Depois da roda, a melhor invenção do ser humano é a roda de samba. Foi o que concluiu o sambista e compositor carioca Luiz Carlos da Vila. Marcada pela informalidade, a manifestação fomenta o principal ritmo musical afro-brasileiro.
Nenhuma roda de samba é igual a outra. Por exemplo, pode contar ou não com uma mesa em frente aos músicos. Pode incluir violão, cavaco, cuíca, pandeiro, tantan, rebolo, banjo etc. Pode ser aberta à canja musical. Aliás, quem sabe a letra torna-se automaticamente vocalista do grupo — todo mundo pode participar cantando junto. Quem está ali, quer dançar ou apenas apreciar o movimento. Ou jogar conversa fora. Há quem tenha "síndrome de jukebox" e insista em fazer pedidos de canções. São horas de felicidade comunitária.
Em Porto Alegre, a “melhor invenção do ser humano” se expandiu. A cidade, que já tem escrita sua história no gênero, tem cultivado outros públicos sambistas. Novos eventos surgem e novos perfis de frequentadores mostram seu samba no pé. GZH percorreu alguns points do samba na Capital.
Bom Fim, São Geraldo e Cidade Baixa: o samba furando bolhas
Sob o guarda-chuva da “nova cena do samba porto-alegrense” está o Samba Sincero, realizado no Estreito da Chosen, bar do Bom Fim. O local existe há quatro anos, mas foi somente no retorno da pandemia que colocou em prática o plano de tornar-se um dos novos points sambistas da cidade. O evento temático já era requisitado pelos frequentadores do bar, na maioria moradores do bairro e arredores, e desejo antigo dos proprietários Rafael Alba, Ricardo Cioba, Marcelo Caselli e Rudolf Lang.
Quatro edições foram realizadas, uma por mês. A reportagem esteve na segunda, que em junho reuniu cerca de 350 pessoas em oito horas de evento, das 16h à 0h, embaladas pela roda que interpretava canções de nomes como Maria Rita, Gilberto Gil, Tim Maia, Zeca Pagodinho e Djavan. Um público que, segundo Alba, é em parte diferente daquele que normalmente frequenta o bar, pois muitas pessoas passaram a procurar o local justamente por causa da roda de samba.
— O fato de esta ser em uma região onde normalmente não há samba fez com que se tornasse um grande atrativo. Muitos são nossos clientes, galera que é da região, mas ao mesmo tempo o samba deu uma furada na bolha — diz o proprietário.
O engenheiro de produção Kim Rieffel, 30 anos, integra a ala de frequentadores que clamava por samba no local.
— Sou morador antigo do bairro, e é um espetáculo poder presenciar isso, uma manifestação do samba no Bom Fim. Sem falar no antagonismo entre o frio do inverno de Porto Alegre e o samba, que é tão Brasil, tão tropical, e que costuma ser curtido de uma forma bem diferente daquela que a gente está curtindo aqui, todo encasacado. É muito massa poder ter contato com esses opostos — refletia Rieffel, enquanto agitava-se no ritmo de Não Sou Mais Disso, de Zeca Pagodinho.
O evento é promovido no primeiro domingo de cada mês, com ingressos a R$ 10. São atrações do Samba Sincero, além da música ao vivo e da cerveja artesanal, a venda de insumos tradicionais da culinária brasileira, como o caldinho de feijoada que aquecia os frequentadores na ocasião.
— O público porto-alegrense está carente de eventos bacanas. No fim das contas a galera gosta de rua, gosta de estar solta e gosta de samba — opina Alba, que diz ter se inspirado em outros novos eventos que vêm surgindo em espaços ainda sem tradição sambista na cidade.
Um desses espaços é o Agulha, inaugurado há cinco anos e hoje consolidado como palco musical eclético, apresentando de Jovem Dionísio a Jards Macalé, de Duda Beat a KL Jay. Em 2022, começou a receber rodas de samba na frente da casa, tendo promovido dois eventos no bairro São Geraldo, zona norte da Capital. Ambos foram comandados pelo Instituto Brasilidades e pela Central do Samba.
Eduardo Titton, proprietário do Agulha, ressalta que o projeto partiu dos dois coletivos, que procuravam um lugar para se apresentar em conjunto. Na primeira edição, ele calcula que 800 pessoas estiveram no local — sucesso que se repetiu na segunda. O empresário assegura que novas rodas estão nos planos, mas ainda não se sabe qual será a periodicidade. O que se confirmou, para ele, até o momento, é que há público querendo ir para a rua ouvir música brasileira.
