O Carnaval passou triste, acabrunhado. Foi inda agora, caso o leitor não tenha se dado conta neste “novo normal” em que o Brasil não esquentou seus pandeiros nem iluminou os terreiros porque quase ninguém queria – ou podia – sambar. Com o pensamento explodindo no Leste Europeu, vaguei por ruas e becos da lembrança até que algum algoritmo mental muito bondoso me fez encontrar Cartola. “Deixe-me ir, preciso andar... Vou por aí a procurar rir pra não chorar. Se alguém por mim perguntar diga que eu só vou voltar... depois que eu me encontrar.”
De Cartola e sua vozinha de sussurro, fui parar – e lá me deixei ficar – no pelotense Giba-Giba (1936-2014).
Sempre gostei muito de Feitoria (“Trabalhar, olê... Trabalhar até morrer!”). Um clássico, especialmente na voz rouca dele próprio. Gilberto Amaro do Nascimento gravou um único disco, Outro Um, que Maira e eu fomos logo comprar pela intuição de que teríamos, ali, uma relíquia. Foi 30 anos atrás. Muito de Giba e de sua história está ali – o samba vindo de Canguçu e Pelotas para tomar a Capital de um jeito altivo e humilde como Giba sabia ser. Nos longos telefonemas que vez em quando Maira e eu trocávamos com ele, ficava minha certeza de que falávamos com uma certa majestade, tão admirável como outros sambistas que cultuamos, merecidamente, nos grandes centros de reverberação musical do país.
– Bah, Giba... Aquela que começa assim... “No Areal, tinha samba todo dia”... sabe? Não me sai da cabeça. É uma crônica, Giba!
– Ahh.... Não fala assim que eu vou ficar convencido...
“Sambista” é pouco para Giba. Foi um pesquisador que trouxe para a cena cultural e etnográfica do Rio Grande e do Brasil o sopapo, o tambor compridão, corpulento e carismático como ele próprio era.
Já faz tempo, muito tempo, que peguei o telefone.
– Giba, penso em pautar uma entrevista contigo na Aplauso. Pode ser?
– Aí sim..., escutei, no jeito brejeiro e cheio de significados com que se expressava.
Era 2003, Giba atuava em uma seção de uma subpasta da Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre.
– Como tá sendo lá, Giba?
– Bah... Complicado pra fazer qualquer coisa... A burocracia é o cemitério dos sonhos!
Não entendo como ele gravou só um disco, lá em 1992. A concentração de verbas das leis de incentivo à cultura em artistas bem posicionados no firmamento do marketing cultural e das relações com o poder ajuda a explicar – meramente explicar, porque justificar é impossível – como grandes talentos populares, sem poder de influência, ficaram ao relento, relegados àquela situação que Giba cantou na sua célebre Lugarejo: em um canto do mundo, perdidos, sem dinheiro. “Mas sem canga!”, imagino Giba a me dizer, servindo-se de um outro verso de Lugarejo.
Não entendo, igualmente, como Giba Giba não recebeu o título de doutor honoris causa por alguma de tantas universidades à nossa volta. Aliás, entendo. Giba não fazia política, nem queria.
O que entendo, sim, e saúdo, é a implementação, em Porto Alegre, de um auxílio emergencial para acudir artistas em dificuldades financeiras e que leva o nome artístico deste memorável brasileiro do Sul, Gilberto Amaro do Nascimento.
Não acho que esteja de bom tamanho, ainda. Giba merece muitas outras homenagens. E elas virão. Para retumbar daquele jeito como ele fazia ao descer a mão espalmada no couro ancestralmente cúmplice do seu sopapo.