Aviões da Varig sobrevoavam os céus, enquanto Chevettes, Passats, Fuscas e Variants percorriam as ruas. Quem chegava à cidade se deslumbrava com a elevação da ponte móvel do Guaíba – alguns até paravam para fotografar a obra da engenharia moderna, que ornava bem com a áurea cosmopolita da capital gaúcha. Com pouco mais de 1 milhão de habitantes, Porto Alegre se orgulhava da própria modernidade em 1974. Propagandas falavam de uma cidade atenta ao futuro, conectada com os ideais de progresso e disposta a receber a todos. Mas ainda muito longe de ser, de fato, uma cidade de todos.
Capital de um Estado imodesto por sua colonização europeia, Porto Alegre também era um território segregado. Havia a cidade dos brancos e a dos negros, uma divisão silenciosa que tratava de manter cada um no seu quadrado. A arte era um dos poucos caminhos para transpor a barreira racial (afinal, em 1974, a cidade chorava a partida do ídolo negro Lupicínio Rodrigues). Foi nesse contexto controverso que, naquele mesmo ano, jovens músicos negros decidiram se reunir para disputar um festival estudantil de bandas.
A intenção era apresentar um número de forte influência africana, resgatando sonoridades do batuque e do Carnaval, cenários pelos quais a maioria deles circulava desde o berço. Só que ainda faltava alguma coisa. Marco Farias e Paulo Romeu Deodoro, os cabeças do grupo à época, concordaram que o diferencial viria pela dança. Chamaram Iara Deodoro (até então Iara Santos), aluna da aclamada bailarina Nilva Pinto, para recrutar dançarinos pretos e montar uma coreografia. Com banda e ballet formados, apresentaram-se sob a alcunha de Afro-Sul, marcando o início despretensioso do que viria a se tornar o Instituto Sociocultural Afro-Sul Odomode, que completa 50 anos neste 2024, com celebrações que se estenderão até dezembro.
— Não tínhamos pretensão de chegar tão longe, nem mesmo dimensão de que poderíamos, porque era uma coisa muito nossa — lembra Iara Deodoro, 68 anos, 18 à época. — Éramos adolescentes negros inquietos com a própria identidade, tentando entender o porquê da discriminação e do ódio.
A música apresentada foi Pergunta, composição de Marco Farias, que tinha 17 anos. Direta e reta, a letra falava do racismo sentido pela juventude negra local. “Quero uma resposta inteligente para acalmar o meu eu/ O que meu avô fez de errado para isso dar no que deu?/ Às vezes passo na rua e não és capaz de me olhar/ Nunca tentastes me ouvir, me entender, porque tu achas que és mais/ Vou esfriar a cabeça como meus ancestrais/ Vou te propor um acordo: todos seremos iguais”, dizia a canção.
— A gente ia no mercado e via que nos olhavam diferente. No colégio, éramos estudantes como todos os outros, mas éramos diferentes. Isso foi nos incomodando — explica Marco Farias, hoje com 67 anos.
— Sabíamos que não tínhamos chance de ganhar o festival com uma música assim, mas queríamos mandar aquele recado — recorda Paulo Romeu Deodoro, 66. — Lançamos essa pergunta em 1974 e ela ainda não nos foi respondida. Nós éramos uns moleques, todos com 16, 17 anos, e não entendíamos aquela discriminação. Até hoje a gente não entende.
A vitória no festival não veio, mas os músicos e bailarinos seguiram se reunindo. A banda acabou expandindo seu escopo e virou uma espécie de grupo de pesquisa e discussão sobre elementos da história e da cultura dos negros no Rio Grande do Sul, pois havia o desejo coletivo de resgatar a própria identidade frente ao cenário de apagamento das contribuições negras no Estado. Não era um fenômeno isolado.
O surgimento do Afro-Sul estava inserido em um contexto maior, marcado pela insurreição do chamado movimento negro moderno no Brasil e no mundo. É o que explica José Rivair Macedo, professor titular do Departamento de História da UFRGS especialista em História da África e dos Afro-brasileiros.
— Os anos 1970 assistiram, no mundo inteiro, uma efervescência de movimentos sociais negros. Isso englobava desde a luta por direitos civis nos EUA até a resistência ao Apartheid na África do Sul. No Brasil, a gente via movimentos de oposição à ditadura militar que incluíam pessoas negras, mas também movimentos propriamente negros começando a se organizar. Tudo isso foi caminhando para que, em 1978, tivéssemos a fundação do Movimento Negro Unificado, que congregava essas diferentes iniciativas de caráter político, social e cultural — explica o professor.
Em Porto Alegre, o principal expoente foi o Grupo Palmares, liderado pelo poeta e intelectual Oliveira Silveira, que exerceu influência direta nos jovens do Afro-Sul. O grupo fundado três anos antes, em 1971, foi responsável por reivindicar o 20 de novembro, data da morte de Zumbi dos Palmares, como Dia da Consciência Negra.
