Lado a lado, dentro de um dos laboratórios pertencentes ao Instituto de Oceanografia da Universidade Federal do Rio Grande (Furg), dezenas de vasilhas de vidro carregam a identificação da localização de onde foram retirados os materiais coloridos, por vezes pedregosos, armazenados dentro dos recipientes. Guardam areia trazida da Ilha Elefante, na Antártica, das praias argentinas, uruguaias, chilenas, caribenhas, norte-americanas, sul-africanas, indianas e brasileiras, incluindo a Ilha Trindade, no Oceano Atlântico, a cerca de 1,2 mil quilômetros do Espírito Santo, e, principalmente, das gaúchas. Um conjunto que foi sendo reunido ao longo de décadas por pesquisadores do instituto, incluindo o oceanólogo, professor e pesquisador Lauro Calliari. A maioria dos grãos veio das viagens para pesquisas feitas por Calliari, um dos desbravadores nos estudos sobre a costa gaúcha.
– Vi muitas praias e poucas montanhas – resume o oceanólogo, que há 50 anos saiu de Guaporé, na serra gaúcha, para aventurar-se no litoral sul do Estado como aluno da segunda turma do curso de Oceanologia, em Rio Grande.
Especializado em morfodinâmica costeira, Calliari tem um gosto diferenciado pela costa litorânea. Sua praia favorita, das centenas que conheceu pelo mundo em nome da ciência, é a do Cabo da Boa Esperança, na África do Sul. E a justificativa está nas peculiaridades da área, que possui areia grossa e seixos. As explicações do pesquisador despertam em quem não é familiarizado com o tema a curiosidade em aprender mais.
– As praias do Cabo da Boa Esperança têm uma topografia tridimensional, apresentam mais obstáculos, são mais variáveis, lateralmente mais inclinadas e dão ondas tubulares. Então, a energia da zona de arrebentação é muito alta – fala, mostrando o grande pote de vidro com seixos retirados da praia sul-africana.
Calliari abre largos sorrisos ao ser convidado para percorrer a orla de uma praia, embarcar em um bote ou um navio de pesquisa e até para analisar grãos de areia em um microscópio petrográfico. Mas qual a importância de um grãozinho de areia, professor?, questiona a repórter, curiosa pela resposta.
– Um grão de areia tem importância histórica, econômica e até na área medicinal pela presença de minerais radiativos. É que o sedimento pode te contar a história de onde veio a areia, a área fonte. Por meio de um grão de areia, é possível estudar a direção das correntes marinhas ou conhecer os recursos minerais de uma região. As areias negras, em São José do Norte, no sul gaúcho por exemplo, são compostas de um mineral chamado ilmenita, que tem titânio. Até na geologia forense a areia tem importância, pois um grão pode fornecer pistas de onde veio o material – ensina Calliari.
Sobre o litoral do Estado, o primeiro a ser estudado de ponta a ponta pelo pesquisador, ele alerta que as praias são formadas por areia quartzosa, e o quartzo dura milhões de anos. Mas há trechos com calcário, como o concheiro do Albardão, em Santa Vitória do Palmar, que faz desta praia a preferida dele na costa local.
De tanto colecionar areia para pesquisa, Calliari já passou por pelo menos um momento problemático quando ainda cursava doutorado nos Estados Unidos, na segunda metade da década de 1980. Ao tentar ingressar em solo norte-americano depois de uma incursão de pesquisa pela ilha de Santo Eustáquio, localizada nas Pequenas Antilhas, no mar do Caribe, o professor foi barrado na alfândega.
– Coletei um monte de areia branca e carbonática e coloquei o vidro na mala, entre os meus pertences, para não quebrá-lo. Acabei barrado por duas horas no aeroporto de Porto Rico e perdi o voo para a Carolina do Norte. Acharam que era cocaína. Até o meu orientador, que viajava comigo, me abandonou. Precisei explicar que o material era carbonato. Ainda bem que meu inglês estava em dia – ri.
Calliari escolheu estudar Oceanologia ao deparar pela primeira vez com a imensidão do mar em Tramandaí, na adolescência. Foi aprovado na Furg em 1972, quando a profissão ainda não era reconhecida pelo governo federal. Meio século depois, tido como referência entre os pesquisadores da costa gaúcha, ele acumula experiências que se iniciaram ainda na graduação, ao auxiliar na Operação Geomar, da Marinha do Brasil, que pretendia na época mapear a geologia marinha de toda a costa brasileira.
– Fui com outros professores e alunos no navio Almirante Saldanha. Onze anos depois, me tornei o chefe científico de uma expedição na mesma embarcação. Isso marca demais a vida – conta, ressaltando que o chefe científico é quem delibera a rota do navio para a pesquisa, podendo mudá-la, caso encontre algo novo na viagem.
Calliari foi contratado pela Furg em janeiro de 1976, um mês depois da formatura. Foi quando se tornou pesquisador no projeto Atlântico, junto ao navio Atlântico Sul, e professor de Geologia Costeira.
