Um navio em ruínas interrompe a monótona linha de areia e mar do Cassino, a praia mais extensa da América Latina. O que restou foi um pedaço enferrujado do cargueiro Altair, talvez o mais famoso do “cemitério de navios” da costa gaúcha.
Faz 45 anos que ele está ali. Encalhou no dia 6 de junho de 1976, três dias depois de partir do porto de São Pedro, na Argentina, com um carregamento de 3 mil toneladas de trigo. Faria escala no Rio de Janeiro e tinha Natal (RN) como destino final.
Mas, entre o Uruguai e a costa gaúcha, encontrou uma forte tempestade. As ondas gigantes começavam a invadir o convés da proa, e a intensidade do vento só aumentava. Com visibilidade praticamente nula, o comandante Raymundo Bacellar do Carmo passou a navegar em marcha reduzida, aproado ao mar e ao vento, segundo descreve uma edição do Anuário de Jurisprudência do Tribunal Marítimo, da Marinha do Brasil. Mudou o trajeto na tentativa de alcançar o porto de Rio Grande.
– Nós temos aqui um litoral retilíneo, que cria uma grande pista de vento. Isso numa costa quase sem abrigo: entre o Chuí e Torres, o único abrigo que há é o porto de Rio Grande – comenta o oceanógrafo Lauro Barcellos, diretor do complexo de museus da Universidade Federal do Rio Grande (Furg).
Mas, uns 20 quilômetros antes da entrada da Lagoa dos Patos, o navio já adernava demais. Havia entrado água do mar no tanque de lastro, usado para dar peso e manter a estabilidade. Não demoraria muito para ocorrer infiltração também na praça de máquinas.
O comandante reuniu sua tripulação e determinou a varação do navio. Ou seja, ele decidiu projetar o navio em direção à praia para ficar preso num banco de areia.
– Foi uma decisão para salvar vidas. Ele naufragaria se fosse adiante, então decidiu encalhar de propósito – explica Lauro Calliari, professor colaborador na área de Oceanografia Geológica na Furg.
O navio varou às 13h30min, largando cinco manilhas na água. Mas as horas seguintes não seriam menos tensas para os tripulantes do Altair. Após pedir socorro pelo rádio, eles ficaram sem energia e perderam a comunicação. O rebocador Plutão não tinha condições de se aproximar, segundo o relato do Tribunal Marítimo.
Seguia chovendo torrencialmente. Na manhã do dia 7, o comandante ordenou que abandonassem o navio. Os marujos não tiveram sucesso ao lançar o bote no mar – uma onda gigante derrubou a pequena embarcação, arremessando malas com roupas no mar. É aí que entram na história os pescadores do Cassino.
A manchete da edição de 8 de junho de 1976 de Zero Hora destacava: “Vendaval na Costa quase vira tragédia: pescadores salvam da morte 21 marinheiros do navio encalhado”. Liderados por Henrique dos Santos, riograndinos se lançaram com a canoa Pingo do Ouro no mar revolto, conseguiram passar a arrebentação e alcançaram o navio.
Henrique contou a ZH na época que os tripulantes do Altair “nem pareciam homens do mar”:
– Estranhei muito aqueles marujos. Desesperados, queriam sair de qualquer jeito. Alguns até queriam se atirar no mar. Imagina só, com as ondas daquele tamanhão, onde iam parar? Eu mesmo coloquei uma escada do meu barco no convés do navio e subi para buscá-los. Todo mundo queria vir primeiro e foi um trabalhão acalmar aquela gente.
Acostumado a salvar marinheiros em Rio Grande, ele trabalhou o dia inteiro no resgate. Henrique faleceu há cerca de 20 anos. Outro pescador, Vanderlan Leal, 81 anos, mais conhecido como Chico, também foi testemunha. Conta que, no topo das ondas, a canoa chegava à altura do convés, voltando a bater na parte baixa do casco na sequência.
Ele jura que não sentiu medo.
– Nós somos nascidos e criados no mar – justifica.
Chico calcula que fez o percurso de canoa até o navio umas 30 vezes. Ele e os demais pescadores acabaram remunerados pela seguradora pelo resgate dos tripulantes e dos seus pertences. Mas não foi o dinheiro o que compensou o esforço.
– Pagaram uma mixaria. A gente foi mais para salvar o pessoal mesmo – galhofa o homem do mar.
Os marujos foram levados aos hotéis Europa e Paris, instruídos pelo comandante a não comentar o incidente com a imprensa. Todos foram ouvidos pela capitania dos portos e liberados.
A proprietária da embarcação, a Companhia Linhas Brasileiras de Navegação (Libra), não achou vantajoso retirar o Altair do mar. Nem mesmo a carga foi salva – os porões inundaram e molharam o carregamento de trigo.
