Pode ser surpreendente para quem não acompanha de perto, mas o cinema gaúcho é rico e diversificado em suas muitas formas de expressão documentadas desde mais de um século atrás. Do pelotense Os Óculos do Vovô (1913), de Francisco Santos, o mais antigo curta-metragem ficcional brasileiro de que se preservam imagens, até os cerca de cem títulos finalizados anualmente nas últimas temporadas (tomando como base os curtas inéditos inscritos no Festival de Gramado), a produção do Estado se mostra variada e, em seus pontos mais altos, amplamente reconhecida – já foi a Cannes, o maior festival do mundo, com 3 Minutos (1999), de Ana Luiza Azevedo, e já saiu premiada de Berlim, o mais político dos grandes eventos cinematográficos do planeta, com Tinta Bruta (2018), de Filipe Matzembacher e Márcio Reolon.
Já exaltou costumes rurais, no Ciclo da Bombacha dos anos 1970, já fez denúncia social, com, entre outros, o trabalho de Antônio Carlos Textor na década de 1980, já anteviu Glauber Rocha com o marco Vento Norte (1951), de Salomão Scliar, um primo distante de Barravento (1962), longa de estreia do realizador baiano. Antes das atuais restrições de financiamento que ameaçam paralisar o cinema nacional, vinha empilhando elogios graças a filmes tão distintos quanto Céu, Inferno e Outras Partes do Corpo (2011), de Rodrigo John, Se Essa Lua Fosse Minha (2013), de Larissa Lewandowski e Pedro Gossler, Castanha (2014), de Davi Pretto, O Corpo (2015), de Lucas Cassales, e Mulher do Pai (2016), de Cristiane Oliveira, apenas para citar produções premiadas em festivais tradicionais.
A revisão histórica dessa trajetória será realizada no curso História do Cinema Gaúcho: Contextos e Personagens, a ser ministrado online pela pesquisadora e professora da Unisinos Fatimarlei Lunardelli (leia entrevista abaixo) a partir da próxima quarta-feira (3/3). As aulas terão a participação do também pesquisador e professor da PUCRS Glênio Póvoas. A atividade integra uma série de 50 cursos, todos gratuitos, realizados pelo Instituto Estadual do Cinema (Iecine) até dezembro de 2022. Trata-se do projeto Revelando o Rio Grande: Oficinas de Capacitação Profissional em Audiovisual, uma forma de difundir conhecimento e movimentar uma das áreas mais afetadas pelas restrições impostas pela pandemia – a economia criativa.
– Escolhemos começar pela história do cinema gaúcho pelo caráter simbólico – explica o cineasta Zeca Brito, diretor do Iecine, entidade vinculada à Secretaria de Estado da Cultura.
O Iecine também deu início a um projeto de indexação da filmografia local, organizando as fichas técnicas de todos os longas-metragens gaúchos em uma única plataforma. Glênio, uma referência entre os pesquisadores da produção audiovisual do Rio Grande do Sul (seu mestrado foi sobre Vento Norte e o doutorado, sobre os primórdios do cinema gaúcho), trabalha com Fatimarlei nessa empreitada. Ambos ainda terão textos publicados em outro projeto de resgate da memória audiovisual local: um livro que a Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (Accirs) prepara para lançar ainda em 2021, com cerca de 50 artigos sobre produções do Estado escolhidas de acordo com as preferências de seus associados.
Para o curso que começa na próxima quarta-feira, adianta a ministrante, Glênio foi convidado buscando implementar uma “abordagem dialógica”, conforme a qual as aulas expositivas serão seguidas de conversas com o convidado e os alunos. As 75 vagas se esgotaram em poucas horas, por isso a organização estuda a viabilidade de abrir novas inscrições e mesmo realizar uma segunda edição.
As atividades seguintes do projeto Revelando o Rio Grande: Oficinas de Capacitação Profissional em Audiovisual devem ser divulgadas a partir de abril e incluem, por exemplo, oficinas de roteiro, séries de TV, coproduções internacionais e construção de personagem. Para outras informações, pode-se acessar o site cultura.rs.gov.br e o perfil @ieciners do Instagram.
Confira, a seguir, a entrevista com Fatimarlei Lunardelli sobre o curso e suas (re)descobertas do cinema gaúcho.
Um olhar histórico para o cinema gaúcho revela a existência de ciclos muito diversos desde os primeiros documentários, passando pelos cinejornais, os longas-metragens de temática regional, os filmes urbanos, aqueles realizados em Super-8, até os curtas universitários recentes. Dá para pensar em algum tipo de unidade nesse grande conjunto?
É difícil estabelecer uma unidade num universo temporal, estético e formal tão amplo. Como toda cinematografia periférica aos centros econômicos mais desenvolvidos, o Rio Grande do Sul viveu dificuldades de produção, e mesmo assim temos um legado significativo. O cinematógrafo chegou a Porto Alegre menos de um ano após estrear em Paris, trazido por Francisco de Paola e seu sócio Dewison, em 5 de novembro de 1896. A primeira filmagem foi em 1904, feita pelo exibidor italiano que excursionou pelo Estado Giuseppe Filippi. Desde então, filmes sempre foram realizados, expressando nossos anseios e valores artísticos e culturais.
