Jorge Moacir da Silva nasceu em 4 de dezembro de 1946. Criado sob os cuidados da mãe e da tia, cresceu brincando pelas ruas da antiga Ilhota, imerso na efervescência musical que era marca registrada da região onde também vivera Lupicínio Rodrigues. Ainda nos primeiros anos da infância, começou a demonstrar afinidade com o pandeiro e outros instrumentos de percussão. Era um indicativo de que, anos mais tarde, o pequeno Jorge Moacir viria a marcar para sempre seu nome na música brasileira. Ou melhor, a alcunha pela qual ficou conhecido: Bedeu.
Falar da trajetória do artista, que morreu em 1999, vítima de complicações causadas pela diabetes, implica falar da história da própria música no Brasil. Bedeu foi um dos criadores do suingue, gênero gaúcho que conquistou o mainstream nas décadas de 1970 e 1980 ao lado do samba-rock paulista e do sambalanço carioca. Ele circulou com desenvoltura por todas as vertentes — fosse cantando, compondo ou atuando na produção musical —, mas foi com o suingue que fez história.
A data de nascimento do músico, 4 de dezembro, foi eternizada no calendário oficial de Porto Alegre em 2021, quando a Câmara de Vereadores aprovou a criação do Dia Municipal do Suingue e Samba-Rock — celebrado neste ano na última segunda-feira. A festividade pode ter sido recebida com surpresa por uma parte significativa dos porto-alegrenses (por que a capital gaúcha teria um dia alusivo ao suingue, afinal?). Em contrapartida, outra parte igualmente significativa não entende o motivo pelo qual a cidade demorou tanto para reverenciar Bedeu e a massa suingueira.
Esta dualidade exemplifica bem o cenário histórico do suingue em Porto Alegre: o gênero, ao mesmo tempo em que viveu uma era de ouro e permanece com mercado aquecido e público fiel, é praticamente desconhecido por muita gente em sua terra natal. O mesmo ocorre com Bedeu, Luis Vagner, Leleco Telles, Carlos Medina, Paulão da Tinga e outros grandes artistas suingueiros que partiram sem conquistar o reconhecimento merecido e sobre os quais pouco se ouve falar na cidade.
Em comum, todos eles tinham a raiz afro-gaúcha. E também o amor por esse gênero nascido nos anos 1960 a partir da fusão de elementos do samba, do rock, do jazz e de expressões latinas como o candombe. O resultado é uma sonoridade dançante que não é nem samba, nem rock, nem jazz: é suingue, algo genuinamente gaúcho, nascido pelas ruas dos territórios negros que Porto Alegre conservava.
Contudo, apesar da originalidade, o suingue não deixa de ser um reflexo do contexto cultural de sua época, marcada por uma verdadeira invasão do rock. O estilo importado não demorou a influenciar a música brasileira, impulsionando, sobretudo, o surgimento de um movimento musical que também não tardou a conquistar as rádios e fez ecoar pelo país vozes de artistas que eram, em sua maioria, jovens brancos e do sudeste do Brasil. Era a Jovem Guarda.
Com o suingue, os jovens músicos negros de Porto Alegre encontraram uma forma de se inserir no cenário que dominava a música no Brasil, criando algo que unia os diferentes terrenos culturais pelos quais eles transitavam. É o que explica o músico e pesquisador Mateus Berger Kuschick, conhecido como Mateus Mapa, pós-doutor em Música e autor do livro Suingue, Samba-rock e Balanço - Músicos, Desafios e Cenários:
— Eram músicos que estavam inseridos no contexto cultural da época, mas vinham de uma formação familiar em escolas de samba e tribos carnavalescas, haviam crescido nesses ambientes. Eles, então, acabaram bebendo nas duas fontes e criaram algo distinto.
Uma tradução do que sentiam os responsáveis por cunhar o suingue está em Guitarreiro, canção de Luis Vagner que diz: "Naquele tempo eu gostava dos Beatles/ Mas tinha os nego veio que eu gostava muito mais". Ou seja, os primeiros suingueiros de Porto Alegre não desejavam descolar-se daquilo que embalava todos os outros jovens da época — tanto que parte deles também chegou a tocar em bandas de rock —, tampouco tinham intenção de deixar para trás a batucada que podia ser ouvida no quintal de suas casas. O jeito foi criar algo que permitisse batucar e também dedilhar a guitarra.
