"Abençoado", "acima da média", "diferenciado" são alguns dos adjetivos utilizados para descrever o ano de 2017 no cenário musical do rap, seja ele em âmbito nacional ou internacional.
Em um ano conturbado politicamente - primeiro do controverso mandato de Donald Trump lá nos EUA, crise econômica e retrocessos aqui no Brasil -, o rap se levantou como o gênero musical que mais soube traduzir todas essas tensões. Soma-se à equação a popularidade do hip hop, que, segundo o serviço de streaming Spotify, aumentou em 74% a porcentagem de ouvintes neste ano.
No Brasil, observou-se a reafirmação de nomes já reconhecidos na cena, caso de Flora Matos, Rincon Sapiência, Rodrigo Ogi e Don L, e também lançamentos qualificados de nomes que até então eram pouco conhecidos, caso do baiano Baco Exu do Blues e do paulistano niLL. Internacionalmente, tivemos o ressurgimento da lenda Jay-Z, a consolidação dos controversos Migos, a criatividade de Tyler e o talento de Joey Bada$$. O ano de 2017 também teve Kendrick Lamar, o melhor rapper da atualidade.
Seguido de uma música de cada rapper, confira abaixo a lista que GaúchaZH preparou com todos esses destaques.
Nacionais
1) Pé no Chão - Rodrigo Ogi
Primeiro lançamento após o elogiado álbum Rá (2015), o EP Pé no Chão reflete a versatilidade, o talento e o perfeccionismo característico do rapper Rodrigo Ogi. Composto por sete faixas e produzido em parceria com seu amigo Nave Beatz, Ogi faz jus aos apelidos de "mestre do flow" e "cronista da cidade" que detém. Suas músicas divertem, refletem e, principalmente, emocionam, caso de Nuvens, em que o cantor disserta sobre o período entre a morte de sua mãe e o nascimento de seu primeiro filho.
2) Eletrocardiograma - Flora Matos
Reconhecida nacionalmente como uma das principais rappers do país, a brasiliense Flora Matos indica já no título de seu álbum a tônica que norteia suas letras: o coração. Personificação do empoderamento feminino, a cantora transpõe como poucos a sua essência, independente e libertária, para cada uma das faixas que formam o disco. Participando também da produção de algumas batidas do CD, Flora demonstra em Eletrocardiograma mais uma vez a artista talentosa e completa que é.
3) Esú - Baco Exu do Blues
Imerso completamente na cultura popular brasileira, o rapper nordestino Baco Exú do Blues mistura em seu novo álbum, Esú, componentes do trap de Atlanta com referências tupiniquins - desde o sincretismo religioso, presente no título e na capa do álbum, até menções diretas a cânones da literatura, como na faixa Capitães de Areia, em que Baco invocas as palavras de Pedro Bala, personagem do livro homônimo de Jorge Amado. Neste disco, o rapper sampleou Novos Baianos, reivindicou vingança àqueles que sempre acabam sofrendo pelas posições minoritárias e ainda lançou Te Amo Disgraça, balada romântica que o rap nacional precisava.
4) Roteiro Para Aïnouz, vol. 3 - Don L
O nordestino Don L faz questão de se manter distanciado do sistema que parece sempre prestar continência à MPB. Roteiro Para Aïnouz, vol. 3 se inspira no cineasta cearense Karim Aïnouz, que dirigiu os filmes Céu de Suely (2006) e Madame Satã (2002), para traçar um caminho denso, permeado de críticas ao atual rumo do hip hop. O rapper inicia sua trilogia reversa com a já clássica Eu Não Te Amo, na qual, mais do que clamar por inventividade na cena do rap brasileiro, traz uma voz inconformista ao excesso de artificialidade no cenário musical.
5) Galanga Livre - Rincon Sapiência
Tendo como inspiração a literatura de cordel e a MPB, envolto pela musicalidade africana da Mauritânia e Senegal, Rincon apresenta, acima de tudo, uma experiência musical singular aos ouvintes em seu disco de estreia. Velho conhecido na cena hip hop, o rapper inova ao apostar em composições mais instrumentalizadas, ofertando músicas dançantes, ao mesmo tempo em que disserta sobre temáticas já tradicionais em letras do gênero, focando a realidade racial e social do cotidiano brasileiro.
