Por José Francisco Alves
Doutor em História da Arte e professor do Atelier Livre Xico Stockinger
Em tempos recentes, os resgates de produções antes relegadas tomaram força, em especial a arte produzida por mulheres, em meio ao um sistema dominado por homens. A primeira dessas ações aqui ocorreu em 2012, quando todo o Margs foi tomado pelas obras das mulheres do acervo, com O Museu Sensível, mostra curada por Gaudêncio Fidelis. Em meio ao espaço central do museu havia uma imensa estrutura expositiva em forma de vagina. Ao lado, no solo, uma fotografia, como um “buraco” no chão, a mostrar lá embaixo na reserva técnica (que fica abaixo desse espaço) as obras realizadas pelos homens. De lá para cá, várias mostras seguiram este exemplo.
Em 2020, na 12ª Bienal do Mercosul, que foi virtual, curada por Andrea Giunta, quase todas obras eram de mulheres, sob o tema: “Feminino(s): visualidade, ações e afetos”. Entrementes a essas valorizações coletivas, houve também o resgate de produções individuais femininas.
Nesse contexto, encontra-se até 5 de novembro, na Pinacoteca Aldo Locatelli, Paço dos Açorianos, a exposição O Jardim de Amelia, sob curadoria de Silvia e Rogério Livi. Uma retrospectiva com 39 obras da porto-alegrense Amelia Pastro de Maristany, pintora que expôs intensamente entre 1923 e 1971. Filha de casal italiano aqui radicado, Amelia nasceu em 9 de agosto de 1897. Com cerca de 20 anos, ela teria recebido suas primeiras lições de pintura com Francisco Coculilo.
Os curadores da mostra contam que em 1920 “a jovem Amelia saiu de seu curso de bordado a máquina, atravessou a Rua da Praia e foi visitar a exposição do pintor espanhol Luís Maristany de Trias, no Clube Caixeiral. Amelia, fascinada, viu o artista e ousou se aproximar. Por sua parte, Luis ficou encantado com as perguntas inteligentes daquela moça bonita. Dizem que nesse mesmo dia a pediu em casamento”. Esse veio a ocorrer em 19 de agosto de 1922. Amelia, com 25 anos; o catalão Maristany (1885-1964), com 37.
O casamento com um pintor deu um impulso à Amelia, que obviamente recebeu do marido um incentivo a desenvolver sua própria carreira. Ela assim passou a produzir, até o fim da vida, a temática que teria sido gestada nas memórias de sua infância: as composições florais. Após se casarem, Amelia e Luis estiveram por vários locais da Argentina – onde em 1928 nasceu a filha Amelia Alice –, Brasil e Europa. Em 1937, radicaram-se em Porto Alegre para o ingresso de Luis Maristany como professor no Instituto de Belas Artes (IBA). Nesses 15 primeiros anos de carreira, intensos, em várias cidades e países, Amelia sempre obteve respeito e admiração pela forma que explorou o seu tema, conforme os comentários de imprensa, em quase 20 individuais.
Em 1938, em sua primeira individual em Porto Alegre, no IBA, a apresentação de Angelo Guido explicou as suas qualidades: “Trata-se de uma artista de notável capacidade, de sensibilidade pictórica muito apurada, inteiramente pessoal, que pinta flores como ninguém, talvez, ainda as pintou no Brasil. Não há exagero nessa afirmação, pois não sei de outro artista nosso que tenha penetrado com mais sutileza o segredo de pintar flores e que tenha conseguido a sensação de naturalidade, vibração cromática e de vida que há nos quadros dessa brilhante pintora”. Em Porto Alegre, a intensidade das mostras diminuiu, mas permaneceu regular, em individuais e coletivas, por mais de 30 anos adiante. Amelia expôs pela última vez em 1971, vindo a falecer em outubro de 1979.
Tivemos outras mulheres atuantes em Porto Alegre, um pouco antes de Amelia, como Judith Fortes (1896-1964), mas esta pintora em atividade não atingiu o mesmo nível, pois dedicou-se ao magistério e sua produção e exposições foram limitadas. Assim, além de seu legado artístico, Amelia deve ser considerada a primeira pintora profissional do Rio Grande do Sul, em razão de ter alcançado uma carreira contínua, de praticamente meio século, em numerosa produção voltada às exposições e vendas, em sucesso de crítica e, ao mesmo tempo, comercial.
O Jardim de Amélia
Em cartaz na Pinacoteca Aldo Locatelli, no Paço dos Açorianos (Praça Montevidéu, 10), em Porto Alegre. Visitação de segunda a sexta-feira, das 9h às 12h e das 13h30min às 17h.