Quem tem dois dedos de conversa com Eugênio Silva Alencar, 85 anos, mais conhecido como Mestre Paraquedas, entende na hora o que significa ser um griô. O título é usado para reverenciar pretas e pretos velhos que atuam como guardiões da história de seus povos, perpetuando tradições e saberes ancestrais por meio da oralidade. É o que Paraquedas faz. É músico, compositor, educador social, poeta, carnavalesco, cenógrafo, figurinista, desenhista, escultor, ex-militar paraquedista — daí a alcunha de Mestre Paraquedas —, militante do movimento negro, griô reconhecido pelo extinto Ministério da Cultura e um contador de histórias nato, cuja memória guarda em detalhes as mudanças pelas quais Porto Alegre, sua cidade natal, passou ao longo das últimas oito décadas, desde que ele veio ao mundo, em 1933, dentro da antiga churrascaria Mascarello, no Centro — pois a mãe foi sentir as dores do parto justo enquanto saboreava uma costela.
Paraquedas nasceu histórico e jamais parou de fazer história. Ao longo da juventude viveu em todos os chamados “territórios negros” da cidade, como orgulha-se em contar, e acompanhou de perto a chegada do “progresso” e as transformações em sua geografia em meados dos anos 1940. Até que acabou empurrado por elas, segundo narrou à reportagem de ZH na sala de sua casa, no alto da Vila São José, Zona Leste, em uma conversa de quatro horas permeada por causos e canjas musicais.
— Digo que o progresso foi me empurrando para o morro. Morei em todos os territórios negros de Porto Alegre. Por último, morava em um quilombo onde agora é a Ipiranga, perto da Acadêmicos (escola de samba Acadêmicos da Orgia). Eles deram esse terreno aqui no morro para nos tirar de lá, pois queriam abrir a avenida. Aí, todo mundo que morava lá veio para esse morro aqui — lembra, ponderando:
— Mas, apesar disso, o progresso deu muitas oportunidades para pessoas que naquela época não existiam. A discriminação racial era muito grande. Eu saí mais clarinho, mas meu pai era negro mesmo, enquanto minha mãe era descendente daqueles árabes que foram para o norte da Espanha. Quando fui para o colégio, me botaram no Paula Soares, no Centro. Quem me matriculou foi minha mãe, branca, mas quem foi me levar no primeiro dia de aula foi meu pai. Eles nos olharam e disseram: “Olha, ele não pode estar aqui nesse colégio”. Aí me trocaram para o Treze de Maio, na época um colégio só para negros, no Menino Deus.
São histórias como essas que Paraquedas conta nos mais de mil sambas que já compôs ao longo da vida. Autodidata na música, escreveu a primeira letra aos oito anos, para expressar a dor de perder seu primeiro amor — a vizinha com quem costumava brincar, que acabou atropelada por um caminhão enquanto andava de bicicleta. Depois desse samba de amor, muitos outros vieram. Sambas de malandro, de roda, de breque, partido alto, samba reggae e até vanerão sambado. Ao menos 60 foram sambas-enredo, criados por ele para diferentes escolas e tribos carnavalescas da Capital, algumas das quais ajudou a fundar.
Uma delas é a Academia de Samba Puro, agremiação da Vila Maria da Conceição idealizada em 1984 por Paraquedas e o amigo Mestre Papai, figura também histórica do Carnaval de Porto Alegre. Foi pela azul e amarelo que o griô viveu suas maiores emoções no meio carnavalesco. E também histórias que o fazem gargalhar profundamente ao relembrar.
— Um dia o Mestre Papai disse: “Vamos fundar uma escola?”. Aí, fundamos a Unidos da Conceição. Passamos o livro de ouro pelo comércio do morro, todo mundo ajudando com um pila, dois pila, o que tivesse. Até que botamos o bloco na rua com tudo direitinho. Mas, já no primeiro desfile, ali perto da Rua da República, apareceu um policial que na época era muito temido, o Zuza. Os nego viram o jipe do Zuza e pronto, ficou só os instrumentos no meio da rua, todo mundo vazou (risos). Saiu toda a negrada correndo, pulando cerca, e acabou ali a Unidos da Conceição. Recolhemos os instrumentos, voltamos para o morro e decidimos fundar um bloco de nome Ary Barroso. Só que esse nem chegou a sair, porque o presidente pegou todo o dinheiro, saiu para comprar tecido e voltou duro de cana (risos). Foi então nós fundamos a Samba Puro, depois de duas que não deram certo — diverte-se o mestre, também um dos fundadores da tribo Os Comanches e da Academia de Samba Praiana, entre outras.