— Essas rodas têm trazido um público bem família — atesta. — Há crianças, jovens e idosos. Tem sido um público mais diverso que o nosso habitual. Pessoas de poder aquisitivo e idades diferentes. Furou bolhas. Uniu pessoas que estariam em locais completamente diferentes.
Além do Agulha, outro espaço de música já consolidado em Porto Alegre que aderiu às rodas é o In Sano Pub, na Cidade Baixa. Tendo completado 20 anos em junho, a casa agora recebe rodas de samba uma vez por semana. No mesmo bairro é possível conferir rodas de samba na Travessa dos Venezianos, mais especificamente no Butcher Pizza Bar. Desde dezembro de 2021, esse local promove eventos em que as vozes femininas são protagonistas. Mensalmente, quanto o clima ajuda, há uma roda a céu aberto na rua.
No Centro, o democrático Samba da Escadaria
Quando GZH visitou a roda de samba que ocorre semanalmente na escadaria do Viaduto Otávio Rocha, na Avenida Borges de Medeiros, as condições não eram favoráveis. Havia chovido e era dia de jogo grande de futebol, o que costuma afastar o público das rodas de samba. Mesmo assim, mais de cem pessoas ocuparam o espaço naquela noite.
Desde 2018, o Puro Asthral promove o Samba da Escadaria toda terça-feira em frente ao bar Tutti Giorni. No cartão-postal de Porto Alegre, em um ponto iluminado por varais de pisca-pisca, os músicos tocam canções de nomes gaúchos como Lupicínio Rodrigues e Nêgo Izolino e estrelas nacionais do gênero.
Juliano Barcellos, vocalista do Puro Asthral, diz que o grupo sempre quis levar o samba a espaços públicos em seus 12 anos de trajetória. Até que surgiu a oportunidade — em um local que é ponto de passagem de pedestres, o que faz com que o público seja heterogêneo.
— Há o estudante que está indo ou voltando da aula, o trabalhador que saiu da labuta e aquele que passou, ouviu a batucada e resolveu ficar. Estamos perto de hotéis, e quem está hospedado escuta e vem conferir. Gente do Rio, do Ceará. Já fomos até ao Canadá nessas condições — diverte-se Barcellos.
De fato, no Samba da Escadaria é possível observar frequentadores com mochilas nas costas ou com crachá pendurado no pescoço. Quem estava passando por ali após o trabalho era o auxiliar de mecanografia Rodrigo Santos, 30 anos. Ele chegou cedo, comprou uma long neck e se escorou em uma mureta em frente ao grupo.
— Gosto da liberdade de poder cantar e ser feliz sozinho. Beber cerveja à vontade. Ainda mais nesse clima, com o povão reunido — explica.
Rodrigo é um dos frequentadores mais assíduos do Samba da Escadaria, estando presente quase toda terça. A reportagem também tentou entrar em contato com outro "fiel" da roda, que costuma bater ponto por ali toda semana. Sem graça, ele recusou porque costuma ir ao samba "escondido". Tem isso também.
No Samba da Escadaria, há quem desfrute do samba solitariamente, mas há casais e grupinhos. Um trio de amigas assíduas por ali é formado pelas arquitetas Renata Vilela, 34 anos, e Milena Tigik, 34, e a turismóloga Patrícia Bettim, 37. São três mães com crianças pequenas que tentam conciliar a agenda materna com as rodas de samba que ocorrem pela Capital. Naquela noite, elas tomaram a frente e puxaram a dança. Faziam pedidos de músicas. Terça-feira é um dia sagrado.
— O que faz o Samba da Escadaria ser único é que aqui pega justamente o movimento do pessoal indo para casa, pelo horário que começa cedo. Pega o fluxo do pessoal pelo Centro, de trabalhador mesmo — frisa Patrícia.
— Acho que por ser um ponto histórico da cidade também. Valoriza um pouco esse espaço que estava um pouco largado há um tempo, mesmo antes da pandemia — completa Milena.
— É um lugar que a gente tem que ocupar. A banda é maravilhosa, a gente pede música e eles tocam. A maioria das pessoas que vêm aqui são trabalhadores. O lugar nunca ficou hypado — finaliza Renata, antes de interromper a entrevista para entrar em transe com uma música do Lupicínio que começou a tocar.