– Cansei de ver trigo na praia – lembra o aposentado Luiz Hidalgo dos Santos, 79 anos, que intermediava a venda de peixes àquela época.
Reportagem de ZH atestou em 12 de junho: “O cargueiro Altair é oficialmente o mais novo integrante do cemitério de navios formado ao longo da costa gaúcha”. No inquérito da Marinha, o caso foi arquivado após ser declarado fortuna do mar – acidente imprevisível ocorrido no mar.
O navio ainda pegaria fogo antes de se desmanchar e ser parcialmente engolido pela areia.
E o Altair vai sumir
O Altair está a 12 quilômetros ao sul da estátua de Iemanjá do Cassino, com acesso apenas pela praia. Construído na década anterior, tinha 69 metros de comprimento e 12,5m de largura. O que restou dele foi a popa, a parte posterior da embarcação.
A ruína está parcialmente fora do mar, mas a visibilidade varia de acordo com a maré. Sofre com a ação do tempo e da maresia, tendo pedaços arrancados pelas ondas a cada ano. Fotografias capturadas através do tempo mostram a degradação: em 1999, estavam lá os seis mastros; há cinco anos, eram dois; hoje, resta apenas um de pé.
O casco também já está boa parte enterrado na areia. Uns anos atrás, Calliari coletava mexilhões grudados no ferro do Altair para fazer paella, mas isso já não é mais possível. O professor acredita que, em um período entre 10 e 20 anos, o navio vá desaparecer. Admite que ficará algo saudoso quando isso acontecer – o Altair não tem grande importância do ponto de vista arqueológico, esclarece, mas virou um ícone do Cassino.
Já Lauro Barcellos, que também é marinheiro, aposta em cinco anos para o navio se desmanchar completamente. Na verdade, ele torce para que isso aconteça.
– Acho muito triste um barco encalhado. Encalhes sempre geram impacto ambiental negativo, sem falar que uma tripulação perdeu sua embarcação. Barcos foram feitos para navegar.
Ponto turístico do Cassino
O Altair é quase um ponto turístico do Cassino: já estampou camisetas, cartões-postais, chaveiros e foi até nome de bar. Mas, quase meio século após o naufrágio, não há muita gente que conheça a sua história. Pelo menos a verdadeira.
– Tem quem ache que todo mundo morreu – conta a rio-grandina Susana Nóbrega, 60 anos.
Susana é filha de Henrique, que liderou o resgate dos tripulantes em 1976. Ela era criança quando ocorreu o incidente. Só se lembra que a família comeu por mais de um mês o estoque do navio encalhado – o comandante havia liberado a dispensa para os pescadores.
– Eu não conseguia mais ver bolacha ou frango – ri Susana.
Mas ela cresceu ouvindo relatos sobre o incidente. Muito por causa disso, decidiu estudar História na Furg. O trabalho de conclusão do curso, apresentado em 2016, não podia ser sobre outra coisa. Ela não localizou nenhum tripulante, mas reconstituiu a história do encalhe pela memória do pai e de outros rio-grandinos que foram testemunhas.
– Meu pai sempre nos ensinou que o mar, além de ser um grande mistério, é muito traiçoeiro. E o Altair está aí nos lembrando disso.
Nas pesquisas, Susana se aliou ao também estudante de História Celso Braga, hoje com 62 anos. Desde pequeno, ele se interessa pelos naufrágios de Rio Grande, curiosidade que aumentou enquanto trabalhou no porto, primeiro atracando navios, depois no almoxarifado.
Foi ele quem localizou a edição do Anuário de Jurisprudência do Tribunal Marítimo, documento que descreve como ocorreu o naufrágio do Altair. De tanto que gosta dessa história, Braga foi presenteado pelo filho com uma foto ampliada do navio, envolvida em uma moldura preta. Mas os verdadeiros tesouros que guarda em casa já estavam à bordo do Altair. Ele recebeu de Susana uma edição em branco do Diário de Máquinas, um caderno de capa dura e páginas amarelados que não chegou a ser usado, e também o barômetro do navio.
Esse já passou por algumas mãos: foi dado pelo próprio comandante ao pai de Susana, que repassou para o tio dela, que o entregou a Celso. O barômetro é um instrumento antigo de meteorologia para medir a pressão atmosférica. O do Altair é envolvido em madeira maciça e tem os ponteiros apontando para indicações em espanhol: tempestad, lluvia, viento, buen tiempo, muy seco.
Há cinco anos, Braga ajudou a publicar em um jornal local o que de fato aconteceu com o navio e levou exemplares até o navio encalhado, para entregar a turistas. Queria que, além das fotos nos restos enferrujados do Altair, levassem de lá a história.
– Daqui a pouco não vai restar mais nada, só as lembranças – lamenta.