Um projeto de mapeamento dos locais que serviram à ditadura militar (1964-1985) toma corpo em Porto Alegre. Iniciado em 2016 por estudantes de graduação de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Caminhos da Ditadura em Porto Alegre foi aprofundado desde então, tornando-se referência para a construção da memória do período.
O mapa virtual que aponta espaços de tortura e articulação da repressão – oficial e clandestina – foi incrementado com apontamentos sobre lugares ligados à resistência, além daqueles que contêm referências elaboradas após o fim da ditadura. Os 39 locais de violação dos direitos humanos citados pela Comissão Nacional da Verdade em 2014 estão lá, mas não só isso: a partir de uma base reproduzida do Google Maps, é possível passear, na tela, pela Porto Alegre da boate Flower’s (destinada desde 1971 ao público homossexual da cidade, sofria com perseguições do Departamento de Censura e batidas policiais sistemáticas), da agência bancária da Caixa Econômica Federal à Rua José do Patrocínio (assaltada pelos integrantes da luta armada em 1969), da casa da Rua Déa Coufal, em Ipanema (que teria servido de base para as ações de milícias paramilitares ilegais que atuavam na repressão).
Já são mais de 200 pontos mapeados. Ao clicar sobre cada um, abre-se uma janela com uma explicação sobre o local, sempre referenciada por fontes acadêmicas – são frequentes as citações ao artigo Lugares de Repressão Política em Porto Alegre, de Raul Ellwanger e Vinicius Ribas, além de livros, teses, dissertações e do próprio relatório da Comissão Nacional da Verdade.
O projeto Caminhos da Ditadura em Porto Alegre também inclui caminhadas por esses lugares. Foram realizadas três delas até hoje.
– No total, mais de 150 pessoas se inscreveram, por isso pretendemos realizá-las mais vezes – comenta Anita Natividade Carneiro, que esteve à frente do mapa lançado em 2016 e agora, como mestranda no Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS, trabalha na manutenção e no incremento do mapa e no aprofundamento da pesquisa acerca do ensino da história da ditadura a partir da cidade, sob orientação da professora Caroline Bauer.
Anita e Caroline não estão sozinhas na empreitada. Os trajetos das caminhadas foram elaborados a partir de um esforço coletivo que incluiu 15 pessoas de áreas como direito, comunicação, teatro, turismo e arquitetura e urbanismo. Para ter acesso ao mapa e obter informações sobre as ações do projeto, basta acessar ufrgs.br/caminhosdaditaduraemportoalegre ou os perfis de Facebook, Instagram e Twitter Caminhos da Ditadura em Porto Alegre.
Leia a seguir a entrevista com Anita Natividade Carneiro.
Entre todos os Estados brasileiros, o Rio Grande do Sul teve o maior número de locais com violações de direitos humanos durante a ditadura militar (1964-1985), segundo conclusão da Comissão Nacional da Verdade divulgada em 2014. A que se pode atribuir isso?
Acredito que principalmente por ser um Estado de fronteira com o Uruguai e a Argentina, em razão da cooperação entre os países, com apoio estadunidense, para perseguir indivíduos que lutavam contra as ditaduras no Cone Sul, conforme a Operação Condor. Além disso, o Rio Grande do Sul possui um histórico de resistência pré-golpe de 1964 com a mobilização da Campanha da Legalidade e do Grupo dos 11, ambos organizados por Leonel Brizola. Bem como a força que o trabalhismo, do PTB, partido de João Goulart, tinha no Estado. A vigilância precisava estar mais próxima.
A Comissão Nacional da Verdade listou 39 espaços de violação dos direitos humanos por parte de agentes do Estado no período. O projeto Caminhos da Ditadura já chegou a mais de 200 lugares, incluindo, por exemplo, os locais de resistência. Que critérios foram usados para definir esses últimos?
A resistência é aqui entendida como qualquer atitude que desafiasse a ditadura e a repressão, como qualquer movimento civil ou militar de violação de direitos humanos em suas mais variadas formas. Além disso, o relatório foi lançado em 2014, muitas pesquisas foram desenvolvidas depois – inclusive com ajuda dos trabalhos da Comissão –, por isso também a diferença. E, conforme o próprio documento da Comissão, no capítulo 15, buscaram-se espaços em que ocorreram violações de forma sistemática; já o nosso projeto adota um critério diferente, de inserir qualquer local que possua uma história relacionada com a ditadura em Porto Alegre.
