Com entusiasmo tenho observado a quantidade de autores e autoras negros, indígenas e trans trazendo suas narrativas a público. Há pouco mais de 10 ou 15 anos, este cenário seria impensável no Brasil. O que demostra que o mundo mudou. Apesar dos graves retrocessos que tivemos no governo Bolsonaro, temos visto a emergência de outras histórias que se contrapõem aos discursos hegemônicos.
Por outro lado, tenho percebido no campo literário obras de autores homens e brancos, por exemplo, que procuram escrever narrativas para além da própria realidade, trazendo em seus livros protagonistas mulheres, negros ou indígenas. Há quem veja nesse movimento uma forma de apropriação cultural, ou ainda um jeito de se inserir na “onda do momento”. O tema é delicado.
Não vejo problemas com as “ondas”, porque, assim como o mar, as ondas sempre voltam, e às vezes voltam com mais força. Quanto à apropriação, eu concordo. Creio que escrever sobre uma vida ou sobre uma experiência que não tivemos é uma espécie de apropriação. Entretanto, é bom lembrar que estamos acostumados com a ideia de associar “apropriação” como sinônimo de “roubo”. O que faz todo o sentido quando olhamos para o nosso vergonhoso passado colonial que de fato usurpou culturas pela violência e pelo apagamento identitário.
Mas a questão que se coloca diante da criação passa para uma outra instância. Sabemos que na arte o conceito de lugar de fala não tem sentido. Na arte, tudo é possível. E, como tudo que envolve questões subjetivas, há sempre um risco. Isto é, se um autor branco, por exemplo, decide ter protagonistas negros, não vejo isso como mera apropriação. Agora, é claro que se não houver um rigor ético e responsável com essa representação, a probabilidade de chegar a um resultado caricato é grande, o que nos levaria a um sentimento de apropriação no sentido colonial.
Portanto, se na arte e na criação não faz sentido pensarmos em lugar de fala, é necessário, em contrapartida, preservar o lugar de escuta em relação ao outro.
Além disso, é preciso também que essa escuta seja criativa. E criativa no sentido de muitas vezes renunciarmos a determinados valores conservadores e estereotipados. Porque escrever sobre o outro é também escrever sobre si. Para chegar a algum tipo de verdade estética, algum tipo de honestidade intelectual, não basta pintar personagens de determinada cor, é preciso um mergulho nessas experiências. E, ainda assim, mesmo que haja esse percurso, nada garante o êxito de uma obra. A arte não nos blinda das críticas. Mas o exercício de alteridade sempre vale o risco.