Pedro tinha 12 anos quando viu um boto pela primeira vez. Surfava na praia do Cassino quando notou nadadeiras no mar. Cada vez que saiam da água, estavam mais perto – era um grupo de botos. Ficou sentado na prancha, em silêncio, não sabe por quanto tempo.
– Meio que parou o tempo, sabe? Naqueles segundos, nada mais existia. Só aquilo – conta.
O menino de Porto Alegre acabaria indo morar em Rio Grande para estudar e trabalhar e, aos 41 anos, Pedro Fruet é um dos principais nomes na luta para salvar os botos-de-Lahille.
Biólogo, mestre e doutor em Oceanografia, ele ganhou reconhecimento internacional em maio ao vencer um dos prêmios de preservação ambiental mais valorizados do mundo, da fundação britânica Whitley Found for Nature.
Recebeu 40 mil libras, quase R$ 300 mil, para promover a coexistência entre a espécie e as comunidades pesqueiras na Lagoa dos Patos e áreas adjacentes. O projeto que integra é realizado pela ONG Kaosa em conjunto com o Museu Oceanográfico da Universidade Federal do Rio Grande (Furg).
Ameaçada de extinção, essa espécie existe apenas no Brasil, no Uruguai e na Argentina, e sua população é estimada em 600 indivíduos atualmente. A maior concentração está no final na Lagoa dos Patos – ali são cerca de 90. Não é raro eles morrerem em redes de pesca após capturas acidentais.
– Há grande chance dessa população colapsar em 30 anos – alerta o biólogo.
Em média, 12 carcaças são encontradas anualmente, sendo que 40% têm indícios de envolvimento em redes de emalhe. Também chamada de rede de espera, nesse tipo de aparelho a captura ocorre de forma passiva pela retenção dos peixes na malha.
Ainda choca achar botos mortos na areia, mas Pedro fica muito mais agoniado quando vê um animal vivo sofrendo. Lembra de um que encontrou no estuário há seis anos. Com o comportamento afoito, arrastava um pedaço de rede que cortava sua pele. Tentou ajudá-lo, mas o bicho não permitiu a aproximação e desapareceu. Foi localizado morto 10 dias depois, muito magro.
– Isso afeta muito, ver o bicho assim. A gente se sente impotente. Notou-se um aumento significativo na mortandade dos botos na região da Lagoa dos Patos por volta dos anos 2000, segundo o biólogo. Ele acredita que foi consequência da exploração descontrolada dos recursos pesqueiros.
– Achavam que eram infindáveis, pescaram demais. Restando poucas opções aos pescadores artesanais, passaram a aumentar o tamanho da rede, a deixar mais tempo na água.
Os botos não são o alvo dos pescadores, mas acabam atingidos. E isso continua acontecendo mesmo após uma Instrução Normativa proibir a pesca embarcada de emalhe em parte do estuário da Lagoa dos Patos e áreas costeiras adjacentes até uma milha da praia. Essa norma vale desde 2012.
A ideia do biólogo é envolver os pescadores na busca por soluções para frear a matança dos botos.
– Os pescadores, que seriam as pessoas afetadas pela norma, foram excluídos do processo. Eles precisam de uma alternativa.
Sem “vilanizar” a pesca artesanal, o projeto quer entender o perfil socioeconômico do pescador e seu nível de vulnerabilidade social. Quer ver se sabem onde não podem pescar, o motivo, e entender como eles enxergam o boto.
O dinheiro do prêmio também será usado em um aplicativo para envolver e engajar a população no cuidado da área de proteção ao boto. A ideia é treinar as pessoas que já se relacionam com o mar e a Lagoa dos Patos, como surfistas, vagoneteiros, salva-vidas e pescadores amadores de linha. Eles usariam a plataforma para denunciar pesca ilegal, fornecendo dados úteis para a fiscalização.
– A ideia é que as pessoas se tornem fiscais-cidadãs. Se elas verem uma embarcação de pesca fantasma, por exemplo, poderão tirar foto e postar no aplicativo, com latitude, longitude, tipo de embarcação, entre outras informações. Isso é uma forma de engajar as pessoas.
O projeto Botos da Lagoa dos Patos quer monitorar por cinco anos a taxa de mortalidade dos animais, com o objetivo de reduzi-la em 40%.
Pescador desde os 12 anos, Rogério Borges, 47 anos, afirma que já foi bem mais comum ver botos nas águas de Rio Grande.
– Antigamente, eu via direto verdadeiros cardumes, com 10 botos em grupo. Agora, vemos no máximo três juntos – relata.
Rogério e outros trabalhadores da pesca artesanal na comunidade da Ilha da Torotama, distante cerca de 50 quilômetros do centro de Rio Grande, garantem que os encontros com os animais costumam ser de precaução e respeito.
O superintendente da pesca de Rio Grande, Santos Oriente Dart, também afirma que o pescador artesanal cuida do boto.
– Se ele largar a rede e ver que vai pegar o boto, dá a volta no barco e recolhe ela – relata o superintendente.
Mas outro pescador experiente da comunidade, Edmilson Mattos, 58 anos, revela que não havia muita instrução profissional aos pescadores para evitar a mortandade.
