De navegadores desbravadores, passando por engenheiros à frente de seu tempo até chegar aos homens que hoje atuam numa função técnica de muito esforço físico, os Molhes da Barra de Rio Grande guardam histórias que vão além de ser um cartão-postal e ponto turístico da maior praia do mundo, o balneário Cassino, no Litoral Sul. São mais de quatro quilômetros de trilhos de metal avançando mar adentro sobre um caminho de pedras. Datada do início do século 20, a construção é até hoje considerada uma das maiores obras da engenharia marítima mundial e vem unindo sonhadores ao longo das décadas.
O primeiro registro da barra data de 1531, quando o navegador Pero Lopes de Souza avistou um funil e um volume desconhecido de água em direção ao mar, mas não conseguiu vencer os bancos de areia. Três anos depois, o cartógrafo Gaspar Viegas registrou em mapa a descoberta, entendendo que a falha era um rio ao qual deu o nome de Rio de Sam P. (Rio Grande de São Pedro). A região, porém, só passou a ser desbravada, de fato, a partir do século 18. E sempre foi considerada um desafio aos navegadores.
Documentos históricos mostram que, no começo do século 19, a barra oferecia uma passagem de 4m40cm, que foi se reduzindo com os anos. A partir daí, os relatos de embarcações com dificuldades para entrar ou sair pelo canal passaram a ser comuns, atraindo empresas de rebocadores, responsáveis por levar os navios da barra para o Porto de Rio Grande.
A ideia de facilitar a passagem das embarcações ganhou força ao longo dos anos. Os maiores nomes da engenharia mundial da época desembarcaram em Rio Grande para avaliar a possibilidade da obra, entre eles o holandês Pieter Caland, o norte-americano Elmer Lawrence Corthell e o inglês John Hawkshaw, amigo de Charles Darwin. Contratado para analisar a situação portuária brasileira, que incluía o problema na Barra de Rio Grande, Hawkshaw veio ao Brasil em agosto de 1874, acompanhado da poeta Lady (Ann) Hawkshaw. Foi recebido por Dom Pedro II e seus ministros. Ao longo de quatro meses, passou por cinco Estados do Nordeste até chegar ao Rio Grande do Sul e tornou-se o primeiro a considerar a construção de dois “quebra-mares” uma alternativa para solucionar o ingresso do tráfego marítimo em Rio Grande.
Mas foi o engenheiro Honório Bicalho que produziu o relatório detalhando a construção dos molhes. Ele desembarcou na região em 1883 para integrar a Comissão de Melhoramentos da Barra do Rio Grande. O objetivo era elaborar um estudo que assegurasse a navegação. Em oito meses, o visionário Honório elaborou um estudo inspirado nos projetos do porto de Rotterdam, na Holanda, e na foz do Mississipi, nos Estados Unidos. O engenheiro afirmou que a solução definitiva deveria ser a construção de dois braços gigantes de pedra na entrada do canal para desobstruírem a passagem dos navios. A obra, ele imaginava, transformaria Rio Grande numa potência. Honório era uma figura sonhadora, que passava as noites contemplando a maré e a Lua. Morreu aos 47 anos, em 1886, sem ver os molhes erguidos.
Idealizada e projetada no Império de Dom Pedro II, a construção só começou a sair do papel nos governos de Rodrigues Alves e Afonso Pena, ganhando robustez na administração seguinte, de Hermes da Fonseca, com a ampliação da infraestrutura da obra. Um dos maiores investidores foi Percival Farquhar, magnata poderoso em todo o Brasil. Por conta das obras, foram construídos 128 quilômetros de linhas férreas, entre 1909 e 1911, e cerca de 8 mil toneladas de madeira trazidas dos Estados Unidos para a construção.
Dois gigantescos guindastes Titan, instalados nos pontos iniciais dos Molhes Leste e Oeste, começaram os trabalhos em 1911, jogando diariamente ao mar 1,7 mil toneladas de pedras trazidas em locomotivas. As manobras dos possantes maquinários eram realizadas num raio de 30 metros. Nos trapiches do Arroio Pelotas e Cocuruto, guindastes elétricos de 300 toneladas abasteciam as chatas que faziam a baldeação das pedras vindas de Capão do Leão e Monte Bonito, em Pelotas. O maquinário usado na obra ainda tinha dragas de sucção, oito rebocadores e lanchas, a maior parte batizada em homenagem aos envolvidos no projeto, como Honório Bicalho.
