Da invenção do “espaço geográfico e afetivo que hoje chamamos Rio Grande do Sul” às imagens da contemporaneidade, um curso propõe um passeio através dos séculos pela produção artística do Estado. Intitulado Tópicos em História da Arte no RS, o projeto integra o programa Revelando o Rio Grande, iniciativa do Instituto Estadual de Cinema (Iecine) e da Secretaria de Estado da Cultura (Sedac) que oferece aulas online gratuitas à comunidade (mediante inscrição prévia aqui) pensando a técnica e a representatividade das expressões locais da visualidade.
Com início nesta segunda-feira (4/10), o curso terá 12 encontros, um por semana, até 27 de dezembro. A coordenação é dos professores da UFRGS Paula Ramos e Paulo Gomes, ela também curadora e jornalista e ele também artista e curador, mas quase todas as aulas terão docentes convidados, escolhidos conforme seus estudos na área, formando um grande painel do que de mais significativo o Estado produziu – visto a partir dos olhares de pesquisadores especializados em cada um dos tópicos abordados.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, os dois ministrantes respondem como esse painel pode ser vislumbrado e, ainda, como o Rio Grande do Sul tem trabalhado, inclusive na atualidade, a preservação e a construção de sua memória visual.
O curso aborda a arte local desde a experiência jesuítico-guarani, no século 17. Qual o legado desse período inicial na formação do Estado e no imaginário que se criou em torno do que vocês chamam, na apresentação do curso, de “espaço geográfico e afetivo que hoje chamamos Rio Grande do Sul”?
Paula Ramos – Quando a gente pensa na imagem icônica que representa o Rio Grande do Sul, não apenas para os gaúchos, mas para o restante do Brasil, me parece que essa imagem é a da fachada da igreja de São Miguel das Missões. É uma imagem que, efetivamente, foi e continua sendo trabalhada em campanhas publicitárias, campanhas turísticas, está nos livros de história etc. É uma imagem forte, que evoca uma série de aspectos que foram sendo incorporados ao Estado e aos seus habitantes. É interessante pensar, porém, que na metade do século 20, houve um intenso debate historiográfico que discutia a formação e a constituição do Rio Grande do Sul. Esse debate tinha, de um lado, intelectuais que defendiam a predominância do elemento português na formação do Estado, cultivando a ideia de de “província sacrificada” na defesa das fronteiras; e, de outro, havia os que sustentavam a influência da região do Prata nessa mesma formação. Esse debate historiográfico produziu uma série de artigos, livros e conferências, e esse material nos dá a dimensão de parte daquilo que a Joana Bosak, que é a primeira convidada, chamou de “a invenção do Rio Grande do Sul”. Porque é justamente isso: como foi construída essa história do Rio Grande do Sul e a história do seu grande personagem, o gaúcho. Então, é interessante a gente recuperar essa ideia de que tudo é uma construção, que a história, que os intelectuais, que as pessoas que se dedicam ao tema, quando estão escrevendo, pensando sobre, elas estão construindo uma narrativa. É essa narrativa que vai ser problematizada. Por outro lado, respondendo de forma bem objetiva à questão sobre o legado da experiência jesuítico-guarani, ele aparece de várias formas. De um modo rápido, na própria questão material, ou seja: nas ruínas, na arquitetura, nas obras escultóricas. E é um legado que não está circunscrito apenas ao Rio Grande do Sul. A gente fala muito em “Sete povos das Missões”, mas, na realidade, foram 30 povos, espalhados entre os territórios do que hoje são parte do Brasil, Argentina e Paraguai. E esses 30 povos eram unidos pela cultura, pela língua, pela paisagem. Então, nós vamos encontrar esse legado nos museus regionais desses países, mas nós vamos encontrar esse legado de uma forma também muito simbólica nas lendas, na literatura, nos personagens. Se pensarmos em algumas das lendas fundadoras do Estado, como a Boitatá e a Salamanca do Jarau, elas têm como cenário a região das Missões. Se pensarmos em um livro icônico, que é O Tempo e o Vento, de Erico Verissimo, ele começa justamente recuperando também essa paisagem e personagens ligados a essa história. Se pensarmos em uma figura histórica, alçada à condição de mito, que foi Sepé Tiaraju... Isso é tão forte na nossa cultura, que, ao longo de décadas, vários artistas recuperaram, se lançaram a esse patrimônio, a essa memória, para construir as suas produções. Isso vai desde Aldo Locatelli, que traz a fachada da igreja de São Miguel em um de seus afrescos mais icônicos, o que representa, justamente, a formação do Rio Grande do Sul, localizado no Palácio Piratini, passando por artistas contemporâneos, como Luiz Carlos Felizardo e Vera Chaves Barcellos, que revisitaram essa história em sua beleza e tragicidade. Então, estamos diante de um legado amplo, que vamos discutir, no curso, notadamente nos dois primeiros encontros.
