
Assinado pelo jornalista e escritor gaúcho Adriano Silva e lançado nesta ano pela editora Vestígio, o livro O Dia em que Eva Decidiu Morrer busca contemplar todos os pontos de um debate cada vez mais frequente e necessário: o direito à chamada morte voluntária assistida (MVA), também conhecida como eutanásia ou suicídio assistido e tema do mais recente filme do cineasta espanhol Pedro Almodóvar, O Quarto ao Lado (2024), disponível na Netflix.
As histórias são semelhantes, mas a do filme é uma ficção, e a do livro, verdadeira. Na obra de Almodóvar, uma fotógrafa de guerra com câncer cervical em estágio terminal pede ajuda a uma amiga para morrer. Ela já não aguenta mais a tortura das falsas esperanças e dos tratamentos experimentais. A autopiedade não lhe cai bem, nem é estoica para suportar as dores excruciantes: "Meu corpo vai continuar lutando enquanto eu sofro, sofro e sofro até o último suspiro?", indaga a personagem interpretada por Tilda Swinton.
Na obra de Adriano, uma filósofa brasileira resolveu viajar à Suíça para "exercer seu direito de escapar ao martírio em que sua vida se transformou depois de sofrer um acidente vascular cerebral (AVC) brutal, que a incapacitou para tudo que dava sentido à sua existência", escreve o autor. O nome da personagem é fictício para preservar sua identidade e a privacidade da família.
Adriano, 54 anos, reconstitui outras histórias reais, como a do cineasta suíço Jean-Luc Godard (1930-2022), cujo caso provocou discussão mundial por causa do que um familiar teria dito: "Ele não estava doente, estava exausto". Ou a da médica Erika Preisig, que, depois de ajudar o pai a morrer, acabou se juntando à organização Dignitas e depois criou a sua própria fundação, a Lifecircle.
Ex-diretor da revista Superinteressante e ex-chefe de redação do programa Fantástico, o jornalista nascido em Porto Alegre é autor de vários livros sobre o mundo corporativo e suas experiências profissionais, como O Executivo Sincero (2014), Ansiedade Corporativa (2015) e Por Conta Própria: Do Desemprego ao Empreendedorismo (2021).
Em O Dia em que Eva Decidiu Morrer: Uma Reflexão sobre Autodeterminação e Direitos de Fim de Vida, ele aborda os aspectos médicos, legais e filosóficos da MVA, os dilemas éticos e as restrições religiosas. O livro não é imparcial: Adriano, que mantém a plataforma digital BoaMorte.org, defende o que considera "o derradeiro direito civil a ser conquistado", o de escolher quando e como morrer.
"Nenhuma pessoa deveria ser obrigada a sentir dor ou a ter uma morte horrível"

Por e-mail, o jornalista e escritor gaúcho Adriano Silva, 54 anos, concedeu a seguinte entrevista sobre o livro O Dia em que Eva Decidiu Morrer: Uma Reflexão sobre Autodeterminação e Direitos de Fim de Vida, publicado recentemente pela editora Vestígio (224 páginas, R$ 67,90).
Por que você decidiu escrever um livro sobre autodeterminação e direitos de fim de vida? Há alguma questão pessoal envolvida?
Temos muito medo de falar sobre a morte no Brasil. O fim da vida é um tabu entre nós. Não por acaso, morre-se muito mal no país. Pesquisas internacionais indicam que o Brasil é um dos piores lugares do mundo para morrer. Minha principal motivação é mudar esse quadro e contribuir com esse livro para que a gente rompa com o silêncio e com a ignorância que cercam o tema da finitude entre nós. Estamos muito atrasados nesse debate. Na América Latina, por exemplo, Colômbia, Equador e Peru estão à frente do Brasil nessa discussão sobre os direitos de fim de vida dos seus cidadãos. Minha crença é que nenhuma pessoa deve ser obrigada, por lei, a ter uma morte horrível. Quero que o direito de não sofrer de modo pavoroso no fim da vida esteja assegurado para mim e para todos os demais brasileiros.
O que caracteriza a morte voluntária assistida? É o mesmo que eutanásia ou suicídio assistido?
Hoje, há 14 países com legislação favorável à morte voluntária assistida (MVA). E há outros quatro em vias de oferecer aos seus cidadãos o direito de ir embora de modo pacífico e seguro, caso a existência se torne insuportável. Há basicamente três grupos de pessoas contempladas por essas legislações mundo afora: pessoas com doenças incuráveis ou terminais, pessoas com incapacitação grave ou irreversível e pessoas que padecem de modo insuportável por conta de um envelhecimento muito avançado.
