No centro de Porto Alegre, uma casa abriga o leito de morte de um dos mais importantes líderes da história do Rio Grande do Sul. No Museu Júlio de Castilhos, os visitantes podem conhecer o quarto onde o estadista que dá nome ao espaço agonizou após ser operado pelo Dr. Protásio Alves para a retirada de um tumor na garganta. Durante décadas, muita gente se emocionou ao ver, ao lado da cama, a máscara mortuária criada pelo artista José Pelerini, em 24 de outubro de 1903, horas após o homenageado ter expirado.
O parágrafo acima trata de um espaço digno da dimensão da figura de Castilhos, um dos mitos formadores da identidade do Rio Grande do Sul. Embora seja fascinante a existência de um quarto como esse na Capital, há um problema em relação à história da nobre sala: ela é falsa. Nenhum dos móveis que jazem atualmente no local pertenceram a Júlio de Castilhos, muito menos presenciaram a morte do governante gaúcho.
É muito provável, inclusive, que aquela sala sequer foi, em algum momento, o quarto do estadista. E está aberta também a hipótese de que a máscara mortuária tenha sido produzida longe daquela casa, já que não há confirmação de que Castilhos tenha sido operado no endereço em que residia. Ou seja, diferentemente do que vem sendo narrado há quase um século, o estadista pode não ter dado seu último suspiro no logradouro 1.231 da Rua Duque de Caxias.
As conclusões e as novas hipóteses sobre a morte de Júlio de Castilhos vêm sendo levantadas por Doris Couto, diretora do museu há quase dois anos. Apesar da dimensão majestosa de tudo o que envolve a memória de Castilhos, o que a fez despertar para a necessidade de revisão da história da sala foi um detalhe. Ou melhor, dois: duas aspas. Após ver um mobiliário parecido em outro museu, imaginou que as peças tivessem a mesma origem, por isso foi checar informações sobre as chegada das peças. Naquele momento, estranhou que havia uma doação de “móveis que ‘pertenceram’ a Júlio de Castilhos”.
Por que “pertenceram” estava entre aspas? Foi a pergunta que fez Doris pensar que a história em torno do quarto estava mal contada. Mais estranho ainda foi descobrir que todos aqueles móveis foram doados em 1932, quase três décadas após a morte de Castilhos, por Maria Cecília Alves Osório, viúva do coronel Pedro Osório, líder do Partido Republicano e charqueador, que residia em Pelotas.
– Entramos em contato com a família de Osório e então descobrimos que as peças eram, na verdade, de um quarto de hóspedes da residência do coronel em Pelotas. Quando Castilhos ia até lá, ficava hospedado nesse quarto. Dona Maria Cecília era comadre de Castilhos e de sua esposa, Honorina, que também era pelotense – conta Dóris.
Júlio de Castilhos viveu na casa que hoje abriga o museu desde 1898 até a sua morte, em 1903. Em 1905, o espaço foi comprado pelo governo do Estado, mas provavelmente foi adquirido sem o mobiliário usado pela família.
Doris não pode afirmar com certeza a motivação de Maria Cecília ao doar as peças, tampouco se houve intenção dos administradores da instituição à época de promover uma história falsa sobre o quarto.
– Não sabemos em que condições esses móveis chegaram até o museu. Era um tempo em que havia pouca averiguação sobre a origem das peças recebidas, muitas vezes acompanhadas de um simples bilhete. Pode ter ocorrido algum problema de comunicação, algum mal-entendido – avalia Doris.
De qualquer forma, o mobiliário foi útil na tarefa de promover uma aura mítica em torno da personalidade de Júlio de Castilhos. No mesmo ano em que as peças foram recebidas, há ofícios que tratam do quarto reconstituído do estadista.
– Este é um dos 10 primeiros museus do Brasil. A museologia da época era calcada na criação e no fortalecimento de mitos de uma identidade local almejada pelas elites. O leito de morte de Castilhos servia para isso. Com sua máscara mortuária ao lado, era um espaço de sacralização do personagem histórico – explica Doris.
Dessa forma, a partir dos anos 1930, a lenda do quarto começou a circular, inclusive nas visitas guiadas promovidas pelo museu.
Segundo Doris, a família de Castilhos nunca se conformou com a narrativa difundida a partir da exposição da mobília. Ao contatar a bisneta do governante, Ivone Brecher Ferreira, ela ouviu que seu pai, Mario de Castilhos Neto, era categórico sobre o assunto e não visitava o museu porque a instituição “apresentava mentiras sobre o avô”. Após as conversas, ganhou força até mesmo a hipótese de que a sala em que estão os móveis jamais tenha sido o quarto do casal Júlio e Honorina.
– Já levantamos várias possibilidades sobre a distribuição dos espaços na casa, mas não temos uma conclusão clara a respeito de como eles eram usados – diz Doris.
A diretora do museu também investiga agora se a cirurgia na qual Castilhos morreu teria ocorrido, de fato, em sua residência:
– Já havia hospitais em Porto Alegre à época. Essa revisão da história será realizada.
Depois de meses fechado por conta da pandemia, o Museu Júlio de Castilhos volta a receber visitantes nesta quinta-feira (19/11) – sempre de terça a sexta-feira, das 10h às 17h. A máscara mortuária, que permanecia ao lado do falso “leito de morte” agora foi colocada em outra sala, atenuando o clima macabro que pairou sobre o quarto desde os anos 1930. Além dessa mudança, haverá apenas um painel explicando a história do local e informações sobre o mobiliário.
– Como museóloga, não vejo problema em divulgarmos que isso foi percebido agora. Em um museu com 11 mil peças, é impossível dar conta da origem de tudo. Essa é a nossa gênese, precisamos desfazer os mitos que a cercam – diz Doris.