O Rio Grande do Sul tem uma modernidade artística bastante efervescente, graças, entre outros aspectos, à profusão de artistas gráficos em torno da antiga Livraria do Globo. Como esses artistas se integram ao sistema artístico local, sendo que os sistemas das artes se estruturam, em grande medida, em torno da produção em outras linguagens - pintura e escultura, por exemplo?
Paula Ramos – Durante muito tempo, artes gráficas, artes decorativas e uma série de outras produções artísticas ficaram à margem dos estudos em história da arte. Nas últimas décadas, todavia, vários pesquisadores espalhados pelo mundo passaram a se dedicar a esse eixo. E eles têm provocado uma série de revisões da própria história da arte, evidenciando a genuína modernidade dessas imagens. No caso do Rio Grande do Sul, se tomarmos os impressos efêmeros, os pôsteres, as ilustrações e as capas de revista do início do século 20, seremos surpreendidos com uma visualidade arrojada, que não encontramos na pintura do período, por exemplo. E por que isso? Porque os impressos, evidentemente, não eram produzidos como "arte", eles não vinham com o peso da tradição. A própria materialidade do papel, em seu caráter despretensioso, franqueava aos ilustradores e artistas gráficos uma liberdade única. E estamos falando, ao mesmo tempo, do uso de tecnologias de reprodução de imagem, o que havia de mais moderno no período. Então, essas imagens feitas para circulação, consumo e, muitas vezes, descarte, tinham um caráter de efemeridade que lhes dava uma liberdade que os pintores, por exemplo, não vivenciavam. O interessante é que muitos desses artistas que se dedicaram ao segmento gráfico também tinham uma atuação e produção como pintores. E talvez o caso mais paradigmático seja o de João Fahrion, que construiu sua trajetória como um dos mais importantes ilustradores trabalhando para a antiga Livraria do Globo, mas que, ao mesmo tempo, tinha uma produção sólida em pintura, prêmios em salões de arte e era professor no antigo IBA, o Instituto de Belas Artes do Rio Grande do Sul, atual Instituto de Artes da UFRGS. Ao mesmo tempo, ele estava também na Associação de Artistas Plásticos Chico Lisboa, fundada em 1938 e que congregava artistas autodidatas, muitos deles ligados ao círculo da ilustração, e que se sentiam alijados pela academia. Então, era uma figura que transitava com desenvoltura tanto no âmbito gráfico como no propriamente artístico. Compreender esses trânsitos é muito interessante, e vamos discutir isso no curso, tomando exemplos como de Edgar Koetz, Nelson Boeira Faedrich, entre outros.
Observando todo o programa do curso, é possível perceber a existência de uma série de rupturas históricas promovidas no Estado, algumas acompanhando tendências nacionais ou internacionais, outras com movimentos locais bem específicos. Olhando de maneira geral e em perspectiva, pode-se dizer que a arte gaúcha tem, ou teve, em algum momento, caráter inovador ou vanguardista? Quando?
Paulo Gomes – Bem, primeiro é importante colocar aqui que essa questão de ter movimento vanguardista ou estar na vanguarda é uma espécie de corrida fictícia criada pela história da arte. Na verdade, a produção está sempre alinhada de acordo com as condições dadas no momento. Seja no Rio Grande do Sul, seja no Brasil, seja na América Latina e assim por diante. Com relação ao fato de que se há algum momento inovador ou vanguardista, rigorosamente falando, a gente pode dizer que não. Mas, se formos observar atentamente, a gente pode dizer que sim, quando, por exemplo, vemos um pintor como Pedro Weingärtner, que está, em pleno século 19, início do século 20, fazendo pintura naturalista. Do mesmo modo que outros artistas, como Eliseu Visconti, no Rio de Janeiro, ou Almeida Júnior, em São Paulo, ele está sendo vanguardista. Outro aspecto que é importante observar é que, se formos olhar com muita atenção, o movimento de reação aos movimentos abstratos de São Paulo, no final da década de 1940, início da de 1950, ou seja, o concretismo e as abstrações concretas, o Rio Grande do Sul faz um movimento de reação. Esse movimento, que é o do Clube de Gravura, é um movimento realmente de ruptura, inovador, que vai reivindicar a permanência ou a necessidade de manter uma produção alinhada com as questões sociais do país. Então são momentos que a gente pode definir, por exemplo, como movimentos de alinhamento ou de ruptura. Não necessariamente de vanguarda nem de inovação, mas de uma espécie de alinhamento. Mas devemos ficar calmos com relação a essa necessidade histérica de ficar correndo atrás de movimentos de vanguarda – se não tivermos, estamos atrasados, somos inferiores etc.
Chama a atenção a presença dos professores convidados para as aulas. Há muitos pesquisadores que trabalham recortes específicos abordados pelo curso, o que evidencia o quanto a profundidade da pesquisa sobre essa produção. Como foi esse processo de formatação das aulas e escolha desses convidados?