– De poucos anos para cá é que começamos a ter alguma orientação por parte do poder público e de órgãos responsáveis. Antes, não tinha nada. A gente se guiava pelo aprendizado com os mais antigos, com os avós, pais.
“Esse a gente já conhece”
Enquanto o oceanógrafo Rodrigo Genoves pilota o barco inflável motorizado em direção aos molhes, Pedro dá dicas para o fotógrafo de Zero Hora flagrar as aparições repentinas dos botos, que sobem à superfície da Lagoa dos Patos para respirar – eles não são peixes, mas mamíferos aquáticos.
Aponta para um animal que revela o dorso cinza por uns dois segundos:
– Essa a gente já conhece há muito tempo.
Monitorando os botos há duas décadas, Pedro reconhece alguns deles à distância pelo formato e pelas marcas da nadadeira. São machucados que adquirem brincando ou mesmo brigando – apesar do focinho simpático, os botos podem ter comportamento agressivo, especialmente os machos.
– Os machos estão a toda hora se carneando. Existe disputa deles para acesso à fêmea – explica Pedro, com a atenção na água, interrompendo-se para indicar ao piloto:
– Aqui atrás tem três, Rodrigão.
A reportagem acompanhou os integrantes da ONG Kaosa por quatro horas no começo de julho, em uma palhinha do monitoramento embarcado para avaliar padrões de mortalidade dos botos-de-Lahille. Quanto mais perto do mar, mais botos apareciam, e cada vez mais perto do barco. Alguns brincavam, saltando sobre a água.
A uns 10 metros da gente, dois pularam em sincronia, provavelmente mãe e filho. Pedro conta que demora oito anos para a fêmea ter o primeiro filhote, que vive cerca de dois anos colado nela. Ele já nasce com a metade do tamanho da mãe e se alimenta inicialmente de leite. Nesse tempo, o filhote aprende a caçar e a se virar na natureza, porque, assim que ganha um irmão, ele precisa tomar seu caminho.
O biólogo observa que é natural se formarem grupos de animais juvenis. Essas redes de relacionamento são uma das questões estudadas pelos pesquisadores da Furg, que já têm um projeto de acompanhamento dos botos desde a década de 1970.
Esses animais podem medir até quatro metros e pesar meia tonelada. Os machos vivem em torno de 25 anos, e as fêmeas, 40. A mais velha que Pedro conheceu foi uma que teve a nadadeira amputada por um pescador ao ficar presa em rede de pesca, mas aprendeu a viver dessa forma. Sua carcaça foi encontrada em 2010, e descobriu-se que tinha 44 anos.
– A gente lê a idade pelo dente: faz um corte e coloca numa lupa. Cada linha representa um ano de vida – esclarece.
Pedro trabalha na Furg desde 2001 e hoje é coordenador do Laboratório de Mamíferos Marinhos do Museu Oceanográfico. Em janeiro, fez sua estreia em cargo público: sem nunca ter se metido em política, foi surpreendido com o convite do prefeito Fábio Branco para o posto de secretário de Meio Ambiente de Rio Grande. Ele descreve a nova atribuição como “desafiadora”.
– É muito mais fácil cuidar de botos do que de gente – ri.
Rodrigo Genoves é presidente da ONG Kaosa e trabalha diretamente com Pedro – aprendeu “muito do que sabe” com ele. Identifica-se com o colega no sentido de serem ambos “workaholics”. No trabalho deles não tem feriado, não importa se o sol está alto e faz muito calor: passam o dia na água se há condições para navegar. Lamenta que não conseguiram fazer um churrasco para comemorar a conquista do prêmio, em razão da pandemia. Mas se contenta com os recursos para viabilizar o projeto e com o reconhecimento “dos gringos” ao projeto – a iniciativa foi divulgada inclusive em reportagem do jornal britânico The Guardian.
Pedro não consegue explicar o que o cativa tanto nos botos. Sabe que são únicos e que deve sua carreira a eles. Ele sempre foi uma pessoa inquieta, “o inferno” dos professores no colégio. Acabou conseguindo canalizar toda essa energia para a pesquisa da espécie.
– Sabe aquele caso perdido da escola? Se você falar com um professor meu do primário, ninguém vai acreditar que eu fiz mestrado e doutorado.
Mesmo depois de se tornar biólogo, pesquisador reconhecido mundialmente, secretário de Meio Ambiente, Pedro segue surfando com os botos na praia do Cassino. O tempo ainda para quando o encontro acontece, e agora ele sabe aproveitar ainda melhor:
– Eu largo e prancha e mergulho para escutar o som.
O "Oscar Verde"
Pedro Fruet foi um dos seis vencedores do prêmio de conservação ambiental Whitley Awards. Conhecida como o “Oscar Verde”, a láurea é entregue anualmente pela instituição britânica Whitley Fund for Nature (WFN), reconhecendo e celebrando quem tem contribuições importantes à preservação da vida selvagem na Ásia, na África e na América Latina.
O prêmio no valor de £ 40.000 (cerca de R$ 300 mil) em financiamento de projetos foi entregue após a avaliação de um painel acadêmico especializado, junto a uma mensagem de Sir David Attenborough, um dos mais importantes ambientalistas do mundo.