“Sou o grito, sou a luta”
Por sambas-enredo compostos, Paraquedas já recebeu mais de 30 honrarias no Carnaval porto-alegrense. Mas foi representando a Samba Puro que, em 1989, venceu o Festival de Sambas Enredo com a emblemática É Morro, É Favela, É Gueto, É Quilombo, canção sobre a desigualdade social que atinge quem vive na periferia e que, apesar dos mais de 30 anos desde que foi escrita, ele ainda considera atual.
“No dia em que o doutor compreender/ Que quem vive lá no morro também tem direito a viver/ A viver/ Viver com dignidade, sem opressão, sem maldade/ Então tudo vai mudar/ Vai mudar/ Eu vou ser tratado como gente por aí/ Vou ter casa, comida e um trabalho aonde ir/ As crianças todo dia irão à escola estudar/ E a velhice terá condição de descansar/ Enquanto esse dia não vem, sou o grito, sou a luta, sou a voz de quem não tem/ É morro, é favela, é gueto, é quilombo/ É samba, é quizumba, meu povo”, diz um trecho da letra, composta pelo mestre após presenciar um episódio de violência policial contra um trabalhador da Vila Maria da Conceição, Seu João, que ele define como “um exemplo de pessoa”.
— Os brigadianos botaram Seu João na parede, atiraram a pastinha dele, atiraram a viandinha dele... Já achei um desrespeito aquilo. Aí eles foram embora e deixaram Seu João na parede. Ele viu que eles já iam longe e começou a juntar as coisinhas dele. Nisso, um dos brigadianos veio numa fúria perguntando quem tinha mandado ele sair dali, e deu tanto no Seu João que eu comecei a chorar. Aquilo me doeu — lembra Paraquedas, contando que na mesma hora pegou um lápis e escreveu “Quem é do morro, a coisa é bem diferente/ Vai quem deve e quem não deve também/ Negro e pobre, por certo que é marginal/ Leva em cana, e caga esse nego a pau”, versos que acabaram rejeitados pela censura da ditadura militar vigente à época.
Clementina, cartola...
Pela sagacidade em transformar em samba a realidade do povo afro-gaúcho, entre outras de suas multifacetas artísticas, Mestre Paraquedas teve sua trajetória reconhecida pela UFRGS, onde foi um dos professores da disciplina Encontro de Saberes, que traz para dentro da universidade, com o status da docência, o saber de mestres populares como ele. Foi nessa disciplina que a hoje mestranda em Etnomusicologia Stefania Johnson, integrante do grupo musical Tribo Brasil, aproximou-se da obra do mestre, que acabou por virar o tema de seu TCC na graduação em Música.
Pesquisadora do campo das manifestações culturais populares, ela define assim a música de Mestre Paraquedas:
— É uma música do dia a dia, do cotidiano, ele tem que ter uma inspiração para compor. Não é algo comercial, de parar para escrever uma música sobre um tema completamente aleatório. Ele traz as vivências dele para as letras, e, para mim, ele é um dos maiores compositores que já existiram. Cada vez que vem mostrar uma música nova, a gente, pensando que já tinha ouvido a música mais linda de todas, descobre que a mais linda vem agora.
É por esse tipo de referenciação que intriga o fato de que somente agora, aos 85 anos, Paraquedas está perto de lançar seu primeiro disco solo. O álbum com a gravação de 10 composições criadas por ele é fruto de um financiamento coletivo que permanece em aberto, pois precisa arrecadar ainda R$ 18 mil para ser finalizado. A expectativa é de que o lançamento ocorra em outubro, mas o cenário ainda é incerto, pela dificuldade em levantar a quantia.