O flerte e os "nego veio"
Um dos primeiros a experimentar a fusão foi o próprio Luis Vagner (1948-2021). Nascido em Bagé, o "guitarreiro", como ficou conhecido, não sabia precisar quando exatamente a música entrou em sua vida. Era como se já tivesse nascido com ela. Em entrevistas, costumava rememorar sua lembrança musical mais longínqua: quando, aos dois anos, ficou encantado com um bandoneonista que viu tocar em Bagé. Anos mais tarde, morando em Santa Maria, o encantamento era com o trem que pegava para ir até distritos da região. Luis Vagner ficava "viajando" na sonzeira que a locomotiva fazia.
Viajou tanto que, guiado também pelo som, veio a Porto Alegre no início da década de 1960. Foi na capital gaúcha que descobriu outras sonoridades e cunhou a sua própria, bebendo na fonte da cultura negra que efervescia na cidade por meio das escolas de samba, das tribos carnavalescas, dos clubes sociais negros e das festas black. Passou a integrar a banda The Jetsons, de rock, ao passo em que já começava a criar canções autorais com influência também do samba. Quando um dos integrantes deixou os Jetsons, achou-se por bem mudar o nome para Os Brasas.
Foi durante um show do grupo rebatizado que Luis Vagner avistou na plateia a jovem Delma Gonçalves, que viria a se tornar figura central na trama do nascimento do suingue.
— Ele era o único neguinho da banda. Eu, praticamente a única neguinha da plateia. A gente se encontrou (risos) — lembra Delma. — Depois do show, ele perguntou se queria um autógrafo, mas eu disse que não tinha nem papel e nem caneta. Fui firme (risos). Ele saiu catando um papel e uma caneta e escreveu: "Um dia falaremos de amor". Pediu para me levar em casa.
Levou. A residência ficava no bairro Santana. Delma era filha do casal Miguelzinho e Carlinda, responsáveis por fundar a escola de samba Acadêmicos da Orgia, presente até hoje no número 2.741 da Avenida Ipiranga. O flerte rendeu um romance rápido que acabou se transformando em uma amizade que, esta sim, durou a vida toda — até a morte de Luis Vagner, há dois anos. E serviu também para que o músico se aproximasse da gurizada que fazia um som parecido com o dele na Acadêmicos da Orgia: Cy (outro irmão de Delma), Nego Luis, Paulo Romeu Deodoro, Leco do Pandeiro, Marco Farias, Alexandre Rodrigues, Leleco Telles, Bedeu (o próprio) e outros jovens que viam ali uma oportunidade de aprender com os nego veio. Nascia, assim, o suingue.
Santa Rita e São Paulo
Da quadra da Acadêmicos da Orgia, que hoje luta para sobreviver, saíram safras de grandes músicos. Uma delas originou um dos grupos mais emblemáticos da música popular brasileira: o gaúcho Pau Brasil (não confundir com o conjunto homônimo paulista). Tudo começou com Bedeu, a versão crescida do menino que tocava pandeiro na Ilhota. Com 20 e tantos anos, ele já havia dado os primeiros passos como artista solo e já tinha desbravado a cena musical de São Paulo, onde bombava o samba-rock. Até decidir que queria criar uma banda.
O ano era 1974. Bedeu convidou os amigos Cy, Nego Luis, Alexandre Rodrigues, Leco do Pandeiro e Leleco Telles para formar o grupo, acreditando que, juntos, eles poderiam conquistar o Sudeste. E estava certo. A ida a São Paulo ocorreu em 1976. Foi lá que os suingueiros de Porto Alegre experimentaram o estrelato e conheceram as dores e as delícias do showbiz.
GZH reuniu três remanescentes do grupo para uma conversa sobre os tempos áureos do Pau Brasil: Alexandre Rodrigues, Nego Luis e mestre Cy (o título veio depois, por conta da função que Cy desempenhou por anos na bateria da Acadêmicos). E o local do encontro não poderia ser outro: a escola de samba da Avenida Ipiranga.
Foram cerca de duas horas embaladas por causos, lembranças, risadas e canjas musicais com os três. Há ainda um quarto remanescente, Leco do Pandeiro, mas a reportagem não conseguiu localizá-lo para participar do encontro — conforme os amigos, Lequinho, como é carinhosamente chamado, vive hoje em situação de vulnerabilidade social. E, além de Bedeu, que faleceu em 1999, Leleco Telles também partiu em 2004, deixando um legado de grandes composições.