Paula Ramos – O curso se propõe a ser um panorama de algumas das principais questões em torno das artes visuais no Rio Grande do Sul. Dentro de um número de aulas que nós consideramos viável para o curso, pensando que ele não é para especialistas, mas para o grande público, nosso objetivo é apresentar esse panorama ao público mais amplo possível. Teremos, nas aulas, um momento que será de apresentação das questões principais em torno da pauta do dia e, na sequência, a discussão/atualização dessa mesma pauta, a partir da presença de convidados, de pesquisadores que se dedicam aos temas. Tivemos um cuidado muito grande para trazer ao curso pesquisadores que têm feito pesquisas importantes, recentes e continuadas sobre as pautas apresentadas no programa. São pesquisas que têm apresentado contribuições importantíssimas para se revisar a nossa história da arte. Também buscamos, dentro do possível, trazer não só pesquisadores atuantes em Porto Alegre, mas também em Pelotas, Rio Grande... Nós montamos, na verdade, o curso que gostaríamos de assistir como público. Temos certeza de que será uma oportunidade maravilhosa de aprendizado, de vivência e de entrar em contato com esses pesquisadores. Será muito lindo!
Uma aula será dedicada à institucionalização do campo artístico, fortalecida no Rio Grande do Sul a partir dos anos 1990, o que colaborou para a promoção e da circulação da produção local. Como vocês veem os desdobramentos desse processo hoje, a permanência dessas instituições e a difusão da produção local duas, três décadas depois?
Paulo Gomes – Bom, realmente, nos anos de 1990, há um impulso bastante intenso de institucionalização do sistema das artes locais. Há uma série de ações, como o reforço da atuação das galerias, através da associação das galerias em entidades de classe, o incremento dos museus, a criação do MACRS etc. E, também, a Bienal do Mercosul que é, na verdade, um evento que vai dar grande visibilidade ao sistema de produção local. Olhando hoje, retrospectivamente, vivemos um momento de extrema fragilização do nosso sistema das artes. Essas instituições ficaram precarizadas ao longo desses anos todos, em função das imensas dificuldades econômicas pelas quais o país passa. Então, não é uma questão local. É uma questão realmente nacional. Do ponto de vista da difusão da produção local, é importante ressaltar que ele mudou completamente. Se, nos anos 1990, ainda tínhamos os salões de arte e as próprias Bienais, hoje as instâncias mudaram, os modelos mudaram. Nós temos, agora, as residências para artistas; não temos mais os salões de arte. Temos bienais que são projetos curatoriais que atendem, principalmente, aos interesses vinculados às pesquisas dos curadores, o que também não dá o espaço de visibilização da produção contemporânea, aquela alinhada com a questão da produção propriamente dita, não vinculada a questões temáticas ou a outros tipos de relações que são articuladas nesse processo. Então, temos, três décadas depois, um cenário bastante deprimente. Na verdade, vivemos à mingua, lutando com imensas dificuldades para conseguir sobreviver. Mesmo que tenhamos instituições que conseguem se manter com uma produção e programação de excelência como a Fundação Vera Chaves Barcellos ou o esforço continuado da Fundação Ecarta, temos realmente uma fragilização no momento. Não é um momento bom, nem para a produção local, nem para a visibilização dessa produção.
Em que estágio vocês acreditam que o Rio Grande do Sul está em termos de preservação de sua produção artística, aí incluídos desde os objetos indígenas dos primórdios até as maiores igrejas e edificações tombados como patrimônio histórico do estado?
Paulo Gomes – Estamos mal. Basta ver as últimas iniciativas tomadas pela prefeitura ao promover a "faxina" na escultura do Garibaldi e da Anita Garibaldi. Faxina feita com escova e sabe lá com que produto químico. Ação absolutamente incorreta e até criminosa. E, agora, com a pintura do viaduto da Borges de Medeiros, que é outro lesa patrimônio. Então, na verdade, temos instituições que não são ouvidas. Instituições que têm profissionais qualificados, pessoas plenamente gabaritadas para atender às demandas de preservação de patrimônio. Há uma outra questão, esta sobre a inscrição de monumentos no patrimônio. Nós temos um projeto bastante confuso no que determina o que deve ou não ser tombado ou, pelo menos, inscrito em listas de patrimônio. E isso também está à mercê de interesses de mercado em questões como, por exemplo, o plano diretor de Porto Alegre, que vai, simplesmente, pelo projeto atual, desqualificar o Centro Histórico. Então, isso tudo é um conjunto de ações, bastante complexo, que tem de ser trabalhado com as instâncias públicas, ou seja, com os gestores públicos do Estado e dos municípios, com os órgãos competentes para isso – todos os setores de patrimônio –, com as secretárias de Cultura e assim por diante. Sem isso, realmente nós não vamos ter nada para preservar ou nos vangloriar no futuro. Do jeito que as coisas andam, estão muito mal.