Por Júlio Ricardo da Rosa
Escritor, autor, entre outros, de “A Cicatriz Invisível” (Avec, 2020)
O único acontecimento que rivaliza em celebridade com a Revolução Farroupilha na História do Rio Grande do Sul é a Enchente de 1941. Para os porto-alegrenses é ainda mais importante. Com o passar do tempo, ela ganhou contornos míticos, e é raro que alguém não tenha um antepassado vivendo uma aventura naquele período. Com um universo tão rico, é estranho que tenha sido pouco explorada em nossa literatura. Rafael Guimaraens publicou um excelente livro-reportagem sobre o assunto intitulado A Enchente de 41 (Libretos, 2009), rico em imagens e informações, mas, na ficção, raros autores se utilizaram do período.
Dias de Água, de Luís Dill, se apropria do aguaceiro e seus efeitos na vida de diferentes personagens com habilidade, compondo um enredo que mistura várias histórias durante os dias de chuva incessante. O livro é construído em pequenos capítulos, apresentando personagens que irão se cruzar durante o desenvolvimento da trama, ou vão alterar o destino uns dos outros através de suas ações. Não há protagonistas na narrativa além da enchente. Os pequenos dramas assumem proporções maiores à medida que vão interferindo nos acontecimentos, como acontece na primeira aparição da vidente Madame Lubianka. Há um toque fantástico nessa figura que possui um dom natural, mas que não consegue escapar de sua condição social. O autor traça um quadro realista do período utilizando o cotidiano e a visão de mundo da época.
Não há descrições exageradas nem palavras de ordem no texto. Os descendentes de alemães que simpatizam com o nazismo são criaturas verdadeiras. Existem os fanáticos, que se julgam superiores, e os que se submetem simplesmente por fraqueza. Há bondade e vilania em todos os níveis nesse universo. A escrita flui com naturalidade, de forma direta, envolvendo o leitor. Essa clareza faz o relato mais verdadeiro, inspirando solidariedade ou revolta com os atos, ou a sorte das criações do autor.
Dill utiliza alguns lugares-comuns e tipos banais com competência, dando aos seus envolvimentos na evolução do livro o tom realista da vida. Este é o caso do jogador de futebol que após sofrer uma lesão e ficar impossibilitado de jogar, se transforma em cobrador de dívidas. Seu destino influirá na vida do patrão de sua mãe que se vê obrigada a um gesto de desespero e termina testemunha de um crime. Essas ligações elevam a narrativa e dão profundidade aos participantes da trama.
A ação constante é outro mérito do livro. Não existem elucubrações ou formas rebuscadas para explicar os participantes dos acontecimentos. Eles são definidos por suas atuações. Queremos saber o que vai acontecer, como os diferentes impasses serão resolvidos, nos tornamos íntimos dos dramas narrados. A escrita é direta, as frases, na maioria das vezes curtas, aceleram o ritmo e envolvem o leitor. Conseguimos enxergar as paisagens esboçadas com clareza, devido a essa técnica que realça a veracidade de atos e situações.
Dill tem afinidade com a literatura policial, e ela aprece claramente em Dias de Água. Há um delegado e um crime em uma das tramas, que é desvendado com uma dedução brilhante, surgida em um momento lúdico, e é um dos achados do livro. Quem conhece o romance Safari (Rocco, 2014), que Dill lançou anos atrás, sabe do que falamos. Não estamos no mundo do romance histórico, pois nenhum fato verdadeiro é manipulado para inserir a ficção. A verdade do passado serve de fundo, personagens e situações verdadeiras são mostradas para realçar a ficção.
A graça e a agilidade da escrita não diluem a os dramas narrados. O fanatismo, o preconceito social, a covardia e o medo estão documentados com veracidade. O juiz que hesita em assumir uma paixão, o fotógrafo que se aproveita de seu poder de sedução, o barqueiro que vinga a filha e o trágico destino do assino da própria esposa, que num ato de coragem tem sua redenção, reforçam a força deste romance que é o segundo volume de uma trilogia que o autor intitulou de Ciclo XX. Uma bela experiência de leitura. Quem ler, verá.