O ponto de partida da conversa foi a ida para São Paulo. Os músicos contam que a viagem ocorreu de forma repentina. Não havia nada esquematizado e eles sequer tinham onde ficar. A única referência era o amigo Luis Vagner, que também havia subido para o Sudeste e já estava fazendo sucesso por lá, em vias de lançar seu primeiro disco — depois, lançaria muitos outros e viria a influenciar diretamente nomes como Jorge Ben Jor, que o homenageou com a canção Luiz Wagner Guitarreiro.
A gurizada do Pau Brasil se inspirava na trajetória do amigo, mas ninguém esperava que Bedeu fosse encasquetar em pegar a estrada tão repentinamente.
— Do nada, o Bedeu chegou e falou: "Quem tá trabalhando vai ter que largar o trabalho. Nós vamos tocar um mês por aqui, juntar um dinheiro e se largar para São Paulo. Porto Alegre já deu o que tinha que dar" — lembra Nego Luis, hoje com 72 anos.
Apesar do supetão, não houve discordância. Leco do Pandeiro e mestre Cy chegaram a ficar divididos, pois a viagem significaria abandonar o grupo Evolução, a outra banda na qual os dois tocavam que também foi emblemática para a cena do suingue em Porto Alegre — dando nome, inclusive, à casa noturna Evolução, que marcou época na noite da cidade. Era preciso, pelo menos, alguma garantia de que a empreitada seria bem sucedida.
— Antes de viajarmos, nós fomos os seis aqui da Acadêmicos até a Igreja Santa Rita de Cássia (no Guarujá). Fomos e voltamos a pé, para pagar promessa e a santa nos ajudar a gravar um disco quando chegássemos em São Paulo — conta mestre Cy, atualmente com 75 anos.
— Botamos a Santa Rita em uma saia justa, né? Pagamos antecipado, ela ficou sem opção (risos) — diverte-se Alexandre Rodrigues, 76 anos.
Santa Rita cumpriu a sua parte: a viagem deu certo e o sucesso não tardaria a chegar.
"Os melhores são os gaúchos"
Em São Paulo, junto a outros gaúchos que também estavam por lá, os integrantes do Pau Brasil compuseram canções que se tornaram clássicas: Bela Natureza (de Bedeu e Paulo Romeu Deodoro, do grupo Afro-Sul Odomodê), Duro, Sem Love, Sem Nada (Bedeu e Luis Vagner) e Grama Verde (Bedeu, Alexandre Rodrigues e Leleco Telles, trinca oficial de compositores do Pau Brasil). Sem falar do hit Menina Carolina ("Eu encontrei a Carolina/ Aquela menina linda que me faz sonhar"), de Bedeu e Leleco.
A lista é muito mais extensa. Os suingues do Pau Brasil caíram nas graças dos paulistanos antes do tão sonhado disco sair do papel. O sexteto agradou tanto que passou a ser disputado por casas noturnas da cidade, chegando a fazer mais de um show por noite.
— Nossas músicas ficaram conhecidas sem terem sido gravadas e sem tocarem em rádio, somente por conta dos nossos shows — diz Alexandre. — Tem uma que eu e o Bedeu fizemos, Passa a Bola, Maromba, que o Serginho Chulapa (à época atacante do São Paulo) fazia a gente repetir umas sete vezes na noite. O mesmo ocorria com Massagem, com Grama Verde — conta.
— A gente chegava a ficar com nojo de tocar, de tanto que pediam (risos). Te Quiero Mucho era outra. Quando o Bedeu metia o "portunhol", pelo amor de Deus, dançava até assombração — acrescenta Nego Luis. — Juntava muita gente para assistir "os gaúchos". Ficamos conhecidos assim. O Mussum (ex-integrante d'O Trapalhões) era um que dizia para todo mundo: "Os melhores são os gaúchos. Tocam muito mais do que nós (Os Originais do Samba, grupo musical de Mussum)".
A levada do suingue gaúcho chamou atenção porque era diferente do que os paulistanos faziam com o samba-rock e os cariocas, com o sambalanço. Sobretudo pela influência de países vizinhos como o Uruguai e a Argentina e a incorporação de instrumentos típicos do Rio Grande do Sul — a exemplo do tambor sopapo cunhado por Giba Giba, outro afro-gaúcho que marcou a música brasileira. É por isso que a turma que foi a São Paulo rejeita a ideia defendida por alguns de que suingue, samba-rock e sambalanço "são tudo a mesma coisa". Podem até ser "parentes", mas não a mesma coisa.
