Em vez de arrebentar tudo com uma picareta, operários se agacham no chão e retiram a terra pacientemente com colher de pedreiro e formão. A cada 10 centímetros escavados, levam ela para uma grande peneira, suspensa em um tripé. Aos poucos, essa espécie de garimpo vai revelando preciosidades no meio de um canteiro de obras: moedas antigas, pedaços de louça europeia e fragmentos de utensílios que podem estar enterrados ali há 150 anos ou até mais de mil.
A obra de revitalização dará à Praça da Matriz, até fevereiro de 2021, pavimentação renovada, luminárias restauradas e outras novas, rede de energia elétrica renovada e todo um projeto paisagístico.
Mas também dá condições para o primeiro trabalho de arqueologia de que se tem registro no local.
Três profissionais com diferentes especializações na arqueologia e estudantes estão envolvidos, liderados pela arqueóloga Raquel Rech, 46 anos. A maior parte dos vestígios que já coletaram é de fragmentos de louças europeias do século 19. São pedaços de pratos, xícaras, sopeiras coloridas e com técnicas de decoração que vão de impressão com chapa de metal a pintura à mão. Muitas, acreditam os arqueólogos, vindas da Inglaterra, onde ficava a maioria das fábricas que usavam um tipo de cerâmica chamada faiança fina.
— A louça é uma das categoriais materiais mais interessantes que podemos encontrar, pelo grande número de informações que pode trazer, como marcas de fabricantes, padrões decorativos, técnicas decorativas, cores. A partir disso, há produções bibliográficas e informações das próprias fábricas que dão essa base de tempo — explica o arqueólogo Fabiano Aiub Branchelli.
Do mesmo século, foram encontrados tijolos que serviam de base para um muro que contornava a praça e também uma moeda de 40 réis, verde em razão da corrosão metálica. Mesmo assim, é possível identificar o brasão de Portugal no verso e referência à década de 1870.
Mas também há achados que remetem a períodos ainda mais distantes. Foram encontrados alguns pedaços de cerâmica guarani, confeccionados antes da chegada dos açorianos a Porto Alegre. Branchelli está com esperança de encontrar, também, carvão de uma fogueira indígena. Os objetos encontrados devem ser encaminhados ao Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo.
Os trabalhos dos arqueólogos recém começaram: desde julho, houve escavações em duas calçadas. A medida que a obra avança e são feitos buracos no solo, eles podem aproveitar para fazer suas buscas também, seja na retirada da pavimentação, na escavação de dutos para fiação elétrica ou valas para os postes de iluminação.
A equipe tem esperança de encontrar ainda vestígios de um cemitério açoriano do século 18 e encanamento ou a base do chafariz que distribuía água potável à população no século 19. Nele ficavam originalmente as esculturas em mármore carrara que homenageavam o Guaíba e seus afluentes (Caí, Sinos Gravataí e Jacuí) — hoje, elas estão nos Jardins do Dmae.
— Como esse local está relacionado a várias etapas da história de Porto Alegre, desde sua gênese, guarda muitos vestígios das diferentes ocupações históricas — destaca Raquel.
O monitoramento arqueológico foi exigido em razão da importância histórica da praça, tão antiga quanto Porto Alegre. Hoje ela se chama oficialmente Praça Marechal Deodoro, mas já foi referida como Praça do Novo Lugar, em 1772, Praça do Palácio da Presidência, em 1789, e Praça Dom Pedro II, para marcar a visita do imperador, em meados do século 19. Cercada pelas sedes dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário do Rio Grande do Sul, do Theatro São Pedro e da Catedral Metropolitana, a praça se consolida desde a fundação da cidade como um centro político, social, religioso e cultural.
Ao todo, serão investidos nas obras de revitalização R$ 2.568.998, com recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) Cidades Históricas do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), via Caixa Econômica Federal. A verba está disponível há sete anos, e as obras poderiam ter começado ainda em 2014. Na época, uma empresa chegou a ser escolhida, mas, sem garantias financeiras, não assinou o contrato.
O Monumento a Júlio de Castilhos (inaugurado em outubro de 1914) e a esplanada em que ele se encontra foram restaurados entre 2017 e 2018. Foi investido R$ 1,105 milhão na substituição de materiais degradados, limpeza, reboco, pintura e instalações elétricas nas luminárias.