Em 2018, falando para Diário Gaúcho e Zero Hora, Martinho da Vila afirmou que não lançaria mais discos, somente singles na internet. E deu risadas, ao fim da entrevista. Quatro anos depois, ele diz o mesmo e segue rindo. Mas faz isso logo após lançar um projeto de fôlego: Mistura Homogênea. O álbum traz participações especiais de todos os filhos e netos do artista, além dos amigos Zeca Pagodinho, Teresa Cristina, Xande de Pilares, Djonga, Hamilton de Holanda e Paulina Chiziane.
O disco mescla sambas, xotes, canções românticas e até pitadas de rap. Além disso, 2022 marca outro ponto alto da carreira do músico: aos 84 anos, será tema do desfile da escola de samba Vila Isabel no Carnaval do Rio de Janeiro – isso um ano após ser homenageado no Grammy Latino com o prêmio por excelência musical. Nesta entrevista, Martinho fala sobre renovações, aborda temas como o racismo e, é claro, responde se agora vai parar de gravar discos.
Chama atenção a tua disposição, mesmo depois de tantos anos como referência do samba, de ter gás para gravar um trabalho grande, com 13 canções e diversas participações especiais, além de te preparar para ser homenageado pela tua escola do coração. De onde sai tanta disposição?
O corpo é uma máquina que não pode ficar parada nem quando você é novo (risos). Estou sempre em atividade, trabalhando devagar, claro. Nestes tempos pandêmicos, que a gente ficou muito tempo em casa, inventei muitas coisas. Neste álbum, há gente cantando em variados ritmos, como samba, partido alto, samba enredo, xotes, canções românticas. Tem muita reflexão, mas também de maneira descontraída.
O álbum tem participações especiais de nomes de gerações distintas. Misturou tudo neste trabalho?
Exato. Como diz o nome, o disco é uma mistura homogênea. A mistura é a solução. Na minha família, os Ferreira, tem umbandista, candomblecista, evangélico, católico… A gente se reúne todo ano. Cada um leva uma comida, a gente bebe, come, canta, reza. Todo mundo junto. Manda um cântico protestante depois da umbanda, é assim que tem que ser.
Por que reunir, além de filhos e netos, nomes como Zeca Pagodinho, Teresa Cristina e Xande de Pilares?
Foram vários encontros com eles. Normalmente, nos meus discos, não coloco tantos convidados, entra um ou outro. Tive a ideia de gravar o álbum depois da parceria que fiz com a Teresa Cristina (na canção Unidos e Misturados, lançada em 2021). Resolvi misturar cantores, compositores, gerações diferentes. A música é uma forma de as pessoas diminuírem resistências e aumentarem o respeito com os outros.
Para ti, um sambista experiente, grande referência do gênero, como foi essa troca com esses convidados?
Já cantei com muita gente, com gerações diferentes. É interessante, porque meus convidados se sentiram muito íntimos de mim, todo mundo é meu amigo (risos), eu sou de casa para eles. Como eles conhecem muito da minha trajetória, da minha história, acabam ficando nervosos durante os encontros, algumas vezes. Mas, no final, dá tudo certo. Quando comecei a fazer, pensei que esse disco tinha que ter um partido alto. Mas, quando a gente faz muitas músicas nesse estilo, elas ficam muito parecidas. Então, precisava de algo diferente. Daí, pensei que, ao invés dos versos serem cantados, eles poderiam ser falados. E já chamei o Zeca Pagodinho e o Xande de Pilares, meus camaradas, para gravarmos Vocabulário de um Partideiro.
A canção Vidas Negras Importam foi inspirada no assassinato do americano George Floyd, em 2020. Tu és uma voz forte dos negros no país. como vê o estágio atual do racismo por aqui?
É uma doença universal. Mas tem cura. Precisamos de igualdade entre as raças. Ninguém nasce racista, as pessoas aprendem a serem racistas com seus familiares, com o mundo. Vidas Negras é um é um xote que clama pela igualdade entre as raças.
Na faixa com Teresa Cristina, vocês se propõem a "cortar as ervas daninhas, tais como as que estão lá no cerrado", com referências que lembram políticos de Brasília. Qual reflexão vocês queriam provocar?
A música também tem que fazer pensar. Ela foi feita para satisfazer os ouvidos, mas, se ela levar à reflexão, é melhor ainda.