Embora formado por jovens recém-saídos do colégio e que nem bem beiravam os 20 anos, o Afro-Sul trocava figurinhas com o Palmares, composto por universitários e intelectuais negros. Isso permitiu que o grupo ganhasse notoriedade enquanto instância política, ao mesmo tempo em que seguia forte no aspecto artístico, realizando shows e espetáculos que demonstravam os resultados de suas pesquisas. Com isso, o Afro-Sul foi atraindo um número cada vez maior de músicos e bailarinos negros.
— Sempre que me perguntam quantas pessoas passaram pelo Afro-Sul, respondo: no mínimo, milhares. E com a possibilidade de chegar ao milhão logo, porque os neguinho fazem filho adoidado (risos). Tem gente do Afro-Sul espalhada pelo mundo inteiro — celebra Paulo Romeu, carinhosamente chamado de Paulinho.
Outros Carnavais
A primeira experiência fora de Porto Alegre veio em 1977, quando os músicos do grupo foram tentar a vida em São Paulo. Não havia mercado para bandas de música negra em Porto Alegre. Aliás, àquela altura, a música já havia se casado com a dança. Havia até dado frutos: Paulinho e Iara, que começaram a namorar já nos primeiros meses de Afro-Sul (“Amor à primeira vista”, brincam), celebravam o nascimento da primogênita, Paola – depois, teriam também Edjana e Khadija.
Paola tinha seis meses quando o pai, acompanhado de Marco Farias e outros músicos do Afro-Sul, mudou-se de mala, cuia e tumbadora para São Paulo. Foram quase cinco anos no Sudeste, equilibrados entre viagens a Porto Alegre para ver a filha e a esposa. Junto a Luis Vagner Guitarreiro e os suingueiros do grupo gaúcho Pau Brasil, o Afro-Sul conquistou a noite paulistana. Paulo Romeu conta que chegou a ser convidado para integrar a banda da dupla Chitãozinho & Xororó, como percussionista, mas recusou. Era hora de voltar para casa.
Iara seguiu à frente do balett do Afro-Sul durante os anos em que os músicos estiveram fora, iniciando a trajetória que faria dela uma das mais renomadas coreógrafas no segmento das danças afro, tida como mestra por bailarinos gaúchos que hoje despontam no Brasil e no mundo. O grupo estava completo em 1983, ano em que a sempre próxima relação com o Carnaval ficou ainda mais íntima.
Iara e Paulinho assumiram a direção da já extinta escola de samba Garotos da Orgia, fundada em 1980. Caminhando de mãos dadas com o Afro-Sul, a agremiação conquistou campeonatos nas séries bronze e prata do Carnaval de Porto Alegre. Chegou também a disputar a série ouro, sem títulos, mas marcou para sempre a folia da cidade. Uma cláusula do estatuto foi crucial para isso: somente questões ligadas à África ou à negritude poderiam virar tema na Garotos da Orgia.
Era uma escola diferente, todos diziam. A “pegada africana”, que já era marca registrada do Afro-Sul, impressionou na avenida, conforme lembra Paulo Romeu:
— A gente revolucionou o Carnaval de Porto Alegre. Chegamos fortes nessa pegada africana, metendo só paulada. O Luiz Melodia veio para cá e foi em tudo que é escola de samba grande, mas pirou na Garotos da Orgia. Imagina só, uma escola do terceiro grupo. A gente não tinha nada, mas ele ficou louco com a nossa musicalidade e a nossa dança.
O último Carnaval da Garotos da Orgia ocorreu em 1998. A escola levou para a avenida a pouco conhecida lenda do guerreiro Bakari Dian, que teria derrotado o monstro Bilissi no reino de Ségou, um dos maiores impérios da África Ocidental em meados de 1700. O fim da agremiação se deu por questões financeiras.
— A gente não tinha mais de onde tirar dinheiro. Tu começas o ano devendo o Carnaval anterior e terminas devendo o próximo, nunca para de dever. Mas valeu muito a pena, foi lindo o que fizemos. E foi o Carnaval que trouxe visibilidade e reconhecimento para o Afro-Sul. Fomos chamando atenção do nosso público, o público preto, e os órgãos públicos e as instâncias de cultura também começaram a olhar para a gente — salienta Iara.
Aldeia Afro-Sul
De fato, a experiência da Garotos da Orgia mudou os rumos do Afro-Sul. Com o fim da escola de samba, o grupo criou o bloco afro Odomode e passou também a compor alas coreografadas para as agremiações que tivessem interesse em contratá-los. O problema (ou não) é que todas tinham interesse. As alas do Afro-Sul viraram febre na folia de Porto Alegre, e o grupo chegou a desfilar por 17 escolas em um mesmo Carnaval. Além de preparar 17 coreografias diferentes, os integrantes ainda faziam as próprias fantasias para as alas.
