Com o aumento da visibilidade de autores negros no cenário cultural, e do interesse cada vez maior de um público leitor buscando narrativas negras, tenho sido questionado, com certa frequência, sobre o que penso de escritores brancos que trazem personagens negros como protagonistas em seus livros. Em outras palavras: em tempos de cancelamentos e de uma justa pressão por mais representatividade, pode um escritor branco se apropriar de trajetórias negras e colocá-las em seus romances?
Em primeiro lugar, acho importante fazer aqui uma síntese do que entendo por apropriação cultural, caso o leitor não esteja inteirado do assunto: apropriação cultural ocorre quando elementos específicos de uma determinada cultura como símbolos, artefatos, ideias ou costumes são adotados por pessoas ou grupo cultural diferente. Muitas vezes, tal apropriação serve como estratégia de dominação e apagamentos identitários.
No entanto, discutir se uma pessoa branca pode ou não utilizar artefatos da cultura negra, por exemplo, é empobrecer e reduzir a discussão. Até porque a apropriação cultural não se refere a indivíduos, mas a um sistema social que não reconhece a contribuição de povos historicamente oprimidos na formação cultural de um país.
Dito isso, voltemos à questão inicial. Pode um escritor branco se utilizar de protagonistas negros em seus livros? Minha resposta inicial é sim. A arte e a literatura são lugares onde devemos exercer a liberdade. Entretanto, este mesmo exercício traz também responsabilidade. Criar protagonistas negros vai muito além de mudar a cor de personagens, pois isso sim seria uma apropriação cultural.
E acho que este é o ponto: se um escritor branco cria personagens negros apenas por achar que "essa é a tendência do momento", sem antes fazer uma reflexão profunda sobre si e seus privilégios, a chance de fracassar, de produzir caricaturas nocivas à discussão racial, é grande. Escrever é ter a coragem de se expor e de assumir os riscos de até mesmo ser cancelado. O mundo mudou. Estamos mais atentos. Ainda bem.