Menção honrosa
Regina -niLL
Álbum de estreia do rapper niLL, Regina merece menção nesta lista pela inventividade. Diferente de tudo que se ouviu no rap brasileiro, o disco se inspira no movimento vaporwave para fazer uma dobra no gênero. Regina é costurado com conversas de WhatsApp e soa como um pastiche aos ouvidos, com rimas longas demais que fazem questão de não se encaixar nas frases de samples lo-fi - característicos do vaporwave. O resultado é um disco que consegue ser intenso - sem fugir de temas caros ao rap nacional -, junto a uma verve quase humorística.
Internacionais
1) DAMN. - Kendrick Lamar
O rapper mais relevante da atualidade justifica em DAMN. o motivo de ser considerado o rei do gênero. Mantendo um nível altíssimo em suas músicas, que inclui lovesongs e flertes com o pop, Kendrick apresenta um disco múltiplo que conforta, mas, sobretudo, desestabiliza. Capaz de despertar emoções adormecidas, a produção aflora sentimentos e, faixa a faixa, conduz o ouvinte a viagens que exploram do amor ao medo.
2) 4:44 - Jay-z
Como seria se um rapper de quase 50 anos lançasse um álbum passando toda sua conturbada vida a limpo? A resposta está em 4:44, décimo terceiro trabalho de estúdio de Jay-Z. No seu disco mais sincero desde Reasonable Doubt (1996), o veterano MC apresentou ao mundo seu lado Shawn Carter - um homem muito mais frágil e sensível que o consagrado magnata do hip hop. Surgido quase como uma resposta a Lemonade, álbum visual lançado no ano passado por sua esposa, Beyoncé, 4:44 tem como principal fonte de inspiração o tumultuado período vivido pelo casal nos últimos anos. Jay-Z deixa de lado a imagem de músico decadente que começava a se formar ao seu redor após Magna Carta Holy Grail (2013) e mostra-se maduro o suficiente para ajoelhar-se em público e pedir perdão à mulher traída.
3) All-Amerikkkan Bada$$ - Joey Bada$$
Um verdadeiro manifesto sobre as injustiças racial e policial sofrida pela população negra nos Estados Unidos do presidente Donald Trump. Assim pode ser resumido o segundo álbum de estúdio do jovem Joey Badass, que, em meio a uma sonoridade heterogênea e fluida, realiza questionamentos e busca heróis em um mundo onde sobreviver é um desafio. Entre letras intimistas e frustrações políticas acerca de uma sociedade fragmentada, o rapper do Brooklyn se credencia como uma das principais vozes do hip hop norte-americano da nova geração.
4) Flower Boy - Tyler, The Creator
Seguindo o sucesso mediano que foi Cherry Bomb (2015), o qual já mostrava um esmero maior com a produção, Tyler, The Creator lançou no início desse ano Flower Boy. O álbum parece ter sintetizado da melhor forma todas as características que o rapper californiano vinha mostrando desde Wolf (2013). Radicalmente mais acessível e colorido do que o primeiro dele, Goblin (2011), Flower Boy traz latente a influência de outro músico que faz dois featurings no álbum, Frank Ocean. Com faixas mais líricas e meditativas, Tyler discorre sobre solidão, tédio e desorientação neste disco.
5) Migos - Culture
Grupo de maior relevância no atual cenário do trap - vertente musical do rap em que o uso de elementos eletrônicos ganha destaque - o trio norte-americano Migos apresenta em Culture a sua melhor faceta e se consolida como referência no gênero. O ponto forte da produção, sem dúvidas, fica por conta da sonoridade das faixas, que têm como temas principais a ostentação. As batidas utilizadas criam uma atmosfera festiva que abarca todo o disco, como se o CD dos rappers de Atlanta fosse uma grande celebração.
Menção honrosa:
Ctrl - SZA
R&B, soul, rap, todos embebidos na marcante voz de SZA. Ctrl, primeiro álbum de estúdio da cantora, configura-se como uma viagem melódica que mescla ironia e melodrama ao dissertar sem pudor sobre incertezas, felicidades e fracassos enfrentados ao longo da vida. Tendo como mote os relacionamentos amorosos em muitas de suas letras, SZA retoma sonoridades clássicas e casa com temáticas em voga, entre elas o empoderamento feminino ante uma sociedade machista.