A faixa etária do Samba da Escadaria também é heterogênea — há jovens e idosos. Aos 64 anos, o advogado e professor aposentado Césio Sandoval Peixoto chegou com a roda em andamento. Ele carregava um pandeiro. Postou-se ao lado do grupo e começou a tocar o instrumento. É uma cena que costuma se repetir na Escadaria.
— Sempre chego com o meu pandeiro e toco com pessoal. Acompanho. Brinco.
Césio começou a aprender o instrumento há 10 anos. Por conta de uma deficiência auditiva, desenvolveu um método inspirado na técnica indiana konnakol para tocar o pandeiro. Empolgado, passou a frequentar rodas de samba da Capital. E, quando possível, tocar junto. Sobre a Escadaria, ele vê como espaço de resistência:
— Você está tocando num espaço aberto, não numa casa fechada, permitindo que o povo participe. Há moradores de rua que vêm dançar que talvez só tenham oportunidade de aproveitar uma música aqui. É um espaço extremamente democrático.
Boteko do Caninha: reduto para antigos e novos públicos do samba
Próximo ao Areal da Baronesa, um quilombo urbano com tradição no samba e no Carnaval de Porto Alegre, está o Boteko do Caninha. O bar fica na esquina das ruas Barão do Gravataí e Múcio Teixeira, no Menino Deus. Há 10 anos, quem administra o ponto é Evandro Carvalho, que batizou o estabelecimento com seu apelido. Nascido e criado na Baronesa, ele foca em promover o samba de raiz.
— Achei que seria só um barzinho, mas explodiu o negócio — afirma o proprietário. — Me criei no meio do samba. Então, faço com que o pessoal fique bem à vontade aqui.
Às vezes, o Caninha preenche de gente a casa e a rua na esquina onde está localizado. É um espaço visto com entusiasmo pelo novo público que tem começado a frequentar as rodas da Capital. Aliás, o bar serviu como ambiente do livro Porque Era Ela, Porque Era Eu (L&PM), de Clara Corleone, lançado em 2021. Nas incursões da reportagem ao local, foi possível perceber que a maior parte dos frequentadores era negra. Há uma atenção ao público mais veterano na sexta-feira, com a matinê da velha guarda.
Em uma sexta à noite que a reportagem visitou o bar, lá estavam dois velhos conhecidos do Caninha: Antônio Carlos da Silva, 80 anos, e Wilson Francisco da Silva, 82. A dupla dividia uma mesa e uma garrafa de cerveja.
— Aqui é muito bom. Não dá confusão, não dá nada — celebra Wilson.
— Gosto de sair à noite, encontrar os amigos. Os inimigos a gente passa (risos) — diverte-se Antônio. — Até porque escutar música cura teu humor. É como dizia o Tim Maia: quem tem amor não precisa de dinheiro ("Quando a gente ama não pensa em dinheiro").
Nas últimas semanas, o Caninha andou recebendo, às quartas, as rodas do projeto Estude, Trabalhe e Sambe, que promove eventos itinerantes pela cidade. O grupo não utiliza equipamentos de som, então o samba é acústico e cantado no gogó, com o público ajudando em coro ou batendo palmas. Os músicos se posicionam ao redor de uma mesa.
É comum ver gente visitando o Caninha pela primeira vez nas noites do projeto. Por exemplo, o empresário Christian Chu, 35 anos, conheceu o bar graças ao Estude. Sozinho no local, ele portava capacete de ciclista e segurava uma garrafa de cerveja e um copo.
— Me senti à vontade aqui — destaca. — Gosto das rodas de samba porque são democráticas. É só ir para curtir a música e tomar cerveja. Não tem as obrigações de uma festa.
Naquela noite, a apresentação do Estude empolgou mais de uma centena de pessoas de diferentes idades e classes com Meu Lugar, de Arlindo Cruz, ou Canto das Três Raças, eternizada por Clara Nunes. Lá estavam duas diaristas que vão ao Caninha quase toda semana, Geni Lascano, 62 anos, e Marli Ribeiro, 45.
— Temos uma vida muito corrida, e aqui é o ambiente ideal para desopilar. Para confraternizar com os amigos — afirma Marli.
Geni corrobora:
— É o lugar para se divertir. Gosto de dançar, apesar de não ter todo aquele samba no pé (risos).
Evandro frisa sempre que a porta do Caninha é aberta para todos. No entanto, o empresário ressente que terá de trocar de endereço em breve, pois, segundo ele, moradores de prédios vizinhos têm reclamado do barulho e tomado medidas judiciais.
— Estão correndo o samba daqui. Mas vou continuar lutando. O samba não pode parar.
