O sofrimento do povo ucraniano com a ofensiva das forças russas é uma tragédia com muitos culpados, como a história tenderá a demonstrar à medida que a fumaça escura vá se dissipando no horizonte e sejam removidos os escombros de versões reducionistas que inevitavelmente cairão por terra.
Quem lê o noticiário na Rússia é abastecido com a visão de que o país está finalmente reagindo contra o gradativo avanço militar ocidental na região.
Na China, a versão não é muito diferente. No Ocidente, como vemos por aqui, prepondera amplamente a interpretação de que Vladimir Putin é um tirano que se move, sem qualquer freio, por uma delirante sanha expansionista que resulte em mais poder para si.
Tudo parece mais fácil na vida quando olhamos situações complexas por meio de um esquematismo binário. O mal versus o bem. Filiamo-nos a uma corrente qualquer, e o lado em que não estivermos será, claro, o da mentira.
Tudo parece mais fácil, na vida, quando olhamos situações complexas por meio de um esquematismo binário. O mal versus o bem. Filiamo-nos a uma corrente qualquer, e o lado em que não estivermos será, é claro, o da mentira, aquele que só produz iniquidade.
Quem é juiz de verdade, e aqui me refiro, claro, a magistrados de carreira em nada parecidos com a afetação e o histrionismo de um punhado de ministros do STF, sabe que o julgamento justo precisa considerar todos os elementos de uma realidade e ater-se, objetivamente, aos fatos, leis, contratos e acordos firmados.
Fechando parênteses, olho para o Leste Europeu e reconheço todas as dúvidas que pairam sobre onde iremos parar. A guerra nos deprime e revolta, mas se há algo que podemos colher dessa catástrofe militar e econômica com cara de anos 70/80 é a noção de que problemas não resolvidos do passado tendem a reaparecer maiores e mais ruinosos do que foram um dia.
Perguntas, mais do que respostas, eis o que temos.
O que sabemos sobre a composição das forças políticas na Rússia? A possível queda de um líder autoritário e sem escrúpulos, como Vladimir Putin, teria o condão de romper o histórico apego dos russos por governantes com punho de ferro? O que virá em seu lugar? Lembremos que a disputa envolve não apenas o comando de um país, mas de um arsenal de armas nucleares apontadas para o Ocidente.
E a Ucrânia? Rasgada por uma inegável divisão entre separatistas pro-Rússia e nacionalistas desejosos de uma pátria integrada à Europa ocidental, como poderá seguir em frente se fizer a opção de combater e sufocar os movimentos de independência? O apoio dos Estados Unidos e da Europa daria força e legitimidade a esta pretensão ou apenas empurraria para o futuro novas tensões?
O espaço chega ao fim, e não há lugar para vários outros questionamentos — inclusive sobre a existência da Otan, que parece reivindicar o direito ao monopólio da força enquanto age com contradições inexplicáveis. Uma delas — a postura ambígua da Alemanha, que investiu na dependência do gás russo — foi apontada de forma contundente por Donald Trump.
Por falar em EUA, a tibieza de Joe Biden agrega incerteza ao horizonte — mas não tanto quanto o paciente e sutil jogo da China para abraçar a Rússia e, braços dados com o Moscou, aumentar sua zona de influência aqui perto do Brasil através de iniciativas já firmadas de "cooperação" militar e de tecnologia nuclear com Venezuela e Argentina, respectivamente - além de Cuba, por razões históricas.
E o Brasil, como entrará neste tabuleiro?
Esta guerra pode chegar perto de nós — mas isto é assunto para um outro momento.