Existe um consenso de que artistas que se prezam devem interferir na política. Ou existia, até o show de Roger Waters em São Paulo no dia 9 de outubro, quando o homem que fundou o Pink Floyd nos anos 1960 contrariou parte do público do Allianz Parque criticando o candidato a presidente do Brasil que liderava as pesquisas de intenção de voto, Jair Bolsonaro (PSL), agora confirmado como líder do país a partir de janeiro de 2019.
Era a estreia da turnê brasileira Us + Them, e as vaias dos fãs ao "EleNão" exibido no telão e à decisão de colocar o nome do militar reformado na lista de políticos mundiais considerados neofascistas surpreenderam o ídolo do rock. Diante do gritaria e do incômodo de parte de sua plateia, Waters ficou minutos em silêncio, disse no microfone que não sabia com precisão o que ocorria no Brasil, mas iniciou um discurso de que não era viável que uma população apoiasse um político militar. No fim daquela noite e nas horas que se seguiram à polêmica apresentação, se falava, na internet e na rua, que o show "estava bom até Waters falar de política".
Aos 75 anos, o baixista e vocalista do Pink Floyd se recusou a ceder aos apelos de quem desejava que ele só subisse ao palco para tocar os clássicos da banda e nada mais. No dia seguinte à estreia, novamente no Allianz Parque, colocou mais lenha na fogueira da indignação dos brasileiros ao sobrepor uma tarja escrita com a frase "ponto de vista político censurado" ao nome de Bolsonaro, ainda listado na relação dos líderes que flertam com a extrema-direita. E, se antes havia dito que "não sabia bem o que acontece no Brasil", provou que havia se inteirado e escolhido um lado. Dando sequência à sua turnê nas capitais brasileiras, fez uma homenagem a Moa do Katendê, o mestre de capoeira assassinado na Bahia após declarar voto em Fernando Haddad (PT), e também a Marielle Franco, vereadora do PSOL e militante feminista assassinada a tiros no Rio.
Não se sabe qual bandeira o músico irá levantar no show desta terça-feira (30) em Porto Alegre, no Beira-Rio. O certo é que, ainda que não faça uma critica pontual a um político brasileiro ou defenda alguma vítima da guerra ideológica que dominou o país, Waters seguirá apontando o dedo para os poderosos do mundo, como o presidente americano Donald Trump e o dono da maior rede social, Marck Zuckerberg. Prova, assim, que se alguns artistas decidem passar batido pela política, o mentor de The Wall (1979), disco do Pink Floyd recheado de críticas sociais que depois inspirou um filme, jamais fica em cima do muro.
Relembre episódios mais recentes, no palco e fora dele, em que Roger Waters mostrou sua militância política:
O "nós e eles" brasileiro
Após usar do slogan "EleNão", hashtag criada pelas mulheres para se insurgir contra Jair Bolsonaro e que depois virou grito nas manifestações de rua, Roger Waters prestou homenagem a Moa do Katendê e a Marielle Franco, duas lideranças negras, declaradamente apoiadoras de partidos de esquerda. Em relação à vereadora assassinada, disse, no show do Rio de Janeiro, que ela "acreditava nos direitos humanos", assim como ele. Em oito shows pelas capitais, a turnê Us + Them pode ser considerada a maior manifestação político-artística de 2018 no Brasil.
No dia 26 de outubro, entrou com um pedido na Justiça Federal para visitar na prisão o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, detido em Curitiba desde 7 de abril. A solicitação foi negada.
Primeiros pitacos
Um ano antes de Jair Bolsonaro virar motivo de protestos, Roger Waters embarcou na revolta de parte dos brasileiros com Michel Temer, que completava um ano na presidência do Brasil após o impeachment de Dilma Rousseff. Em maio de 2017, publicou em sua página no Facebook uma crítica feita com a foto do presidente.
Sob os olhos de Temer, uma frase questiona: "Essa é a vida que realmente queremos?". A arte é uma montagem feita com a capa do disco Is This The Life We Really Want?, lançado naquele ano. Em entrevista em São Paulo naquele mesmo ano, adiantando informações sobre a turnê Us + Them pelo Brasil em 2018, perguntou se deveria colocar uma imagem de Temer no porco gigante que flutua durante seus shows, quando toca a música Pigs. O animal inflável costuma ser estampado com uma foto de Donald Trump.
Cutucando os tropicalistas
Até Caetano Veloso e Gilberto Gil caíram na blitz do roqueiro militante. Ícones da resistência cultural ao regime militar que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985, a dupla marcou um show em Israel, em 2015, dentro da turnê Dois Amigos, Um Século de Música. Integrante de um movimento que pressiona Israel a retirar as tropas militares da Palestina, Waters chegou a mandar uma carta para Caetano implorando que o show fosse cancelado. No texto, disse que "as políticas coloniais e racistas de Israel devastam a vida de milhões de palestinos". Em resposta ao argumento do brasileiro de que fazer o show em Israel ajudaria a mudar a situação daquele país, Waters disse que era uma "posição ingênua". O show não foi cancelado e não houve manifestações políticas por parte da dupla.
Pois o roqueiro e o tropicalista ficaram frente a frente nesta passagem estrondosa do ex-Pink Floyd pelo Brasil. No dia 25 de outubro, Caetano entrevistou Waters. O assunto, como não poderia deixar de ser, foi o fascismo no mundo.
— Trump é o cara que te f*. Assim como Bolsonaro — comentou Waters, e logo em seguida pediu desculpa por erguer a voz ao falar sobre o tema.
Críticas por toda a parte
Em 2016, durante um festival na Califórnia, Roger Waters usou de seu porco inflável para xingar Donald Trump. Chamou o empresário alçado ao maior posto político do mundo de "ignorante, mentiroso, racista e sexista", tudo por meio de frases escritas no animal flutuante. Enquanto isso, declarações do presidente americano sobre as mulheres eram exibidas no telão, como forma de chocar o público. O protesto surgiu após o vazamento de um vídeo em que Trump chama uma mulher casada de "puta" e que, por ser famoso, pode fazer "qualquer coisa" com as mulheres.
Da última vez que esteve em Porto Alegre, em 2012, quando apresentou-se no Beira-Rio com a turnê The Wall, Roger Waters tratou de temas como a vigilância da tecnologia, o poder das marcas empresariais e a neurose da luta contra o terrorismo. Também prestou homenagem à uma vítima brasileira, Jean Charles de Menezes, morto em 2005 pela polícia de Londres ao ser confundindo com um terrorista. No fim do show, o muro construído foi posto abaixo, para delírio dos fãs que, naquela época, ainda entendiam que música poderia se misturar com política e gritavam "derrubem o muro, derrubem o muro".