Por Beatriz Araújo
Secretária de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul
Que memórias guardam os museus? Quais identidades foram selecionadas para se tornarem oficiais e ajudarem a contar sobre nossa terra, nossas histórias? Mas quais histórias? Sempre haverá mais de uma versão do mesmo fato. Museus consagram, oficializam, mas também apagam, silenciam.
É esse apagamento realizado pelo projeto de museu do Estado, atribuído a Julio de Castilhos, e o silenciamento, promovido pelo positivismo e levado a cabo por ele e por seus sucessores, que se busca reparar.
Antes, porém, é preciso contextualizar o projeto de museu que se instaura no Brasil na chamada Era dos Museus, vigente entre 1890 e 1939, em que esses espaços de institucionalização das identidades reúnem, preservam e difundem, como história oficial, os fatos regionais e seus heróis, dos quais se apresentam apenas as virtudes, omitem-se atrocidades, crimes de guerra e todas as demais violências simbólicas. Museus fazem tais heróis se tornarem imortais, assim como os monumentos e os nomes de rua.
No caso do Museu Julio de Castilhos, fundado em 1903, o acervo histórico só é impulsionado a partir de 1925, contudo, seguindo o que vinha sendo implementado por outros espaços de memória, como o Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro, conduzido, a partir de sua criação, em 1922, por Gustavo Barroso, onde a história se fez branca, europeizada, masculina e da elite, logo, excludente. Contou-se uma versão e conta-se ainda uma versão cada vez que entra um objeto na coleção de um museu.
A musealização do tambor de sopapo como acervo do Museu Julio de Castilhos, ato contínuo ao reconhecimento do sopapo como patrimônio imaterial de Pelotas, formalizada na sexta-feira (13), constitui-se em um gesto de reparação de 118 anos de silenciamento com relação à participação do negro na história e no desenvolvimento do Rio Grande do Sul.
O museu possui instrumentos de tortura utilizados para castigar os escravizados e raras outras peças que testemunham a vida pós-escravidão. Afora isso, registram-se as ausências e os silenciamentos, que se espera aplacar com um processo que se inicia com o ecoar do sopapo, esse tambor com alma e transcendência, e que se pretende continuar com a captação de doações como documentos e imagens dos clubes negros e possíveis acervos de griôs e mestres que vêm travando uma batalha incansável para que a história reconheça o lugar de identidade e memória oficial do povo negro desse Estado.
Como cantou Gilberto Amaro do Nascimento, o Giba Giba, pelotense, cantor, compositor, ativista cultural: “O sopapo foi batido lá, hoje é batido aqui...”, em referência a sua utilização como força e resistência.
Queremos contar essa história, trazer os mestres que a mantém viva, falar dessa reconfiguração do grande tambor e da sua imortalização enquanto batida que é vida e emoção, bem como homenagear Giba Giba pelo trabalho incrível que fez com o Projeto Cabobu, formando novas gerações de sopapeiros ou percussionistas do grande tambor.
Com a licença poética de José Batista, filho do mestre Batista e artífice do sopapo contemporâneo, esse ato não é só a incorporação física do tambor, porque, como o próprio tambor se revelara a ele, “não é só um tambor moço...”, é elo, é o som do trovão e a conexão com Xangô, com os demais orixás e com a mãe África que está em cada batida. Além disso, é também um saber de artífice (habilidade em realizar trabalhos manuais) que se revela no ato da musealização (levar para o museu como peça do acervo).
É da história de resistência, sal, sangue e dor dos negros das charqueadas pelotenses que estamos falando e trazendo para ecoar no templo positivista que se fez do Museu Julio de Castilhos e, portanto, de um novo capítulo da história em franca escrita coletiva, como é a história do povo negro, neste ou em qualquer continente.