— Nosso maior diferencial são os instrumentos. A percussão é que dita a coisa, dá aquele jeito meio latino — avalia Alexandre Rodrigues. — No caso do Pau Brasil, tocávamos timba, sopapo, surdo, pandeiro... O Bedeu tocava o surdo de uma maneira que não era tradicional, e o jeito que o Leco tocava pandeiro era um jeito que até hoje é só dele. Era algo que chamava atenção — detalha.
— As pessoas se surpreendiam quando descobriam que éramos gaúchos — lembra Paulo Romeu Deodoro, um dos fundadores do grupo Afro-Sul Odomodê. — O povo sabia que tinha negro no Rio Grande do Sul, mas quase ninguém sabia que os negros do Rio Grande do Sul tinham uma cultura própria. E todos nós que estávamos em São Paulo tínhamos consciência da nossa raiz afro-gaúcha e sempre batíamos muito em cima disso — explica.
Os músicos levaram a cultura negra do Rio Grande do Sul para junto dos grandes. Durante a conversa com os três remanescentes do Pau Brasil, por exemplo, nomes como os de Mussum, Emilio Santiago, Bebeto, Jorge Ben Jor, Almir Guineto e Djavan surgiram o tempo todo em meio aos causos contados, sempre com naturalidade. Eles estiveram entre alguns dos maiores artistas da música popular brasileira. Eram gigantes também, afinal.
Por conta disso, torna-se ainda mais intrigante o fato de que muitos porto-alegrenses sequer sabiam da existência do Pau Brasil. O pesquisador Mateus Mapa lembra um episódio que serve para ilustrar tal contradição:
— Em 1978, a Associação Leopoldina Juvenil, clube da elite porto-alegrense, contratou um produtor de São Paulo para que ele trouxesse o que havia de melhor na música brasileira. Adivinha quem ele trouxe? O Pau Brasil. Eles vieram de São Paulo para Porto Alegre com toda a pompa, para fazer show em um lugar no qual provavelmente nunca teriam pisado se não tivessem conquistado esse reconhecimento no centro do país.
Foi também em 1978 que o disco do Pau Brasil virou realidade. Intitulado O Samba e Suas Origens, o LP de 12 faixas traz na capa Nego Luis, Leleco Telles, Bedeu, Cy, Alexandre Rodrigues e Leco do Pandeiro (E para D) esbanjando estilo, malandragem e, é claro, suingue. Para divulgar o trabalho, o grupo esteve em diversos programas de rádio e televisão, incluindo os comandados por Lolita Rodrigues e Raul Gil, sucessos de audiência na época. O suingue gaúcho se espalhou pelo Brasil.
Já o Pau Brasil dispersou. Cy, Nego Luis e Leco do Pandeiro deixaram o grupo pouco tempo depois, antes que o segundo disco fosse lançado, em 1980. Pelo que contam, não houve racha no sexteto, somente saudade de casa e cansaço — a rotina em São Paulo "não era bolinho".
Para suprir as baixas na banda, Paulo Romeu e Marco Farias, do Afro-Sul Odomodê, entraram para o Pau Brasil. Apesar disso, o segundo disco traz somente Alexandre Rodrigues, Bedeu e Leleco Telles em sua capa. Era uma estratégia da gravadora Continental, que queria transformar os suingueiros em algo semelhante ao Bee Gees, com três caras como frontmen.
O disco performou bem, mas sem a formação original, não teve o mesmo impacto do primeiro. O Pau Brasil terminou e cada um dos músicos seguiu um caminho artístico distinto. Mas a amizade permaneceu, assim como a missão de difundir o suingue.
Um gênero pop, mas marginal
Enquanto isso, em Porto Alegre, o suingue estava mais aquecido do que nunca. O sucesso do Pau Brasil e de Luis Vagner impulsionou a criação de dezenas de bandas e o surgimento de artistas relevantes para a cena, como Carlos Medina (1947-2011) e Paulão da Tinga (1949-2015). As festas estavam sempre cheias em locais que marcaram época na cidade, como o Evolução, a Associação Satélite Prontidão e o Ypiranguinha. Foi a era de ouro do suingue em Porto Alegre.
