No meu sonho, havia um sujeito simpático parecido com um grande amigo de infância que eu tive. Não lembro de mais nada, a não ser de que era uma presença boa, que me dizia algo sobre o tempo e que me contemplava com um olhar sereno.
Fiz meu chimarrão cedo, e o primeiro gole que puxei foi bem longo, aquele que se toma fechando os olhos e espraiando a mente. O que aquela doce figura quisera me dizer sobre o tempo? Por que irrompeu no meu sono? Acaso era o emissário de alguma camada mais profunda de minha consciência, a vir me curar de alguma aflição sobre o tempo dos homens, e das coisas?
Engoli devagarzinho as divagações até o ronco final da cuia.
O trabalho chamava.
Como em muitos outros dias típicos, o assunto dominante, no noticiário, era vacina. Aliás, me engano. Logo percebi que a questão de fundo não era sobre outra coisa senão sobre... o tempo.
Uma notícia vinda dos Estados Unidos, e desdenhada pelos veículos do “Consórcio de Imprensa”, dava conta de uma decisão judicial de primeira instância que tive de ler mais de uma vez, dado o estupor que me causou. Um grupo de médicos norte-americanos “Pela Transparência” havia solicitado, com base na lei local de acesso à informação, que a Food and Drug Administration (FDA) disponibilizasse os documentos que havia recebido da Pfizer e que deram base à decisão da agência de conceder o registro definitivo à vacina naquele país. A FDA, órgão regulador de atribuição semelhante à da Anvisa no Brasil, informou que não poderia atender ao pedido dos médicos – não no prazo solicitado por eles, 3 de março de 2022. A agência ponderou que teria de fazer uma análise minuciosa de 329 mil páginas de documentos antes de liberá-los, pois precisava reter, sob sigilo, informações confidenciais de natureza comercial do fabricante, a Pfizer/Biontech, e também dados pessoais de quem participou dos testes clínicos.
Tudo parecia razoável, a demanda dos médicos e a resposta da FDA. Mas eis que a agência, para talvez demonstrar quão impraticável seria a liberação de todo aquele material, fez um cálculo assustador. Com base na sua estrutura humana e material, previu que conseguiria liberar só 500 páginas por mês. Levaria, portanto, quase 55 anos para disponibilizar as 329 mil páginas.
55 anos!
Os médicos recorreram e a Justiça, em sua primeira decisão, deu razão à inconformidade deles com as alegações da FDA. Um novo cronograma, mais “razoável”, deve ser construído em nome da transparência.
Desde o início da pandemia, lemos e ouvimos que o desenvolvimento de vacinas em tempo recorde é uma proeza da ciência e que fazer perguntas ou expressar dúvidas sobre tal celeridade é obscurantismo. Pois admitamos que sim, que a pandemia tenha legado à humanidade semideuses, senhores do tempo capazes de garantir segurança e eficácia de vacinas em prazo recorde, sem observância de todas as etapas de pesquisa. Acreditemos que o homem subjugou o tempo e o tornou irrelevante.
A pergunta que os senhores do tempo precisam responder é por que a documentação da vacina, aprovada em alguns meses pela FDA, demanda 55 anos para ser aberta ao escrutínio público.
Encontrar sentido na realidade se tornou, por vezes, mais difícil do que interpretar sonho.