Com um metro e meio de altura e 60 centímetros de diâmetro, o sopapo — tambor produzido a partir de couro de cavalo e troncos de árvores, um legado dos escravos das charqueadas do século 19 — mal cabia nos braços do menino. “Tu vais ser o cara deste instrumento aqui”, previu Boto, babalorixá de Pelotas, diante de Gilberto Amaro do Nascimento, o Giba Giba, à época com 12 anos de idade.
Dito e feito. Em mais de seis décadas de carreira musical, Giba Giba foi uma espécie de guardião do sopapo. Parte dessa história está sendo contada, até o dia 28 deste mês, em exposição aberta ao público no Museu Júlio de Castilhos, na Capital.
— É uma das raras personalidades negras a receber homenagem de um museu no Estado. No século 21, com certeza, é a primeira (no século passado, o escritor e jornalista Aurélio Veríssimo de Bittencourt também foi homenageado) — diz Sandra Narcizo, curadora (junto à diretora do Museu, Doris Couto) da mostra, que inclui figurinos, fotografias e vídeos de shows, além do sopapo.
Nos anos 1950, com pais e irmãos, Giba Giba se transferiu de Pelotas para uma casa na Rua Joaquim Nabuco, na Cidade Baixa, em Porto Alegre. Naquele tempo, o bairro respirava carnaval. Em apenas dois quarteirões, havia cinco blocos, que ensaiavam na calçada e nos pátios das residências. O Seresteiros do Luar, por exemplo, ocupava os fundos do quintal de Giba Giba. Lá pelas tantas, Mindoca (apelido de Maria Lúcia, a dona da casa) gritava da cozinha: “Devem estar mortos de fome. Vou preparar uns quitutes”.
Chegava uma hora que o pai, o militar Juvêncio Cardoso do Nascimento, batia palmas no pátio, sinal para todo mundo ir embora.
— As famílias tinham o hábito de passar a noite nas calçadas, bebendo cerveja e comendo pastéis. Eram saudáveis núcleos de convivência social. Se fosse hoje, os vizinhos chamavam a polícia — me disse Giba Giba, em entrevista de 2003.
Outra diversão eram as peladas no campinho de chão batido do Pão dos Pobres, onde era lateral-esquerdo — tinha como ídolo Oreco, que jogou no Inter de 1950 a 1957. Os times da Joaquim Nabuco e da Baronesa do Gravataí faziam o clássico das redondezas.
Como o destino estava traçado pela profecia do babalorixá de Pelotas, Giba Giba passou a frequentar as rodas de samba no bar de Dona Doca, na esquina das Ruas Barão e Baronesa do Gravataí. Dali em diante, não teve jeito — a música o acompanhou para sempre. Um dos fundadores da Praiana, primeira escola de samba de Porto Alegre, em 1960, integrou o conjunto de bossa nova Canta Povo (com João Palmeiro, Mutinho, Ivaldo Roque e as irmãs Sílvia e Laís Marques) e o grupo tropicalista Mordida na Flor (com Wanderley Falkenberg, Luiz Sant’Anna, Neri Caveira, Siboney e Maria da Graça Magliani).
A trajetória inclui participações em teatro, como em As Criadas, de Jean Genet, montagem do grupo Aldeia II (com Renato Rosa, Maria Lídia Magliani, Rubens Barbot e Chaplin) em uma garagem, na subida da Rua Santo Antônio, em 1969. Fez parte do Conselho Estadual de Cultura e foi “assessor de assuntos afro-açorianos” da Secretaria de Cultura de Porto Alegre, embora questionasse expressões como “afrodescendente”.
— Alguém é lusodescendente? Sou negro e pronto, e me orgulho disso — disse, certa vez.
Giba Giba gravou apenas um álbum individual: Outro Um, de 1992 (atualmente esgotado), que ganhou o Prêmio Açorianos de Melhor Disco e Melhor Compositor, em 1993 (também foi agraciado com a Medalha da Cidade de Porto Alegre e o Prêmio Quilombo dos Palmares). Entre as suas músicas mais conhecidas, estão Lugarejo e Feitoria. Deixou um acervo inédito, que deverá ser catalogado por uma instituição privada (há conversações avançadas com uma universidade).
— De letras, já contei 318, cada uma mais incrível que a outra — diz Sandra Narcizo, ex-produtora de Giba Giba, além de organizadora do livro O Sopapo Contemporâneo – Um Elo com a Ancestralidade, de José Madruga Baptista (MS2 Editora, 2021).