Então, quando se fala em direitos de fim de vida, estamos falando sobretudo de pessoas idosas, em sofrimento intenso, no fim de suas vidas. Não se está falando no chamado “suicídio comum” ou “suicídio irracional”. Nem em pessoas jovens e saudáveis. Esses seriam casos de “morte desassistida”, em geral um ato solitário e truculento da pessoa contra ela mesma. Isso é o que todos buscamos evitar. Essa é a verdadeira tragédia — uma pessoa decidir ir embora de modo isolado, num arroubo, sem conversar com ninguém. A morte voluntária assistida é o contrário disso. Na MVA, a pessoa tem a chance de discutir sobre sua decisão com a família e com os profissionais que a cercam, de planejar sua partida, de se despedir dos amigos e ir embora de modo sereno, indolor e, sobretudo, seguro.
Dentro do território da MVA, há duas possibilidades de procedimento: a MVA autoadministrada, quando a própria pessoa ministra em si a droga letal — usa-se aqui também o termo “suicídio assistido”. E há a MVA administrada por terceiros, que é quando a pessoa pede para que um profissional de saúde realize a aplicação — por uma preferência pessoal ou pela impossibilidade física de fazê-lo. Usa-se nesse caso também o termo “eutanásia”.
Você escreve que esse é “o derradeiro direito civil a ser conquistado” e diz que a questão central é “a quem pertence a vida?”. Por que as pessoas deveriam ter o direito de decidir quando e como morrer? Por que as pessoas decidem morrer?
Nós tomamos milhares de decisões autônomas e independentes, ao longo da vida, sobre como queremos viver. Por que não poderíamos decidir também sobre como queremos ir embora? Morrer de modo digno, sem sofrimento, é um direito humano básico. Trata-se de uma prerrogativa fundamental do indivíduo: ninguém pode ser obrigado a sentir dor. Prender uma pessoa a uma existência depois que ela se transformou em tortura é desumano. As pessoas que optam pela MVA o fazem em geral porque viver se tornou uma experiência pior do que a morte. Quando a vida se torna sinônimo de sofrimento, ir embora significa muitas vezes o único alívio possível.
Por que há tanto tabu em torno desse assunto, visto que a morte é um evento inevitável?
A discussão sobre MVA é sobretudo uma discussão sobre liberdades individuais. A quem pertence a minha vida? De um lado, em maior ou menor medida, há as instituições que buscam controlar as pessoas – como vivemos, o que pensamos, quem amamos, e também como morremos. De outro lado, estão as pessoas que buscam ter a prerrogativa de tomar decisões autônomas acerca de si mesmas. A autodeterminação significa cada um ter o direito de decidir sobre si mesmo — e sobre mais ninguém. Ninguém pode decidir por mim — porque só eu sei o que estou sentindo e só eu conheço os meus limites. E também não posso decidir por ninguém — porque é preciso respeitar a dor do outro e seu direito de poder dizer: “Chega. Eu não aguento mais!”.
A morte é inevitável. Todos vamos morrer. A única coisa que podemos controlar é o modo como vamos morrer. Uma lei favorável à morte voluntária assistida não obriga ninguém a fazer uso ela. Se você é contra a MVA, por qualquer razão, siga o seu caminho. Apenas não obrigue outras pessoas, que podem pensar diferente de você, a terem que agir da mesma forma.

Quais devem ser os critérios médicos? É possível estabelecer uma espécie de checklist? Ou o nível de sofrimento e de resistência a dor varia demais de uma pessoa para a outra?
Em todos os países que admitem a morte voluntária assistida, há critérios rigorosos que precisam ser cumpridos para que a pessoa tenha acesso ao procedimento — embora as legislações variem um pouco de país para país. Em alguns lugares, há exigência de terminalidade: a expectativa de vida do candidato à MVA não pode ser superior a seis meses. Em outros, o critério do sofrimento da pessoa, por conta de doença incurável, de incapacitação grave ou de padecimento por envelhecimento avançado, é suficiente.
Quem estaria proibido de optar pela MVA?
De modo geral, exige-se que os candidatos à morte voluntária assistida sejam adultos em pleno funcionamento de suas capacidades mentais, em condições de tomar decisões independentes a respeito de si mesmos. No entanto, há legislações que admitem a MVA para menores de idade que estejam sofrendo de modo bárbaro, além da capacidade de ajuda médica. Assim como se discute também, em vários países, a inclusão de pessoas portadoras de doenças psiquiátricas (dor psíquica, em oposição à dor física) que consigam comprovar que seu martírio é insuportável e impossível de ser tratado.
Nenhum de nós tem o direito de ignorar a agonia alheia, em nome de proteger a si mesmo da dor que aquela despedida vai causar.