— Era coisa de louco — lembra Iara.
O terreno da Avenida Ipiranga cedido pela prefeitura para sediar a quadra da Garotos da Orgia seguiu abrigando as ações sociais do Afro-Sul, que há tempos já não era mais apenas um coletivo artístico – faltava só oficializar. Foi um passo para que o grupo virasse oficialmente Instituto Sociocultural Afro-Sul Odomode.
A ampliação do escopo de atuação surgiu naturalmente, mas por necessidade. Começou no trabalho com as crianças que participavam das turmas mirins de música e dança afro que o grupo passou a oferecer. Os relatos de racismo trazidos por elas acenderam o alerta: era preciso fazer mais. A arte passou a ser, então, instrumento para promover o letramento racial dos pequenos, hoje o foco principal do Afro-Sul.
— Nossa preocupação nunca pôde ser só com a parte artística. Hoje, nosso grande objetivo é proteger as crianças do racismo, fazer com que não passem pelo que passamos. A gente trabalha para que elas cresçam com autoestima e com ferramentas para se manter saudáveis nesse Estado, que não é fácil — afirma Iara, que acaba se sentindo um pouco “mãe” de todos os que passam pelo grupo. — A sabedoria africana nos diz que é preciso uma aldeia para cuidar de uma criança. Nossa aldeia está cumprindo o seu papel — diz.
A DJ e produtora cultural Bieta, 45 anos, é uma das crianças criadas na aldeia do Afro-Sul. O primeiro contato com o grupo veio quando ela assistiu a um ensaio da Garotos da Orgia e voltou dizendo aos pais: “Eu quero fazer o que eles fazem”. A entrada no Afro-Sul veio depois. Após Bieta repetir de ano no colégio particular em que estudava, em episódio associado ao racismo, os pais procuraram o grupo. Ela ficou no Afro-Sul dos oito aos 20 anos.
— Meu ser artístico e político foi formado pelo Afro-Sul. Mais do que isso, ali encontrei ferramentas para sobreviver no Estado — define Bieta.
A importância é tamanha que a artista tatuou no braço a logomarca do Afro-Sul Odomode – um desenho criado pelo pai dela a partir da foto de uma apresentação do grupo.
— Onde eu estou, o Afro-Sul está; aonde levo a minha arte, levo a arte do Afro-Sul. Faço questão de sempre frisar isso, pois é uma forma de continuidade e de mostrar para a Iara e o Paulinho que o trabalho deles não foi em vão — diz Bieta, que vive no Rio de Janeiro há mais de 20 anos, mas segue conectada ao grupo.
O mesmo ocorre com Pablo Guerreiro, 35. “Cria do Afro-Sul com orgulho”, ele vive no Rio há 15 anos, onde é diretor artístico da Acadêmicos do Cubango, de Niterói, e viaja o mundo como bailarino e professor de samba e danças afro. Já esteve em países como França, China, Austrália, Bélgica, Áustria, Inglaterra, Polônia, Irlanda e EUA, sempre levando a “filosofia Afro-Sul Odomode”, como chama.
Junto com o grupo, subiu ao palco pela primeira vez aos 12 anos, no Theatro São Pedro, para nunca mais sair do meio artístico. Os louros de sua trajetória, Pablo credita aos mestres do Afro-Sul.
— Com a tia Iara e o tio Paulinho eu me encontrei na vida, entendi o que vim fazer aqui. Isso é ser mestre, é ser pai e mãe, é ser ancestral. Como meus ancestrais, eles me ensinam, através do passado deles, a refazer o meu presente e construir o meu futuro — reflete.
Iara e Paulinho não escondem a emoção diante do carinho dos pupilos. Durante entrevista para a reportagem, na casa deles, os dois encheram os olhos de lágrimas mostrando mensagens recebidas de pessoas que passaram pelo grupo. É o combustível que permitiu chegar aos 50 anos de Afro-Sul.
Ninguém sai do Afro-Sul e esquece de onde saiu
IARA DEODORO
Cofundadora e líder do Afro-Sul
— Emociona ver que ninguém sai do Afro-Sul e esquece de onde saiu. Não importa se foram seguir carreira acadêmica, viver da arte ou viajar pelo mundo, todos sempre permanecem com a gente. Isso nos motiva e nos ajuda a continuar na caminhada — emociona-se Iara.
— Não é fácil um grupo de negrada fazer bodas de ouro no sul do Brasil. Foi complicadíssimo de sobreviver, perdemos muito nessa batalha, mas a nossa certeza é de que ganhamos muito mais — completa Paulinho.