Há locais mapeados, como é o caso da “Casa da Luíza Felpuda”, um bordel de encontros destinado ao público homossexual localizado na Rua Barros Cassal, no Bom Fim, cuja atuação transcende a ideia de resistência política tradicional ao regime. São locais que tiveram outra atuação além da questão política, ou que foram políticos de modos não convencionais. Por que esse tipo de local está no mapa?
Para tentar romper com a ideia de que resistência é somente “pegar em armas”. As resistências também são diversas, seja a forma de expressão de gênero, sexualidade, classe ou raça, como vemos em muitos pontos do mapa. A ditadura também pregava determinados padrões de “moral e bons costumes”, ligada a pautas mais conservadoras. Sabe-se que houve repressão contra pessoas que simplesmente viviam suas identidades, como aconteceu com a boate Flower’s, na Capital. A própria questão da raça e o debate sobre racismo eram perseguidos pela ditadura, que ainda acreditava em uma democracia racial, vigiando e reprimindo pessoas e movimentos que quisessem trazer a pauta sobre as relações étnico-raciais para um público mais amplo.
Acredito que, de uma forma geral, o país não conseguiu ainda criar lugares de memória sobre a ditadura da forma que deveria.
Entre os locais mapeados, há espaços que hoje são batalhões da Brigada Militar, sedes da Polícia Federal e do Comando Militar. Mas há também delegacias clandestinas, como a do Solar Conde de Porto Alegre, no Centro Histórico. Há muitas dessas delegacias? E ainda: pode haver mais além das já descobertas?
Possivelmente sim. A ditadura queria preservar uma ideia de legalidade em suas ações, e o discurso “oficial” da época é de que não existia tortura. Os centros clandestinos de tortura funcionavam desde os primeiros anos do golpe, um exemplo é o “Dopinha”, em Porto Alegre. Os locais escondidos serviam para que os agentes da repressão tivessem mais liberdade/autonomia em praticar tortura, funcionando fora de qualquer lei que ainda poderia existir nos lugares oficiais.
Foram mapeados locais abertos onde foram realizadas sessões de tortura, como a enseada do bairro Cristal e o Morro da Polícia. É possível mensurar o quanto esses lugares foram usados para esse fim?
Não é possível mensurar, pois com a documentação a que temos acesso não é possível chegar em uma quantidade exata. Com o fim da ditadura e as políticas de proteção de documentos, torna-se muito difícil precisar números exatos até hoje, pois não temos acesso à informação. Além de termos sofrido com as ações do próprio Exército como a queima de arquivos, ao final da ditadura.
Os locais mapeados contêm placas, sinalizações ou algum outro tipo de referência à memória do período, como, por exemplo, ocorre com o Monumento aos Expurgados, no Campus Central da UFRGS?
Alguns locais contêm placas, por conta de um projeto importantíssimo chamado Marcas da Memória, organizado pelo Movimento de Justiça e Direitos Humanos, que inseriu nove placas em lugares ligados à violação de direitos humanos na Capital. Existem outros espaços de memória com monumentos como esse e também o Memorial aos Mortos e Desaparecidos e o Memorial Pessoas Imprescindíveis. No entanto, são muitos outros locais que poderiam ter alguma referência a sua história com a ditadura, essa é uma das lutas do nosso projeto.
Há ações semelhantes em outras cidades? E como se pode classificar a repressão em Porto Alegre e o trabalho de criação de uma memória dessa repressão na cidade, tendo em vista o que é realizado no país como um todo?
Sim, existem outras cidades que propõem esse mapeamento, elas estão listadas no site. Mas são poucas as iniciativas dos poderes estaduais e municipais para com a memória da ditadura. No Brasil, só temos um espaço de memória institucionalizado sobre a ditadura, que é o Memorial da Resistência, em São Paulo. Houve a tentativa de criar, em Porto Alegre, no Dopinha, o Centro de Memória Ico Lisboa, mas não teve suporte suficiente do governo, apesar de toda a mobilização sobretudo do Comitê Carlos de Ré. Acredito que, de uma forma geral, o país não conseguiu ainda criar lugares de memória sobre a ditadura da forma que deveria. É um tema muito sensível socialmente, e, sem governantes que apoiem/criem políticas de memória, torna-se ainda mais complicado de tratar desse período. A proposta do Caminhos da Ditadura em Porto Alegre serve justamente para isso, ser um projeto de reflexão sobre esse tempo, sobre os legados que ainda temos da violência sofrida e o resgate da resistência daqueles e daquelas que denunciavam e defendiam um país com plena democracia.