Em 1980, iniciou o mestrado em Geologia Marinha na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O doutorado foi cursado entre 1985 e 1990, no Instituto de Ciência Marinha da Virgínia, um dos maiores centros de pesquisa marinha dos Estados Unidos. Junto, ele levou a mulher Rosaura Mesquita Calliari, com quem casou em 1984, e a filha, Carolina. Mas não ficou: as propostas de trabalho na área de recursos minerais marinhos foram recusadas porque os planos eram de voltar ao Brasil.
– Poderia ressarcir o governo brasileiro, pois havia ganho bolsa de estudos, e ficar trabalhando nos Estados Unidos. Mas quis voltar e transmitir conhecimento aos alunos, em Rio Grande – diz.
Os perigos do litoral hoje
Conforme o oceanólogo, o litoral gaúcho se formou há milhares de anos, sendo o resultado da subida do nível do mar.
– Há 20 mil anos, o mar estava, aproximadamente, 120 metros abaixo do nível atual. Então, ele foi subindo, ultrapassou o nível atual e depois, cerca de 5 mil anos atrás, começou a descer novamente. Nessa descida, formou barreiras arenosas, como a barreira longa do nosso litoral, que se estende entre Torres e La Coronilla, no Uruguai – comenta Calliari.
Segundo o pesquisador, os estudos mais detalhados sobre as praias gaúchas começaram na década de 1990. E ele sempre esteve presente nessas pesquisas.
– A costa toda tem muitas variabilidades. Sua orientação muda em relação aos ventos e ondas, pois o material formador das praias é diferente. Não tínhamos detalhado os concheiros do Albardão, em 40 quilômetros de extensão, que é maravilhoso e diferente. Alertamos para os problemas de ocupação urbana do Hermenegildo, para a ocupação urbana próxima ao Farol da Conceição, em São José do Norte, alertamos para o problema de ventos que carregavam areia e engoliam construções e ainda demos continuidade ao mapeamento no oceano dos recursos minerais do Rio Grande do Sul. A contribuição da geologia marinha, como um todo, é conhecer o litoral para planejar o desenvolvimento futuro – defende.
Um dos trabalhos mais longos do oceanólogo é o acompanhamento do processo de erosão da costa, ou seja, o avanço do mar sobre a faixa de areia do Rio Grande do Sul. Calliari, junto com outros pesquisadores da Furg, registra há mais de 30 anos a movimentação dos chamados hotspots erosivos – áreas onde são identificados recuos intensos da linha de costa em relação às áreas adjacentes e que não apresentam reposição da areia retirada do sistema. Nas tempestades e nos ciclones extratropicais, destaca o oceanólogo, a costa do Rio Grande do Sul apresenta ondas superiores a cinco metros, chegando a mais de 10 metros em eventos extremos.
Dois pontos do litoral gaúcho são considerados, atualmente, as zonas mais dramáticas: o balneário Hermenegildo, em Santa Vitória do Palmar, e o Farol da Conceição, em São José do Norte. Entre 1984 e 2020, revela o acompanhamento, a faixa de praia no Farol da Conceição reduziu 150 metros – 1,3 vezes o tamanho do prédio mais alto de Porto Alegre, o Santa Cruz, inaugurado na década de 1960, com 107 metros. O fenômeno causou a queda da estrutura do farol, em 1993. Seis anos depois, uma tempestade destruiu a antiga casa do faroleiro. Agora, Calliari alerta que o novo farol já está em risco de queda.
Uma das explicações para o avanço do mar sobre a faixa da costa no Farol da Conceição está na concentração de energia de ondas nesse local devido à morfologia submarina (bancos fixos que são resultado de antigas formações geológicas). Com isso, a areia retirada das dunas é transportada tanto para fora da costa quanto ao longo dela, não retornando ao sistema.
– Além do confirmado desaparecimento da faixa de areia, outros sinais da natureza indicam a existência da erosão acentuada na região: a perda das dunas frontais, a concentração de minerais pesados contendo titânio (que deixam a areia mais escura no trecho) e o surgimento de camadas de turfas (fundo de antigos pântanos milenares que reaparecem no formato de blocos na beira da praia). A situação é parecida nos arredores dos balneários Hermenegildo e Mostardense – pontua o oceanólogo.
Calliari ressalta que o fenômeno pode estar associado a uma lenta subida do nível médio do mar, resultante do aquecimento global, do possível aumento na frequência e na intensidade das tempestades costeiras, entre outros fatores. Por isso, o monitoramento é permanente. A erosão costeira é um fenômeno que atinge costas no mundo inteiro, sobretudo em praias arenosas expostas a episódios de alta energia de ondas, como a costa gaúcha.
Outro local que passou a ser analisado de perto pelo oceanólogo e outros pesquisadores da Furg, como o geógrafo Rodrigo Simões, orientando de Calliari no doutorado em Oceanografia, fica no Balneário Mostardense, em Mostardas, no litoral médio do Estado. Para acompanhar a movimentação do mar nas praias gaúchas, são usados ondógrafos, que medem a altura de onda, e mais equipamentos topográficos e de sensoriamento remoto, usando imagens de satélite e aerofotogrametria por drones, além de observações visuais.
