Ao tomar a decisão de não cantar mais a canção Com Açúcar Com Afeto, Chico Buarque foi coerente com sua biografia, que nunca separou a política da arte. A canção, que foi composta nos anos 1960 a pedido da cantora Nara Leão, vem causando uma série de discussões sobre cancelamento por ser considerada machista.
O que mais tenho ouvido falar é que Chico está sendo censurado. Não creio. Em primeiro lugar, porque não é censura. É uma contestação legítima. Ninguém está sendo proibido de continuar ouvindo a canção.
Chico foi sábio ao compreender a reivindicação do movimento feminista. E é sempre bom lembrar que a arte não é soberana, justamente porque ela não se encerra em si mesma. A arte só se completa com a leitura e a recepção das pessoas.
A ambiguidade, a contradição e o conflito fazem parte da constituição de uma obra de arte. Por isso, para mim, parece natural que a letra do Chico seja contestada. O mundo já não é mais o mesmo. Nossa percepção sobre gênero, raça e classe mudou. Uma obra de arte que não provoque discussões é uma obra fadada ao fracasso. Além disso, um artista não tem controle sobre a recepção de sua obra. Não tem controle sobre como ela irá envelhecer no tempo. O Chico é o Chico, mas não está imune às críticas.
Por outro lado, não esqueçamos que a letra representa a mentalidade de uma época. O registro estético e histórico é importante porque nos ajuda a avaliar as mudanças culturais ao longo dos anos. Além disso, vale o alerta: querer um tipo de arte que sempre se encaixe em nossos pressupostos ideológicos pode empobrecer e reduzir nossa visão sobre o mundo. A vida é mais complexa e cheia de nuances.
E para aqueles que costumam jogar pedras nas pautas identitárias, acalmem seus corações. Chico Buarque não está sendo censurado, nem cancelado. Chico continuará sendo Chico com toda a sua grandeza, com ou sem açúcar.