Mas, assim como outras expressões culturais negras que despontaram na cidade, o gênero sempre permaneceu na penumbra. E segue embaçado ainda hoje. O número de casas noturnas especializadas caiu drasticamente de lá para cá, ainda que o suingue siga mobilizando multidões. Ou seja, nunca deixou de ser pop, ao passo em que nunca deixou de ser, também, marginal.
Entre as 12 fontes entrevistadas pela reportagem, a maior parte atribui ao racismo o cenário difícil que o gênero musical enfrenta historicamente.
— O suingue é a música dos pretos, a música que surgiu nos guetos de Porto Alegre. Para esse tipo de música e esse tipo de artista, a luta é sempre mais suada — opina o produtor musical Luis Fernando Silva, que acumula 40 anos de atuação na cena do suingue. — A gente fica se perguntando: "Por que só com nós a coisa não anda?". É difícil achar uma resposta que não seja o preconceito, porque sabemos que a nossa música é boa.
Nesse sentido, o pesquisador Mateus Mapa traz uma provocação a respeito do próprio conceito de "música nativista gaúcha": se o termo caracteriza as musicalidades "nativas" do Rio Grande do Sul, por que o suingue fica de fora?
— As expressões culturais afro-gaúchas sempre estiveram à margem do conceito de nativismo — diz. — Isso ocorre com o suingue, com o maçambique de Osório, com o tambor sopapo do Giba Giba... Em comum, todas elas têm a mesma origem negra.
Já os remanescentes do Pau Brasil não acreditam que se trate de racismo, mas concordam que o gênero deveria ser mais valorizado.
— Quando a gente estava com o Pau Brasil, víamos que algumas bandas apareciam toda hora no jornal, participavam dos programas, e a gente nunca era chamado — relembra mestre Cy. — E eu te pergunto: qual foi a banda que saiu daqui na cara e na coragem e honrou o Rio Grande do Sul? Foi o Pau Brasil.
— Em São Paulo, a gente era tratado muito bem. Aqui, as oportunidades não nos foram dadas no mesmo nível que foram dadas a outros — sintetiza Alexandre.
— Lá a gente fazia festa de município todos os dias, se quisesse. No Estado nós nunca fomos chamados por nenhuma cidade — endossa Nego Luis.
Porém, o que deixa os três realmente inconformados é a falta de valorização a Bedeu. O músico seguiu em carreira solo após o fim do grupo e gravou discos hoje tidos como itens de colecionador, guardiões de canções que são verdadeiras joias da música popular brasileira, mas nunca deslanchou a valer.
Para Alexandre, mestre Cy e Nego Luis, Bedeu era um gênio da música.
— O Bedeu era o melhor de todos os artistas daquela época. Bedeu cantando, Bedeu tocando, Bedeu improvisando, Bedeu compondo... Não tinha para ninguém. Eu ainda não vi ninguém igual ele — diz Alexandre.
— Esses dias eu estava vendo o programa do Mion (na Globo) e fizeram uma homenagem ao Djavan. Me emocionei, lembrei do Bedeu. O Bedeu era para estar em um negócio assim, cara — acrescenta mestre Cy, emocionado.
— Também não entendo o Luis Vagner não ser conhecido no mundo todo. O jeito que aquele cara tocava era coisa de louco — diz Alexandre.
Delma Gonçalves (a menina que levou Luis Vagner para a Acadêmicos da Orgia) atua hoje como guardiã da obra de Bedeu, seu grande amigo e parceiro de composições. Ela, que é poeta, escrevia letras para Bedeu musicar — assim, mesmo sem trabalhar diretamente com a música, tornou-se uma das poucas representantes femininas no meio do suingue.
Desde a morte do amigo, Delma organiza anualmente um evento de tributo a fim de manter vivo o legado dele. Com olhos marejados, ela lamenta a partida precoce de Bedeu, justamente quando começava a experimentar algum tipo de reconhecimento na terra que o viu nascer:
— Naquele ano de 1999, a Zero Hora fez uma baita reportagem sobre ele. O título era Porto Alegre no Balanço de Bedeu, tenho guardada até hoje. Ele também ganhou o (prêmio) Açorianos pelo conjunto da obra, estava muito feliz. Só que tudo isso ocorreu somente no ano em que ele viria a morrer, já bastante doente.
O futuro do suingue
A transformação do aniversário de Bedeu em Dia Municipal do Suingue e Samba-Rock foi celebrada pela massa suingueira de Porto Alegre. Trata-se de uma validação institucional que todos consideram tardia, mas importante para que o gênero conquiste mais reconhecimento no cenário cultural do Rio Grande do Sul.