Do navio de pesquisa Atlântico Sul, Calliari guarda inúmeras lembranças. Nos primeiros anos, por exemplo, trabalhou ao lado de pesquisadores argentinos, franceses e holandeses. As viagens em alto mar podem durar de dois dias a duas semanas. Por isso, a tripulação costuma atuar com duas equipes – cada uma com seis integrantes. Durante a expedição, os grupos se revezam a cada seis horas no trabalho.
Com a escassez de recursos financeiros, os atuais projetos de Calliari voltaram-se à área costeira gaúcha e dentro do estuário da Lagoa dos Patos. Para isso, ele costuma embarcar com a equipe formada por estudantes e outros professores na lancha oceanográfica ou atravessar a costa a bordo de um dos veículos do Instituto de Oceanografia.
Ao lado da equipe de reportagem, Calliari voltou ao Atlântico Sul para apresentar o primeiro navio de pesquisa da Furg, construído em 1973. Atrás dos óculos escuros, o professor escondeu os olhos marejados ao olhar para o navio e lembrar do primeiro cruzeiro oceanográfico, dos equipamentos colocados a bordo, da tripulação, dos comandantes que passaram pelo navio, dos chefes da casa de máquinas e, principalmente, do amigo e parceiro de pesquisa, o oceanólogo, professor e pesquisador Gilberto Henrique Griep, falecido em 31 de janeiro de 2019.
– Fomos colegas de turma. Embarcamos juntos até próximo da Cordilheira meso-oceânica a bordo de navios da marinha brasileira. Estivemos muitos anos envolvidos juntos com o Laboratório de Oceanografia Geológica. Ele foi um dos principais idealizadores das alterações introduzidas no navio oceanográfico Atlântico Sul para amostragem do fundo submarino. Era, a meu ver, o oceanólogo mais marinheiro que conheci! Poucos pesquisadores eram “safos” como ele (safo, na linguagem marítima, significa bom de trabalhos a bordo) – recorda.
Com orgulho, Calliari também mostra à reportagem o arco de popa rebatível hidraulicamente, instalado na embarcação em 2014 e fundamental para estudos do fundo para baixo do mar. De acordo com o pesquisador, o equipamento pode fazer amostragem, dragagem e até coletar uma coluna de sedimento do fundo marinho, facilitando a operação e os estudos em geologia marinha.
– Acompanhei algumas tempestades, mas os mestres sempre foram excelentes. Não lembro de termos acidente a bordo – acrescenta.
Além do Atlântico Sul, a universidade também possui o navio Ciências do Mar I, que serve de laboratório de ensino flutuante.
Hoje aposentado, Calliari segue atuando como professor colaborador da Furg, na pós-graduação e na pesquisa. Considera que seu grande papel como professor e oceanólogo foi formar pessoal para área. Numa conta rápida, afirma ter orientado mais de 50 estudantes de mestrado e doutorado.
– O que me move é cativar e fazer brilhar os olhos das criaturas quando dou aula. E sempre tive pessoas muito apaixonadas pelo tema. Sem isso, não teria motivação – confessa.
Mas o que fez Calliari, de fato, sempre voltar para Rio Grande?
Ele responde: o amor pela praia do Cassino, onde mora, e pela Furg. Também diz respirar a universidade. E todo esse carinho foi percebido pela própria cidade. Em dezembro de 2011, o oceanólogo recebeu o título de cidadão rio-grandino, oferecido pela Câmara Municipal do Rio Grande, em cerimônia no Teatro Municipal.
Griep: a outra referência
Durante o segundo Simpósio Brasileiro de Geologia e Geofísica Marinha, em Porto Alegre, realizado em 2019, o professor e pesquisador Gilberto Henrique Griep recebeu in memoriam a denominação de uma feição submarina. A proposta foi encaminhada pela Diretoria de Hidrografia e Navegação da Marinha do Brasil ao Subcomitê de Nomenclatura de Feições Submarinas (SCUFN) da Organização Hidrográfica Internacional, em maio de 2019, e aprovada na 32ª reunião do SCUFN, na Malásia, em agosto do mesmo ano. Griep tornou-se nome do Monte Submarino Griep, uma elevação do terreno localizado no Oceano Atlântico, na Margem Meridional Brasileira, próximo à Elevação do Rio Grande.
Graduado em Oceanologia e especialista em Administração Universitária, ambas pela Furg, o professor e pesquisador Gilberto Henrique Griep possuía vasta experiência na área de geociências, com ênfase em geofísica marinha. Assim como Calliari, ele fez parte da segunda turma do curso de Oceanologia. Também participou da fundação da Associação Brasileira de Oceanografia.
Griep fez parte do Comitê Gestor da frota de embarcações da Furg e coordenou vários cruzeiros no navio Atlântico Sul. Por anos, esteve à frente da coordenação do curso de Oceanologia da universidade.