“À época, o local das obras na barra parecia uma grande planície ‘branca como a neve’, mas com listas negras (lama jorrada de tubos de um metro de diâmetro), rodeada à beira-mar de maquinários, galpões, armazéns de carpintaria, fundição e almoxarifado, dragas, chatas e locomotivas que cruzavam a todo instante. Uma ânsia de velocidade e trabalho estava estampada no suor do rosto dos operários. A obra, enfim, renascia”, descreve o jornalista Klécio Santos no livro Sonhos de Pedra – A História da Construção dos Molhes, uma das Maiores Obras da Engenharia Marítima (Cabrion Editora, 2020).
Mil dias de trabalho foram necessários para extrair ao menos 4 milhões de toneladas de pedra para serem colocadas nas duas muralhas a serem erguidas na Barra de Rio Grande, a cerca de 80 quilômetros dali. O fornecimento durou até 1916. Nesse período, as as pedreiras a céu aberto na zona rural começaram a enfrentar casos de alcoolismo, assassinatos, doenças, desmoronamentos e suicídios. As condições precárias de trabalho teriam formado uma legião de mutilados em meio a explosões, trouxeram um surto de tifo em 1913 e motivaram até uma greve em março de 1914.
A potência da estrutura erguida no sul do Brasil acabou indo para as telas de cinema. O documentário As Obras da Barra e o Porto de Rio Grande teve estreia no Rio de Janeiro, num evento organizado pela Compagnie Française que contou com a presença do então presidente da República, Hermes da Fonseca. O responsável pelas filmagens foi o engenheiro Luiz Tavares Alves Pereira, que chegou ao Rio Grande do Sul trazendo 1,5 mil metros de filme, dividido em seis partes, para serem exibidos em Rio Grande, Pelotas e Porto Alegre. O filme ficou em cartaz por três meses.
Em 1º de março de 1915, o navio-escola Benjamin Constant cruzou a “nova barra” em direção ao Porto de Rio Grande em apenas uma hora. Era o fim da obra dos molhes e o início de uma nova era. O desejo do engenheiro Honório havia sido cumprido: os bancos de areia foram superados, pois o calado chegara a 6m35cm, graças à dragagem e às obras concluídas dos molhes. Como escreve Klécio no seu livro: “um sonho em forma de dois braços de pedra, erguido com o suor humano num dos locais mais inóspitos do Brasil”.
Amparado por memórias afetivas, pelo desejo de honrar essa história única e por um trabalho de pesquisa de três anos em acervos como o da Superintendência do Porto e os das bibliotecas de Pelotas e Rio Grande, Klécio colocou no papel os detalhes de como se desenvolveu a construção dos molhes, numa época em que a tecnologia ainda era escassa.
Mais do que as lembranças da infância no Cassino, o jornalista aponta uma visita ao Canal do Panamá, onde viu vários livros sobre aquela construção “rival” dos molhes, como a motivação para escrever a história da obra em solo gaúcho. Em 240 páginas, descreve a construção, impulsionada a partir de 1883 com a chegada do engenheiro Honório Bicalho.
– Nos acostumamos com a paisagem dos molhes e suas vagonetas na praia do Cassino, mas a história da construção dessas muralhas de pedra sempre foi contada meio que a reboque, quando se falava do Porto de Rio Grande. O livro mostra o inverso: o porto é o que é por conta dessa obra monumental – afirma Klécio.
Luz sobre os molhes
Nas décadas seguintes, o porto se tornou ainda mais referência no Brasil, e, para continuarem intactos, os molhes precisam de reformas cirúrgicas. Em 1995, por exemplo, meio milhão de toneladas de granito foram retirados de Capão do Leão e trazidos dentro de caminhões conduzidos sobre uma balsa que cruzou a Lagoa dos Patos. Outras mil toneladas de blocos de concreto – tetrápodes – deram um prolongamento de mais 370 metros no Molhe Leste e 700 metros no Molhe Oeste. Recentemente, a dragagem de 16 milhões de metros cúbicos de sedimentos ao longo do canal de acesso, ampliando o calado de 12,8 metros para 15 metros. Essa alteração permitiu a entrada de navios com até 70 toneladas de carga. A manobra favoreceu a competividade do Porto de Rio Grande no Cone Sul.
Desde 1938, os carrinhos de madeira responsáveis por transportar trabalhadores nos molhes também se tornaram vagonetas para turistas. E é no vaivém delas sobre os trilhos que os olhos de Antônio Lima de Souza, 72 anos, marejam. Afinal, ele foi um dos responsáveis por lutar pelo reconhecimento do trabalho dos carrinhos e dos profissionais que conduzem os singulares veículos movidos a vento ou à força humana, quando as águas do canal ficam paradas. Hoje, vagonetas e vagoneteiros são considerados patrimônio cultural do Estado.