Homenagem na avenida
Dada a importância do Afro-Sul para o resgate do que hoje se entende por cultura afro-gaúcha, intriga que a entidade, mesmo após 50 anos de existência, seja tão pouco reverenciada. Iara e Paulinho destacam que muitos porto-alegrenses sequer sabem o que há no número 3.850 da Ipiranga, onde segue funcionando a sede do grupo, em espaço cedido pela prefeitura. Há quem se surpreenda quando entra ali pela primeira vez.
Os líderes do Afro-Sul sentem que poderiam ter ido muito mais longe, não fosse o racismo estrutural que trava o avanço das iniciativas negras no Estado. Mas também minimizam isso. Não há tempo a perder.
— Há grupos brancos que, em bem menos tempo, são muito mais reconhecidos, mas não me preocupo mais com isso. O principal reconhecimento é aquele que vem do nosso próprio povo — diz Iara.
Nesse sentido, é muito valiosa a homenagem que o grupo receberá na madrugada deste domingo (25). Por volta das 4h40min, a S.B.C. Realeza vai adentrar o Complexo Cultural do Porto Seco levando à avenida as histórias do Afro-Sul Odomode. Será a última escola a desfilar, fechando o Carnaval de Porto Alegre, que ocorre nesta sexta (23) e sábado (24), a partir das 20h.
Bieta e Pablo devem vir do Rio a Porto Alegre para participar do desfile, que reunirá outras centenas de integrantes do Afro-Sul. Na avenida, vão reencontrar Gugu Lacerda, 42 anos, um dos carnavalescos responsáveis pelo enredo da Realeza, que também é “cria do Afro-Sul”. Aliás, “crias do Afro-Sul” estarão espalhadas por todo o Porto Seco nos dois dias de desfile, pois a instituição é um dos mais importantes berços artísticos da folia porto-alegrense.
— Acredito que o Carnaval devia essa homenagem ao Afro-Sul — reflete Gugu. — Além da Garotos da Orgia, que foi um verdadeiro evento, e do pioneirismo das alas coreografadas, o Afro-Sul é responsável por formar grandes profissionais do nosso Carnaval. Porta-bandeiras, coreógrafos, cantores, ritmistas, carnavalescos, enfim, muita gente saiu dali.
O próprio Gugu, hoje amplamente reconhecido, teve sua trajetória forjada na preparação dos clássicos espetáculos anuais do grupo. O primeiro foi Malandro Dono da Noite, Rei dos Cabarés, de 1995. O carnavalesco, então com 13 anos, ajudou a confeccionar figurinos e cenários da montagem. Também dançou no espetáculo, mas foi no trabalho de composição artística que ele se encontrou.
— Foi no Afro-Sul que descobri que podia ser um artista plástico. Essa marca Gugu Lacerda, que hoje quase todo mundo conhece no meio do nosso Carnaval, nasceu ali. Inclusive, o apelido de Gugu foi a Iara que me deu (risos) — conta ele, que segue atuando no Afro-Sul. — Brinco que sou o diretor artístico. A Iara e o Paulinho me dão corda (risos).
A responsabilidade de preparar um desfile que mexe intimamente com os afetos do carnavalesco é, naturalmente, maior do que o habitual. Mas a Realeza está disposta a mostrar que veio para ficar entre as escolas da série ouro. Para narrar as cinco décadas de Afro-Sul Odomode, apresentará três carros alegóricos, três tripés e 17 alas na avenida, reunindo entre 850 e mil componentes.
Falar de Afro-Sul é falar sobre a história do negro e da cultura negra em Porto Alegre
GUGU LACERDA
Carnavalesco e “cria do Afro-Sul”
— Falar de Afro-Sul é falar sobre a história do negro e da cultura negra em Porto Alegre, mas também é falar de cuidado com idosos e crianças, de grandes espetáculos que marcaram o teatro gaúcho, de cidadania, enfim, muita coisa. Tudo isso vai estar na avenida. Tenho certeza de que vamos fazer um grande Carnaval e mostrar a força, a garra e a arte desse grupo fundamental — projeta Gugu.
Tal qual Iara faz antes dos espetáculos e ensaios do grupo, o desfile vai começar benzendo o público e a avenida com água de cheiro de alfazema. Já no final, a escola projetará o futuro do Afro-Sul Odomode, representado como um grande quilombo onde todos têm lugar. Um futuro que, Iara e Paulinho esperam, seja de continuidade ao legado iniciado por eles em 1974.
— Meu maior sonho é que essa nova geração chegue aos cem anos. E que cheguem juntos, como família, cuidando uns dos outros. Não é e nem vai ser fácil sobreviver nessa sociedade determinada a acabar com os negros, os indígenas e os pobres, mas se todos continuarem seguindo juntos, a gente vai chegar longe — projeta Paulo Romeu.