O músico Kaubi Tavares, com mais de 35 anos de carreira, tem esperança de um dia ver o suingue reconhecido como patrimônio imaterial de Porto Alegre.
— É fruto de um movimento que tentou buscar a identidade da comunidade negra da cidade — justifica. — Hoje, temos poucas casas dedicadas ao suingue, poucos contratantes e pouquíssima valorização da mídia. Tanto os espaços quanto as bandas se mantêm em atividade na base da resistência, porque parece que a máquina da música não quer mais saber de suingue. Mas ainda assim os nossos eventos estão sempre lotados.
A lotação é verídica. GZH confirmou na noite de 17 de novembro, quando participou de uma das festas mais tradicionais do suingue em Porto Alegre, o projeto Evolução. Apesar do nome, não há ligação direta com a antiga casa noturna Evolução. Mas ela foi a inspiração para que o idealizador Cleber Bayan criasse, há 12 anos, a festa independente que busca rememorar aqueles tempos áureos. Atualmente, o evento ocorre todas as sextas-feiras no Partenon Tênis Clube, na Zona Leste.
— Meu público é muito fiel — celebra Bayan. — É um público que vem sempre bem-vestido, gosta de ter garçons à disposição, ambiente climatizado e cerveja gelada. Eu procuro oferecer o melhor para eles, pois acredito que isso também é uma valorização do nosso suingue.
A maior parte do público na noite de 17 de novembro era formada por negros com entre 40 e 60 anos. No entanto, também era possível identificar alguns mais jovens.
— Geralmente são os filhos de suingueiros, que acabam se afeiçoando pela cultura — explica Bayan. — Só que também há os iniciantes. Porque o suingue tem disso: depois que a pessoa conhece, é difícil ela não voltar.
As atrações principais da noite foram o grupo Santo Forte, que representa uma nova geração do suingue; a banda Swinga Brasil, que comemorava 30 anos na ocasião; e o grupo Os Medinas, que traz os irmãos Daniel e Marcio Medina como frontmen — dois filhos de Carlos Medina que dão continuidade ao legado do pai.
Entre 23h e 4h, a pista não ficou vazia em nenhum momento. Havia quem dançasse em par e com direito a coreografias elaboradas, mas também quem dançasse sozinho e sem grandes preocupações com a coordenação. Ficou claro que, para os suingueiros, o que importa é se divertir.
O repertório da noite incluiu desde clássicos de Bedeu, Luis Vagner, Medina e Paulão da Tinga até hits atuais de nomes como Ludmilla e Thiaguinho, no ritmo do suingue. Trata-se de uma estratégia adotada pelas bandas para atrair os mais jovens.
— O suingue tem um público cativo. Isso, ao mesmo tempo em que traz alegria, causa preocupação. Porque se o público não se renovar, qual será o futuro do suingue? — reflete Daniel Medina, d'Os Medinas.
A inquietude é compartilhada por todos os artistas do gênero ouvidos pela reportagem. Ainda assim, são muitas as sementes que o suingue plantou na música brasileira, influenciando outros diferentes estilos e grupos. Um exemplo é o Pagode do Dorinho, criado em 1984 com a proposta de unir o suingue ao pagode que começava a bombar pelo país. Nascido também na Acadêmicos da Orgia, o grupo foi influenciado diretamente pelos nego veio do Pau Brasil.
Para o músico Everton Dornelles, um dos fundadores do Dorinho que hoje atua em carreira solo, muitos outros nomes da música brasileira compartilham da mesma referência.
— O suingue está difundido no Brasil inteiro. Para mim, Raça Negra toca suingue; Djavan toca suingue; Belo toca suingue; Thiaguinho toca suingue... Tem muita gente tocando suingue por aí, só não chamam assim — opina Dornelles. — Eu tenho muito orgulho de dizer que sou suingueiro.
Diante de relatos como este, a velha guarda suingueira sente que pode respirar aliviada.
— Dá orgulho ver que deu frutos essa coisa toda. Há uma continuidade daquilo que foi proposto por nós e que, na época, nem tínhamos dimensão do que era. A gente sente que valeu a pena, né? — reflete Alexandre Rodrigues.
É provável que o gênero continue embalado pelo ritmo da resistência, mas nunca tudo foram flores, afinal. E enquanto houver suingue, a certeza é de que o salão jamais ficará vazio.