Na canção Oração Alegre, você reúne o pastor Henrique Vieira, o rabino Nilton Bonder e o líder muçulmano César Kaab Abdul, em uma canção que traz uma mensagem de harmonia religiosa. qual importância desse gesto, nos dias atuais, de intolerância contra as escolhas alheias?
Ela é um alegre encontro ecumênico, como os das festas da minha família.
Falando em família, pela primeira vez um álbum seu reúne todos os seus filhos e também netos. Como foi essa sensação?
Nunca havia conseguido reunir a prole toda. Agora foi diferente. Meus filhos participam do coro, participam de tudo. É uma mistura homogênea, mesmo.
A pandemia de covid-19 atingiu fortemente diversos setores, mas a cultura foi um dos mais prejudicados. Somente agora que os shows estão voltando à sua normalidade, Por exemplo. como foi esse período para você?
Você sabe que existem criadores de todos os ramos da arte, da literatura, da música, do teatro, do cinema, que produzem mais na adversidade. Não é o meu caso (risos). Nesse período pandêmico, fiquei realmente sossegado em casa.
Como referência do samba, como você enxerga o atual momento do gênero no Brasil?
O samba, como dizia o Nelson Sargento (1924-2021), agoniza, mas não morre. Você sabia que, uma vez, ele me disse que fez samba (Agoniza, Mas Não Morre, consagrado na voz de Beth Carvalho, em 1978) inspirado em mim?
Na época, ele me disse: "Martinho, fiz essa samba inspirado em você. Durante um período, o samba esteve fora da mídia. Então, você lançou o disco O Pequeno Burguês (1969) e o samba renasceu. Foi depois disso que escrevi Agoniza, Mas Não Morre". Agradeci ao Nelson, não sabia, mas disse para ele: "Vou te contrariar, o samba nem agoniza". Tudo no Brasil termina em samba, o Brasil é samba. Qualquer lugar que você vai, um evento, algo assim, termina em um bom samba.
Quais nomes da nova geração do samba você acompanha? E quais destacaria?
Dudu Nobre, embora não seja de uma geração tão nova, é um grande nome. Diogo Nogueira está em alta, é muito bom. Mart´nália também. Roberta Sá é uma jovem de muito talento. Tem muita gente boa por aí. E gosto muito do Mosquito, queria chamá-lo pra gravar, mas não deu. Ainda farei algo com ele, ele é ótimo.
O que você conhece da música feita no Rio Grande do Sul?
Gosto muito da música gaúcha. Esses dias, eu estava ouvindo Adeus, Mariana (gravada em 1943 por Pedro Raymundo, artista regionalista falecido em 1973), é muito boa. Um vanerão clássico. Essa música é muito maneira.
E qual o sentimento de ser homenageado no carnaval?
Pois é, rapaz, ser enredo de uma escola de samba em vida é uma honraria fora de série. Acho que não há honraria maior. Ainda mais na minha própria escola, né? Ainda não sei como vou me comportar, falei, esses dias, com o carnavalesco (Edson Pereira), sobre onde eu vou sair, detalhes da apresentação. E ele me disse: “Você sai onde quiser”. Vou me ajeitar até lá. Mas preferia que o Carnaval não fosse agora, em abril (os desfiles no Rio de Janeiro estão programados para os dias 22 e 23). Para mim, deviam deixar para fevereiro do ano que vem, com tudo a favor, calor, verão. Mas, vamos nessa, vai ser maneiro. Essa ideia de me homenagear é antiga, em 2010 queriam que eu fosse o homenageado, mas não concordei, porque era o centenário do Noel Rosa. Aí fiz o samba-enredo, fizemos um desfile bonito.
E tua expectativa? Você está participando de alguma decisão sobre o desfile?
Acho melhor não saber de nada, porque homenagem boa é quando o homenageado não sabe nada, não é? Homenageado colaborar não é legal. Porém, se você for a um barracão, tem uma ideia de como será o desfile. Mas só uma ideia. Na avenida, com as luzes, toda aquela estrutura, movimentos, tudo se transforma. Vai ser legal.
Mistura homogênea será seu último disco? mesmo?
Daqui para a frente, pensando no formato atual do disco, creio que não lançarei mais. O ideal não é mais gravar um álbum inteiro.