blitz), Clemente Nascimento (Inocentes) e Leo Jaime falam que a censura ajudou a atrair atenção para eles. Até perguntei para o Clemente se ele imaginava que pudesse ter todas as músicas de um disco censurada (Miséria e Fome, de 1983). Clemente sorriu e admitiu que sim, isso passava pela cabeça dele. Ele sabia que isso também geraria atenção. Censura sempre foi uma atividade inútil e burra. Você não pode vencer o progresso.
Vocês creem que a censura em algum momento possa voltar de forma institucionalizada?
McGill – Quando os artistas começavam a falar com a gente, naturalmente sublinhavam estes anos de Bolsonaro, indicando casos de censura ocorrendo no período atual. Mas, para voltar a censura estatal e oficial, que é proibida por lei, teria de voltar o AI-5. Acho difícil, mas não impossível, afinal, já teve gente pedindo a volta do AI-5 por aí.
Pimentel – Sempre que certos direitos são conquistados, você tem uma reação. O autoritarismo sempre existiu. Antes do golpe militar, o Brasil caminhava para ser um lugar fantástico culturalmente. O golpe de alguma maneira foi uma reação às liberdades. Se hoje há perseguição aos artistas é porque a arte é inimiga. Sempre será quando se trata de governos autoritários.