Na Zona Sul, samba que vai além
Em direção à Zona Sul, quem passa pela altura do número 1.559 da Avenida Padre Cacique nas noites de sábado ouve de longe o batuque que toma conta daquele trecho da via. Vem da Academia de Samba Praiana, mas não se trata de um aquece para o Carnaval. Toda semana a quadra da Verde e Rosa vira sede oficial do Além do Samba, evento que já se tornou referência na cena porto-alegrense.
O projeto surgiu em 2017 de um sonho antigo dos hoje sócios Jean Iponema e Fábio Santos, quando ainda eram colegas de trabalho. A ideia, conta Iponema, era despretensiosa: organizar uma roda de samba para se divertir e ainda conseguir tirar um extra. O local escolhido foi o Kasarão, espaço no bairro Nonoai conhecido por abrigar eventos do gênero. Um local que logo acabou por ficar pequeno.
— A gente fez uma festa para 200 pessoas, apareceram 400. Faltou um monte de coisa, foi uma bagunça, mas aí percebemos que Porto Alegre estava carente de samba de roda — lembra Iponema. — Passamos para outra casa noturna, na qual cabiam 2 mil pessoas. Durante essa trajetória, trouxemos artistas nacionais, fizemos muita coisa legal, até que veio a pandemia. Na volta, não conseguimos continuar nesse mesmo local, e foi aí que passamos para a quadra da Praiana.
Os dois espaços são distintos, e a diferença é percebida por frequentadores antigos com os quais GZH conversou. Não só pela capacidade, que diminuiu para até 700 pessoas, mas também pela estrutura, aquém da anterior — algo que os sócios vêm tentando contornar.
— A gente sempre contribuiu nos locais pelos quais passamos, e aqui também tentamos fazer isso. O público do samba já é carente de estrutura nas suas casas. Então, a gente não quer que isso se repita no nosso espaço. Quem vem no Além do Samba é o trabalhador. O Uber, o cara da loja, do supermercado. Inclusive, a gente fazia o samba nas sextas-feiras, mas passamos para o sábado porque não existe mais a escolha de trabalhar de segunda a sexta. Nosso público todo trabalha no sábado — diz Iponema.
É por isso que, apesar da mudança de dia e local, os preços seguem iguais. O ingresso do primeiro Além do Samba custava R$ 10 e, ainda hoje, esse é o preço no primeiro lote. O valor da bebida aumentou, mas, para o evento seguir cabendo no bolso de todos, há venda promocional na primeira hora de samba, das 23h às 0h. Quem compra seus tickets até a meia-noite garante um baldinho recheado com cinco "latões" de cerveja a R$ 29,90.
Também segue intacta a “vibe” do evento, conforme a professora Thauane Freitas, 32 anos, de Viamão, que curtia a festa com a amiga Laura Moura, 20, atendente de bar e moradora da Restinga, com quem dividia o famoso kit (mistura de vodca e energético). As duas se conheceram justamente no Além do Samba e dizem não trocar essa roda de samba por nenhuma outra.
De fato, trata-se de uma roda diferenciada. É um dos poucos eventos da Capital a contar com uma formação própria de músicos: o grupo batizado de Rads (o nome vem de "roda de samba do Além do Samba"), que sempre abre os trabalhos — uma outra atração, convidada, depois embala os frequentadores madrugada adentro. Além disso, como relataram diversas pessoas ouvidas por GZH, o evento é bom porque cumpre a premissa do seu nome: vai além do samba.
— Tudo é muito bem organizado, segurança, banheiros, bebidas, caixa, preço, banda — define Thauana.
— Onde quer que a festa ocorra, dão sempre um jeitinho de ficar com a cara do Além — completa Laura.
A opinião é compartilhada pelo fotógrafo Rennan Viegas, 32 anos. Ele acompanha as novas rodas de samba em bairros mais centrais e nota diferenças no perfil dos frequentadores e de repertório. Segundo ele, o que impera nestes espaços, em geral, é um samba que define como “mais midiático”, enquanto que, em eventos mais tradicionais e antigos, como este realizado na quadra da Praiana, o carro-chefe “é um samba mais Fundo de Quintal”:
— No Quarto Distrito, por exemplo, o público é mais elitizado. Há poucos negros. Para mim é indiferente, vou nos dois tipos de evento, mas aqui (no Além do Samba) eu me sinto mais em casa. E toca um samba raiz, músicas que te trazem uma memória afetiva do domingo em família.