Esse destaque é motivo de alegria também para Antônio Valdir Chagas Luz, o Dica, vagoneteiro há 55 anos e que, no início dos trabalhos, passava as noites no local, no escuro, para guardar a posição de saída da vagoneta. Não há registro de atividade parecida com a desenvolvida nos molhes de Rio Grande por mais de 55 homens – não há mulheres na função.
– Podemos dizer que somos os navegadores da areia – comenta Dica.
A definição é a mesma de Antônio de Souza, que se emociona ao recordar os quase 60 anos de vida ligada aos molhes. Ele já deixou de atuar nas vagonetas – para ser uma liderança da categoria. E orgulha-se em falar o que sabe sobre a construção do gigantesco trecho em pedras erguido no balneário Cassino. Mas deixa escapar que ainda falta realizar o maior desejo:
– Sonho em ver os molhes iluminados, ganhando vida também à noite. Esse lugar merece o reconhecimento 24 horas por dia.
Mais de cem anos depois de sua inauguração, o local ainda não tem iluminação noturna. Isso, porém, pode estar com os dias contados. Rio Grande é uma das cinco cidades selecionadas para o projeto Iconicidades, desenvolvido pelo governo gaúcho. A iniciativa pretende estimular a economia criativa em meio à tradição, dando novos ares a espaços públicos já consagrados. No caso de Rio Grande, a meta, segundo o secretário de Desenvolvimento Econômico, Inovação e Turismo de Rio Grande, Gilberto Sequeira, é criar um complexo turístico na área, com restaurante, marina, mirantes, banheiros públicos e a tão esperada iluminação:
– Precisamos dar a importância que os molhes merecem, pois, além de proteger a entrada e a saída dos navios, desde 1915, é uma obra fundamental para o Estado. Queremos intensificá-lo como atração turística. Já é, mas falta estrutura. Imagine os molhes iluminados e regrados, sendo aproveitados da manhã à noite. Um sonho que pode se tornar real.
Assim como o vagoneteiro Antônio, Sequeira deixa escapar o orgulho de ter os molhes, cenário favorito dele na cidade, em Rio Grande. O secretário conta que já existiam projetos arquitetônicos particulares pensados para a região. Porém, faltava a eles o Estudo de Viabilidade Técnica Econômica Socioambiental (EVTESA), necessário antes do início de qualquer obra. Com a seleção pelo Iconicidades, a administração municipal deverá ganhar um projeto completo do Estado que só precisará ter verba para ser executado.
Na mais recente obra desenvolvida nos molhes, em 2021, o mirante localizado numa das extremidades da trilha de pedras foi revitalizado pelo Porto RS, depois de uma solicitação da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico, Inovação e Turismo. A pequena reforma veio como consequência de um momento especial ocorrido semanas antes na Base dos Molhes da Barra: o lançamento da segunda edição do livro de Klécio. O jornalista revela que a ideia de fazer o evento quatro quilômetros mar adentro fez parte da intenção de viabilizar ainda mais os molhes como uma atração local. Os subsídios históricos do livro, inclusive, serviram para embasar o projeto de Rio Grande que disputou o Iconicidades.
Orçamento de até R$ 5 milhões
Conforme o secretário de Planejamento, Governança e Gestão, Claudio Gastal, o Estado pretende ajudar os cinco municípios selecionados – incluindo Rio Grande – a buscarem investidores para os projetos saírem do papel. Gastal explica que, para cada uma das cidades, a Secretaria de Planejamento está preparando, em conjunto com o Instituto de Arquitetos do Brasil, o edital para um concurso público que pretende atrair escritórios de design e de arquitetura brasileiros, especialmente quem trabalha com este pensar de reconversão de espaços urbanos.
Os projetos serão analisados pelo instituto, responsável por selecionar e premiar os três melhores para cada cidade. Mas o vencedor entre os três será contratado pelo Estado para elaborar o projeto executivo. O contrato para o projeto pode custar até R$ 750 mil e a obra – no caso de Rio Grande, a reforma dos Molhes da Barra – terá teto de R$ 5 milhões.
Até o início de março devem ser lançados os editais dos cinco concursos. Na sequência, a divulgação dos resultados ocorrerá entre final de abril e início de maio. Já a contratação do responsável pelo projeto, que será feita pelo Estado, está prevista para ocorrer em junho. E a entrega do projeto executivo será feita em até 60 depois.
– Pretendemos estar com os projetos em mãos em setembro. Então, o Estado celebrará um convênio com o município, pois a intenção é também apoiar na execução. Com o projeto em mãos, o município pode buscar financiamento ou desenvolver a obra com recursos próprios. O Estado está vendo alternativas para aportar recursos para a execução dos projetos – esclarece Gastal.