Como conciliar o direito e o desejo de uma pessoa partir com a dor e a saudade dos entes queridos? Como devemos agir diante dessa vontade? A resposta está na pergunta feita em um dos obituários de Betty Rollin, citados no livro? Ou, nas suas palavras: “Antes de questionarmos o direito de um indivíduo de acabar com sua própria vida, deveríamos questionar que direito temos nós de proibir uma pessoa de ir embora, se esse for o seu desejo”. Por que nos é tão difícil aceitar isso?
A questão central da autodeterminação é reconhecer que cada um de nós tem o direito de tomar decisões soberanas e autônomas sobre si mesmo. E que essas decisões precisam ser respeitadas, porque dizem respeito apenas a nós mesmos e a mais ninguém. O papel da família e dos amigos será fundamental nessa hora. Temos que ter a capacidade de respeitar as escolhas do outro — mesmo que sejam decisões que nós não tomaríamos em nossas próprias vidas. Ou que gostaríamos que o outro não tomasse. Podemos argumentar, tentar convencer, apresentar alternativas. Mas a decisão do outro sobre si mesmo não nos pertence. Cada um tem que poder decidir seu próprio destino. Sobretudo, nenhum de nós tem o direito de ignorar a agonia alheia, em nome de proteger a si mesmo da dor que aquela despedida vai causar. Ninguém pode, a partir das suas próprias convicções, passar por cima da autonomia do outro.
Há casos de arrependimento? Pessoas que na última hora desistem de uma decisão tão definitiva?
As organizações suíças relatam que apenas um terço das pessoas que obtém a autorização para a MVA de fato realiza o procedimento. Ou seja: mesmo após todo o processo de escrutínio a que se submetem, duas em cada três pessoas desistem. A explicação estaria no fato de que, uma vez que a pessoa garante para si uma “apólice de seguro” contra uma morte horrível, ela fica menos desesperada. E, assim, não antecipa uma decisão. Ou a retarda ao máximo porque sabe que pode lançar mão daquele recurso assim que a situação ficar realmente intolerável. Quando você não sabe onde está a “saída de emergência”, você quer sair da sala em chamas o quanto antes. Quando o “botão de pânico” está ao alcance da sua mão, você se permite esperar até o último momento.
Uma das histórias que você conta é a da médica Erika Preisig, que depois de ajudar o pai, acabou se juntando à organização Dignitas e depois criou a sua própria fundação, a Lifecircle. A profissão de médico está associada a salvar vidas: como é, para um médico, ajudar a abreviar a vida?
Nós costumamos exigir que os médicos nos livrem da morte. Muitos médicos introjetam essa expectativa e passam a agir como se a morte fosse uma derrota ou uma vergonha. Vários profissionais, em consequência, se mostram dispostos a manter seus pacientes vivos a qualquer custo — mesmo que isso transforme a existência daqueles seres humanos num calvário sem fim. Mesmo quando aquelas pessoas estão suplicando para que lhes deixem descansar, para que lhes ajudem a partir em paz. Nenhum médico tem o poder de salvar todos os seus pacientes da morte. Mas todos os médicos têm o poder de evitar o sofrimento humano, de oferecer alívio, de evitar a dor — para todos os seus pacientes, sem exceção.
Por que o prolongamento da vida pode ser entendido como o prolongamento da morte?
Há situações em que a vida acaba e a pessoa continua viva. São casos em que a vida biográfica tem um fim, mas a vida biológica se arrasta adiante. A medicina tem hoje meios de manter um organismo vivo quase que por tempo indeterminado, mesmo que aquela pessoa não esteja mais ali, que sua identidade já tenha ido embora, que ela esteja irreconhecível. Mesmo que ela esteja sofrendo barbaramente. Cada um precisa poder escolher se quer esse tipo de situação para si ou não. Eu afirmo: não quero isso para mim. Quero ter o direito de ir embora de modo rápido e indolor, caso uma situação assim venha a acontecer comigo.
No Brasil, atualmente, quais são as opções para uma pessoa em situação de sofrimento intolerável, como você escreve no livro? Pode falar resumidamente sobre distanásia, cuidados paliativos e ortotanásia?
