Por Daniela Sallet
Jornalista
Era o ano de 1918 quando a Companhia Swift do Brasil S.A. inaugurou seu parque industrial na cidade de Rio Grande. O frigorífico ficava junto ao porto e tinha um cais próprio, para agilizar o carregamento dos navios que levavam a carne gaúcha para a Europa e os Estados Unidos. Mas por que a paulista Tarsila do Amaral, artista que não frequentava o Rio Grande do Sul, desenharia o frigorífico Swift? A resposta está em uma história com múltiplos personagens e paisagens que vêm à tona justo agora, quando a Semana de Arte Moderna, realizada a partir de 13 de fevereiro de 1922, completa um século.
Ícone do modernismo brasileiro, Tarsila estava na Europa no momento da realização do evento. Não participou da Semana de 22, mas, a partir do regresso, passou a fazer parte do chamado Grupo dos Cinco, com Anita Malfatti, Mário de Andrade, Menotti del Picchia e Oswald de Andrade. Sua obra Abaporu, de 1928, hoje no Museu de Arte Latino-americana de Buenos Aires (Malba) é considerada um símbolo do movimento modernista. Aba (homem) poru (que come) representa a antropofagia, ou o absorver da cultura europeia para transformá-la em algo nacional. A pintura foi leiloada em Nova York, em 1995, por US$ 1,3 milhão.
Além das valiosas telas impregnadas de cores, a pintora também era desenhista. No decorrer da trajetória, ilustrou dezenas de livros, como Feuilles de Route, do franco-suíço Blaise Cendrars, Pau-brasil, de Oswald de Andrade, e A Moreninha, de Joaquim Manoel de Macedo. O desenho com o Swift rio-grandino mostra o frigorífico e sua chaminé, um navio ancorado no porto e, no canto inferior direito, um gaúcho a cavalo, com chapéu e pala típicos. Faz parte de uma série que também tem representações do Cristo Redentor (RJ) e da ponte Hercílio Luz (SC). Nos 15 trabalhos em nanquim sobre papel, medindo 16cm ou 17cm de largura por 11cm ou 12cm de altura, o que há em comum são paisagens da costa brasileira, lugares com acesso ao mar.
A coleção foi enviada de Portugal, onde Tarsila estava com o então marido Oswald de Andrade, ao poeta modernista Guilherme de Almeida. Em 1925, na esteira da Semana de 22, ele e a esposa Belkiss, conhecida como Baby, saíram em viagem de navio pelo litoral brasileiro. Guilherme iria apresentar, em algumas capitais, a conferência A Revelação do Brasil pela Poesia Moderna. E assim o fez, em teatros de Porto Alegre, Recife (PE) e Fortaleza (CE). O projeto era publicar o texto da conferência em um livro, acompanhado das ilustrações de Tarsila e de poesias de outros autores modernistas. Mas Guilherme adiou os planos quando o pai faleceu. Somente a partir de 1962, na celebração dos 40 anos da Semana de 22, a conferência foi publicada no jornal O Estado de S.Paulo. Sem os desenhos de Tarsila.
Foram os textos do jornal que aproximaram Guilherme do seu futuro biógrafo, Frederico Ozanan Pessoa de Barros. Editor, Frederico procurou o poeta porque queria publicar o livro. Foi um encontro próspero, que resultou em quase 50 anos dedicados a organizar toda a obra do poeta. Frederico acabou tão próximo da família que tornou-se herdeiro do acervo. Durante boa parte do tempo em que pesquisou a vida e a obra de Guilherme de Almeida, ele contou com o trabalho de um jovem casal, Sandra Mara e Alípio Correia de Franca Neto, secretários na área editorial. Quando o editor faleceu, em 2011, esses dois foram responsáveis pela incorporação do arquivo, que tem cerca de 15 mil documentos, pela Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp (SP). Já a família de Frederico tornou Alípio herdeiro do seu espólio literário. O conjunto de desenhos de Tarsila foi encontrado, por Alípio, dentro de uma caixa com material iconográfico, junto a poemas de Oswald manuscritos por ela.
Ninguém tinha ideia da origem e da autoria das obras. Em 2012, começaram as buscas, quase uma epopeia. Era necessário comprovar a antiguidade dos papéis e identificar quem escreveu, no verso, a legenda “Viagem pela costa do Brasil, do Rio Grande do Sul ao Ceará, 1925”. Alípio começou a investigação, orientado pela professora e curadora Regina Teixeira de Barros.
– Era comum ilustrações não serem assinadas. Precisávamos saber de quando e de quem era o material, ou seja, historicizá-lo – lembra ele, que é um reconhecido poeta e tradutor literário premiado três vezes com o Jabuti.
Foi “a viagem inaugural da história do modernismo”: é expressão que uso para falar da conferência e destacar a militância de Almeida nesse roteiro.