A cantora, compositora e atriz Pâmela Amaro, que em 2022, aos 35 anos, lançou seu primeiro disco, Samba às Avessas, e tem Paraquedas como uma de suas principais influências, aponta essa dificuldade como reflexo do racismo:
– O Paraquedas está dentro desse círculo cultural do samba que é excluído no Rio Grande do Sul. Isso se se dá pelo velho racismo local, que invisibiliza a nossa africanidade. Por isso o Paraquedas é tão importante. A história dele é muito parecida com a de Clementina de Jesus, Cartola e outros grandes nomes da música brasileira que só foram ser reconhecidos quando já estavam na terceira idade.
A opinião é endossada por José Rivair Macedo, doutor em História Social pela USP e professor do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS. O pesquisador chama atenção para mecanismos do racismo estrutural que fazem com que, mesmo que a contribuição de alguém seja notória e reconhecida entre os setores populares, como é a de Paraquedas, tal reconhecimento não necessariamente se traduz no campo da cultura hegemônica.
— A história do Paraquedas é um exemplo daquilo que vem sendo denunciado reiteradamente com o nome de racismo estrutural, que está estranhado na nossa sociedade. É um racismo que faz com que os olhares de setores que têm poder de definição para incluir obras de autores representativos da nossa sociedade na indústria fonográfica, por exemplo, se voltem somente para um tipo de produção — explica o historiador. — A obra dele não somente é longeva: é consistente e reconhecida por pessoas do meio. Porém, ao passo em que ele é reconhecido pela cultura popular, não o é pela cultura hegemônica, que é eurocêntrica, branca e ainda detentora desse poder de validação. Contudo, é preciso dizer que ser reconhecido pelos meios populares não é pouco importante; é muito importante, pois são eles que dão sentido para o trabalho desses mestres que, mesmo excluídos, conseguem se colocar e produzir uma obra notável.
Para o sambista gaúcho radicado no Rio de Janeiro Marcelo Amaro, há ainda outra característica que considera típica do Estado: a objeção em reverenciar artistas regionais. O músico tem uma longa e importante trajetória na música do Rio Grande do Sul, construída sobre o pilar cunhado por baluartes do samba local como Mestre Paraquedas, mas despontou só quando mudou-se para o Sudeste.
— Porto Alegre é uma das capitais que mais consomem samba no Brasil, mas qual samba se consome? O samba do centro do país. Há uma resistência em reconhecer os nossos pares. Imagina se um cara como o Paraquedas estoura no Brasil? As pessoas vão dizer: “Ah, é novo, né?”. Pô, o cara está fazendo samba desde 1940. A gente precisa urgentemente começar a reconhecer essas pessoas em vida — diz o músico, que em seu recente disco Afro-gaúcho gravou duas composições de Paraquedas, Afro Sul e Meu Canto Banto.
Meu Canto Banto dá nome ao primeiro disco de Mestre Paraquedas. A produção ficou por conta de Sérgio Valentim e Demétrius Boêmio, em parceria com o estúdio Pedra Redonda, onde o álbum será masterizado e finalizado por Wagner Longmann e Guilherme Ceron. A banda de apoio é composta por Demétrius Boêmio no cavaco, Jonathas Machado no pandeiro, Guilherme Fejão na cuíca, Maicon Ouriques na percussão, Giovanna Jung nos tamborins, Stefania Jonhson na flauta e Igor Peres no surdo. Na voz, Paraquedas divide o microfone de algumas canções com Marietti Fialho, Cláudia Quadros e Pâmela Amaro.
O álbum visita o vasto cancioneiro do mestre, mas tem atenção especial ao tema da africanidade presente no Estado, exaltando elementos típicos da cultura afro-gaúcha como a religião do batuque. Foi uma decisão incontestável de Paraquedas. Griô que é, o grande baluarte do samba porto-alegrense fez questão de que seu primeiro disco fosse também um documento histórico da cultura do povo negro que resistentemente habita o Rio Grande do Sul.
— Eu quis fazer um disco com músicas que falassem mais de africanidade, porque dor de cotovelo e sambinha de malandro eu tenho um monte já gravados. Tenho uma imensidão de músicas com temas africanos, mas esses ninguém quer gravar — diz o mestre.
Como apoiar
Contribuições para o álbum Meu Canto Banto, de Mestre Paraquedas, podem ser realizadas pela plataforma Apoia-se, em apoia.se/mestreparaquedas.