No programa de aulas, você fala em diversificação da produção a partir dos anos 1980. Nesse período, surgiram produtoras como a Otto Desenhos Animados e a Casa de Cinema de Porto Alegre e as primeiras entidades de representação dos cineastas. também foi a época dos primeiros prêmios mais significativos, como os obtidos por Ilha das Flores (1989), de Jorge Furtado. Foi um momento de amadurecimento do cinema gaúcho?
Quem quisesse fazer cinema no Brasil se mudava para o Rio de Janeiro, e isso acontecia com todos: do baiano Glauber Rocha ao cearense Renato Aragão, passando pelo paulista Nelson Pereira dos Santos. Os jovens porto-alegrenses dos anos 1980 não quiseram ir embora, por isso arregaçaram as mangas, se organizaram e geraram as condições para fazer seus filmes: fundaram empresas produtoras e entidades de classe e pressionaram o poder público para criar órgãos de governo para o cinema. Não há dúvida de que amadureceram! É uma geração que saiu da bitola doméstica do Super-8 e criou um fluxo de produção que projetou o cinema gaúcho urbano e contemporâneo, abrindo caminho para as gerações seguintes.
O trabalho de indexação da filmografia gaúcha, que você realiza com Glênio Póvoas junto ao Iecine, tem revelado descobertas interessantes? Trabalhos pouco valorizados ou perdidos?
Do convite de Zeca Brito para que apresentássemos uma proposta de pesquisa sobre o cinema gaúcho surgiu a ideia da indexação. Glênio trouxe a experiência de já ter pesquisado os primórdios de nossa cinematografia e tem feito a prospecção dos filmes dos quais são elaborados verbetes e fichas técnicas. É incrível, não imaginávamos tantos títulos, e isso que estão sendo listados apenas os longas! A tecnologia digital gerou uma explosão na produção, pela facilidade de filmagem e de exibição no YouTube. É o caso dos filmes de Alvorada, dos humorísticos de Evandro Berlesi e do coletivo de terror Alvorada Z. São obras que não estão no circuito comercial nem no radar da crítica. Esse curso que vamos apresentar juntos faz parte desse processo de pesquisa e “descoberta” do cinema gaúcho.
Os coletivos são uma maneira de fazer frente a desigualdades históricas e se beneficiam da facilidade tecnológica que não havia para filmar. É muito bom que, nessa nova realidade, outras formas de expressão sejam possíveis.
FATIMARLEI LUNARDELLI
Crítica e pesquisadora de cinema
A produção gaúcha – e a brasileira em geral – teve um crescimento quantitativo no século 21. As razões que explicam isso são muitas e incluem a popularização dos equipamentos graças às tecnologias digitais e também as políticas públicas de incentivo à realização. O que esse crescimento trouxe em termos qualitativos?
Um dos problemas da descontinuidade é que não podemos melhorar a partir dos erros, e o cinema sempre foi muito caro, uma atividade artístico-econômica de alto risco. A facilidade tecnológica ampliou as oportunidades, liberou a invenção e a criatividade, junto ao acesso à formação. Isso se reflete nas conquistas internacionais recentes, como a premiação de Tinta Bruta no Festival de Berlim de 2018 e a seleção de A Nuvem Rosa (longa de Iuli Gerbase) no Festival de Sundance (em janeiro de 2021), obras de jovens cineastas. Mas o desafio econômico permanece, pois fazer filmes continua sendo das artes mais caras, e a exibição, que sempre foi a etapa mais complicada de todo o processo, agora mudou drasticamente com o streaming.
A diversidade parece ter de fato aparecido nos últimos anos, com coletivos como o Macumba Lab, formado por realizadores negros, e o Mbyá-Guarani, por profissionais de origem indígena. Que tipo de avaliação já se pode fazer sobre o impacto dessa diversificação?
Os coletivos são uma maneira de fazer frente a desigualdades históricas e se beneficiam da facilidade tecnológica que não havia para filmar. É o caso do Coletivo Mbyá-Guarani, surgido a partir do projeto Vídeo nas Aldeias (1987), do antropólogo e documentarista Vincent Carelli (diretor, entre outros, de Martírio, de 2016), para fortalecer a identidade e a cultura dos povos indígenas. O coletivo gaúcho foi criado em 2007 e dele se projeta a professora e cineasta Patrícia Ferreira Pará Yxapy, que tem uma filmografia de curtas e longas exibidos em mostras e festivais de cinema no Brasil e no mundo, como o American Native Film Festival e o Festival de Berlim, e em 2020 foi homenageada no Cabíria Festival Mulheres & Audiovisual. Então, é muito bom que, nessa nova realidade, outras formas de expressão sejam possíveis.