PAULO GOMES
Professor da UFRGS, sobre a viagem de Guilherme de Almeida ilustrada pelos desenhos de Tarsila do Amaral
Confirmado que a coleção era da década de 1920, veio o resultado do exame grafotécnico. A caligrafia era da esposa de Guilherme de Almeida, e as legendas haviam sido escritas nos anos 1950 ou 1960.
– Dona Baby associava a coleção a alguma viagem feita em alguma década passada, mas até aquele momento não tínhamos localizado o texto da conferência – diz Alípio.
Sandra Mara lembrou que, 20 anos antes, digitara textos sobre uma viagem. Entre 10 mil páginas, os papéis enfim foram encontrados: “...resolvi percorrer, de Sul a Norte, as capitais da costa brasileira, pregando, com esta conferência, a renovação. E, de setembro a novembro de 1925, sempre calorosamente recebido, realizei-a em Porto Alegre, Recife e Fortaleza.”, dizia o texto do poeta viajante.
Com data, proveniência e finalidade das obras identificadas, chega uma nova personagem: a historiadora catarinense Michele Bete Petry, que fez o pós-doutorado na Universidade de São Paulo (USP) sobre imagens desconhecidas de Tarsila. Entre 2018 e 2020, ela estudou e ministrou curso sobre três coleções, uma delas a dessa viagem. Com a supervisão da professora Ana Gonçalves Magalhães, diretora do Museu de Arte Contemporânea de São Paulo, os desenhos foram avaliados, inclusive, no Laboratório do Instituto de Física, onde passaram por um aparelho de reflectância infravermelha, que usa alta tecnologia para fazer uma espécie de radiografia do desenho e permite comprovar sua autenticidade.
Foi possível ver o traço original de Tarsila a lápis, sob o nanquim. A análise descreve que “o trabalho da linha curva na onda do mar” é “inédito na produção da artista”. As ondas estão em 13 das 15 ilustrações, e a citada linha curva foi aplicada em duas delas, com uma curiosidade: em ambas há uma embarcação virada, como se tivesse naufragado.
A coleção também reflete a crescente produção industrial da época. Além de altas chaminés, moinhos de vento que poderiam ser vistos, por exemplo, nas salinas do Rio Grande do Norte. Ou guindastes em um porto, embarcando mercadorias. Já Paralelepípedos revela o casario em uma rua que bem poderia ser uma das ladeiras de Olinda (PE). Talvez essa mesma cidade tenha inspirado o desenho que reúne várias igrejas, coqueiros e, novamente, um barquinho n’água. As cenas têm a perspectiva do mar para o continente, como se fossem o ponto de vista de um viajante observando a paisagem. Nos originais da biografia de Guilherme de Almeida, que Frederico escreveu mas nunca publicou, há o registro de “16 desenhos”, que teriam sido enviados por Tarsila.
– Isso indica que um desenho da série foi extraviado – alerta Alípio.
Em Porto Alegre, onde Guilherme falou no Theatro São Pedro, o professor do Instituto de Artes da UFRGS Paulo Gomes diz que A Revelação do Brasil pela Poesia Moderna é usualmente citada nos trabalhos acadêmicos sobre arte.
– Foi “a viagem inaugural da história do modernismo”: é expressão que uso para falar da conferência e destacar a militância de Almeida nesse roteiro – diz Gomes.
Tarsila transforma a palavra do poeta em imagem. É o reflexo da escrita na ilustração.
PAULO FIGUEIREDO
Marchand e curador
Sobre as imagens, o professor da UFRGS afirma que “o ressurgimento da coleção é um evento, visto que o trabalho da Tarsila tem cada vez mais relevância”.
O marchand e curador português Paulo Figueiredo, estudioso da arte brasileira, afirma que, “na década de 1920, eram raras as séries de ilustrações”:
– Isso torna a coleção ainda mais valiosa, sem falar que foi produzida para uma conferência histórica.
Figueiredo conheceu a coleção de viagem e também os poemas de Oswald redigidos a mão por Tarsila – que também considera obras de arte:
– Ela transforma a palavra do poeta em imagem. É o reflexo da escrita na ilustração.
Os desenhos são conhecidos por um restrito público acadêmico. Por enquanto, não há data prevista para alguma exposição. O que se sabe é que o primeiro circuito de exibição deve repetir as cidades por onde Guilherme de Almeida apresentou sua conferência. O roteiro começaria, então, por Porto Alegre. Se assim for, será a oportunidade para o público encontrar, em desenhos, elementos que Tarsila usava em telas que se tornaram valiosas.
Na ilustração com a ponte Hercílio Luz, aparece o “X” nas estruturas, traço presente em E.F.C.B. e Carnaval em Madureira, ambas de 1924, e em A Gare, de 1925. Os cactos marcantes na trajetória da artista estão em Distância, de 1928, e A Lua, comprada pelo Museu de Arte Moderna de Nova York por US$ 20 milhões. Já em São Paulo GAZO (1924), a palavra gazo lembra a caligrafia de Swift, de Rio Grande, onde começou este texto. E por onde passou o navio que deu origem a uma coleção de Tarsila, que só agora o mundo conhece.