Todo escritor ou escritora é, de certo modo, um leitor sensível de si. Quando nos entregamos à literatura em busca de uma verdade estética, é necessária uma leitura contra si mesmo, uma leitura honesta e que nos permita identificar os erros, os deslizes e as contradições. Entretanto, volta e meia, a ideia de rever textos, filmes ou obras de arte que contenham registros sexistas, misóginos e racistas, por exemplo, é questionada.
Isso não significa que esse leitor interno falhou, mas que a leitura daquele momento lhe pareceu a mais honesta, o que não necessariamente corresponde à realidade. Por isso, vejo com bons olhos entregar escritos para leitores que tenham vivências diferentes das do autor, antes da publicação. Porque por mais que um artista seja genial, existem limitações. Submeter seu texto ao outro é um gesto de humildade importante para quem cria.
Casos como o do escritor Ian Fleming, que anunciou a revisão de seus livros para retirar referências racistas e outras passagens que pudessem ofender os leitores dos dias atuais, nos levam a pensar sobre perdas e ganhos de uma atitude dessas.
Comecemos pelos ganhos: o mundo mudou e não há mais volta. Digo: não há mais como assistir a filmes como James Bond e não reconhecer que as representações de pessoas negras são bastante problemáticas, ou ainda a presença de discursos misóginos. Nesse sentido, a contestação é válida e legítima, além de nos ajudar a desconstruir uma imagem distorcida do outro. Ou seja, fazer uma revisão crítica desses registros nos permite questionar esses estereótipos a partir de um outro ponto de vista.
Já as perdas, nesse caso, giram em torno da possibilidade do apagamento desses registros, pois se por um lado é importante uma preocupação com as representações que agridem os leitores contemporâneos, por outro é importante discutir essas expressões ofensivas. Além disso, querer uma obra de arte esterilizada das doenças do mundo acarreta uma perda de complexidade. A arte não é higiênica. Pelo contrário, uma obra é também reflexo do seu tempo. Creio que não se pode perder isso de vista.
Os livros de Monteiro Lobato, por exemplo, carregam uma série de problemas de representação e de teor racista. Entretanto, apagar essas marcas preconceituosas tira do debate questões que fazem parte da nossa formação histórica. Portanto, não se trata de “cancelar” ou “higienizar” a literatura, mas discutir e refletir sobre ela. Foi colocando o racismo, a misoginia e a homofobia para baixo do tapete que chegamos a este cenário de violência e não aceitação da diferença.