No Brasil, uma pessoa em grande sofrimento pode optar por seguir no tratamento, pela linha da obstinação terapêutica, a chamada “distanásia”, e ir até o fim desse caminho, custe o que custar. De uns anos para cá, felizmente, houve uma flexibilização nesse procedimento, que no entanto ainda é hegemônico, com a proliferação no país dos cuidados paliativos, que embutem o conceito da “ortotanásia” — que significa “a morte no tempo certo”. O paliativismo busca oferecer conforto e alívio aos pacientes. E a ortonásia não antecipa o processo de morte, mas também não o prolonga. Ou seja: o paciente poderá recusar um tratamento que considerar fútil ou invasivo ou penoso demais — e ainda assim poderá contar com o amparo da ciência médica para que seus últimos dias sejam os melhores possíveis. O que não há no Brasil ainda, infelizmente, é a possibilidade da pessoa dizer: “Chega. Eu não aguento mais. Esse é o meu limite. Me ajudem a ir embora”.
Diante do envelhecimento da população, a MVA se tornará um assunto mais frequente, certo? Como você diz, “Quando essa perspectiva (de vida) aumenta para 90 anos ou mais, é muito provável que venhamos a enfrentar doença e decrepitude”. O quanto o Brasil está atrasado nessa discussão? Quais deveriam ser os passos mais urgentes?
À medida que aumentamos nossa capacidade de ficar velhos, aumentamos igualmente os riscos de termos problemas graves de saúde. Isso já está acontecendo. O número de acidentes vasculares cerebrais (AVCs) ou de doenças neurodegenerativas (como o Alzheimer e o Parkinson), por exemplo, tem crescido muito — basicamente porque estamos vivendo mais. Esse fenômeno continuará aumentando junto com o aumento da expectativa de vida das pessoas.
Todos nós precisamos refletir sobre nossa finitude. Precisamos conversar sobre isso em família, com os amigos mais íntimos. Cada um de nós precisa decidir o que quer — e o que não quer — que seja feito consigo caso uma situação ruim se apresente. Todos nós precisamos registrar essas diretrizes antecipadas de vontade num Testamento Vital, documento que possa orientar a todos, inclusive aos seus médicos, de modo claro e definitivo, sobre os limites que você deseja estabelecer para si mesmo.
Você diz que não se deve dizer “cometeu suicídio” nem “morte natural”. Pode explicar?
Chamo a atenção no livro para as conotações de alguns termos. Considero “suicídio” uma palavra ruim porque embute a ideia de um “homicídio”, de um “crime violento” cometido pela pessoa contra ela mesma. E suicídio não é crime. Da mesma forma, não gosto do verbo “cometer” porque soa, de novo, como se fosse um ilícito ou um atentado. E a decisão de deixar de viver não é nem uma coisa nem outra.
Quando se fala em morte “natural” em oposição à morte voluntária assistida, por exemplo, fica parecendo que a MVA é uma morte “antinatural”. E penso que uma morte advinda desse procedimento é também um passamento natural.
Deus tem interesse no sofrimento humano? Se você acredita que não, porque Deus é bom e fiel, porque Deus é amor e compaixão, então é bem possível que a MVA seja parte da Divina Providência.
O acesso legal à prática poderia fazer aumentar o número de pessoas querendo encerrar a própria vida?
Não se estabeleceu até aqui uma relação direta entre a aprovação de uma legislação favorável à morte voluntária assistida e a taxa de “suicídios comuns”. Aparentemente, trata-se de dois públicos distintos — em situações de vida e com intenções e sentimentos muito distintos. Países com acesso à MVA não tiveram um aumento da taxa de suicídios — e nem uma redução significativa — por conta disso. O que se pode dizer com certeza é que o acesso à MVA reduz muito o número de mortes pavorosas de pessoas idosas e doentes.
No livro, você contrapõe a postura da maioria das religiões, para as quais, como a vida vem de Deus, só Ele pode encerrá-la. Como a MVA pode ser pensada no âmbito teológico?
A grande questão que se pode fazer no âmbito teológico é: Deus tem interesse no sofrimento humano? Nosso Pai deseja que Seus filhos sejam torturados pela dor? Se você acredita que não, porque Deus é bom e fiel, porque Deus é amor e compaixão, então é bem possível que a MVA, como um instrumento que tira os seres humanos do inferno em que se encontram, seja parte da Divina Providência, seja um elemento que corrobora com a Obra Divina, tanto quanto o livre-arbítrio que o opera e que Ele nos concedeu para que pudéssemos tomar decisões conscienciosas como essa.
Você assistiu ao filme de Pedro Almodóvar sobre o assunto, O Quarto ao Lado (2024)? De modo geral, como a ficção trata a questão?
Há muitos filmes excelentes que refletem sobre autodeterminação — de Johnny Vai à Guerra (1971) a Como Eu Era Antes de Você (2016), de Mar Adentro (2004) a Para Sempre Alice (2021). O filme de Almodóvar é ótimo. Mais uma obra a reivindicar o direito humano fundamental de morrer com dignidade — o derradeiro direito civil a ser conquistado.
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