Uma Pelotas construída ao assovio do chicote. Nas charqueadas, o som da percussão tocada anos atrás ainda reverbera, trazendo à tona memórias de uma cidade, de um Estado e de um povo. José Batista, da tradicional família Batista, de músicos e construtores de tambores, lança o livro O Sopapo Contemporâneo — Um Elo com a Ancestralidade (MS2 Editora, 210 páginas, distribuição gratuita e limitada, mediante solicitação para editora@ms2produtora.com), no qual resgata, a partir de estudos antropológicos, a contribuição negra para a construção da cultura do Brasil e do Rio Grande do Sul.
A live de lançamento será nesta segunda-feira (21), às 20h, no perfil do Instagram @osopapocontemporaneo, com as presenças do autor, do secretário de Cultura de Pelotas, Paulo Pedrozo, e da produtora e editora Sandra Narcizo. A mediação será da jornalista Silvia Abreu.
A obra é narrada pela ótica do escritor, alternando entre o confessional e o didático. Para entender a importância do rei dos atabaques — outro nome dado ao instrumento —, o leitor é convidado a mergulhar na história de Batista, que assumiu a tarefa de fabricar um destes para um projeto do Quilombo do Sopapo, de Porto Alegre. Logo nas primeiras páginas, o autor conta sobre as vozes que ecoaram do instrumento, guiando-o desde o tamanho e o distanciamento dos rebites até a colocação do couro. Misticismo, poesia ou lirismo: esse é elo ancestral e, sem ele, o luthier constrói um mero tambor.
— Essa energia representa todo o sofrimento e o sacrifício que esse povo teve de passar para que nós pudéssemos nos dizer cidadãos com direitos hoje. Tem uma simbologia sagrada para o negro e, acima disso, se mesclou com outras culturas. É aí que o sopapo se torna um instrumento aglutinador trazido da Mãe África, o continente formador de todas as espécies — explica Batista.
No avançar do livro, as recordações pessoais e familiares de Batista são pinceladas para ajudar a reconstruir a história. Os relatos abordam desde o projeto CaBoBu — encontro de percussionistas em Pelotas nos anos 1990, no qual o jovem luthier teve de criar 40 sopapos em seis meses — até a morte de seu próprio pai. O autor também relembra o que ocorreu na cidade em outros tempos, como os crimes de enforcamento na Avenida Bento Gonçalves e na Praça 20 de Setembro, os clubes sociais destinados a brancos e a forja da imagem da Princesa do Sul pela exclusão da presença negra.
Torturadas e escamoteadas, as heranças imateriais do povo africano foram esquecidas, ao ponto de a cultura dos tambores mal constar nos registros históricos do Estado até mesmo nos dias de hoje. O luthier afirma haver notícias de que o batuque tenha começado a se estruturar em Pelotas em 1833. Novamente surge a figura do sopapo, que sofreu variações e passou de instrumento religioso a integrante dos cordões carnavalescos em poucos anos, quando os blocos viraram marco da cidade, entre os anos 1940 e 1970. Além disso, Batista é enfático: a imagem do gaúcho branco e forte, estereótipo do europeu, não passa de um modismo — foram os negros, os índios e os mestiços os formadores desta terra. Dito isso, ele ressalta o trabalho que há em alguns Centros de Tradições Gaúchas (CTGs) de contextualizar atabaques no tradicionalismo, ainda que ele não tenha sido plenamente inserido nesse contexto.
— Falar sobre esse assunto é uma homenagem a esses seres escravizados e também uma forma de denúncia. Atrás desse quadro pintado, existe uma tela coberta e não podemos nos esquecer disso. A cultura no Rio Grande do Sul se construiu a partir de todas essas existências dos nossos antepassados escravizados que trouxeram o ritmo por meio do batuque, dos quilombos. A levada do tambor charqueador formatou a música no sul do Brasil — diz ele.
A narrativa não se prende somente ao Rio Grande do Sul: Batista recupera na África a cor e a origem da humanidade, seguida da colonização e da escravidão no continente. É aos últimos dois que ele atribui o fato de haver um entendimento de que mulheres não podem tocar atabaque, mesmo que elas fossem soberanas e, por vezes, até faraônicas nas sociedades africanas, enquanto os europeus tinham uma cultura patriarcal. Não somente o autor defende que elas podem usar o instrumento como aponta que isso já ocorre nos dias de hoje — e, mesmo que não houvesse registros, o conceito poderia ser revisto contemporaneamente.
Como os registros sobre a metodologia da construção do tambor são escassos, o luthier também consolida sua obra como um importante e meticuloso guia para quem quer aprender a produzi-lo. Contudo, alerta: sabe ensinar a técnica, mas não pode repassar o elo. Este, que ele busca resgatar ao longo da obra, é o grande responsável por transformar o instrumento em um verdadeiro sopapo.