"Um, dois, três, quatro, cinco, eu sou o melhor rapper vivo" é o que canta Kendrick Lamar em The Heart Part 4, single promocional de Damn lançado em março. Nada de novo no universo de ostentação e disputa de egos do hip hop norte- americano, não fosse uma peculiaridade na trajetória do californiano de 29 anos: é provável que ele seja, de fato, o melhor rapper vivo. E não só isso – com Damn, seu novo disco, Kendrick mantém uma sequência de trabalhos revolucionários e caminha rumo ao posto de maior da história.
Lançado sob forte expectativa – já que To Pimp a Butterfly (2015), seu disco anterior, tornou-se trilha sonora das passeatas do movimento Black Lives Matter e foi elogiado pelo presidente Barack Obama, que elegeu How Much a Dollar Cost a sua música preferida daquele ano –, Damn mostra Kendrick mais voltado a si mesmo. Se a capa de To Pimp a Butterfly mostra negros em frente à Casa Branca, a de Damn é o retrato de um artista mais taciturno. Sua rima combina inquietações mais autocentradas ("Sinto que todo o mundo quer que eu reze para ele, mas quem está rezando por mim?"), em Feel, e outras mais universais, como sua relação com o universo do hip hop ("No último LP, tentei dar uma força para artistas negros, mas há uma diferença entre artistas negros e artistas fracos"), em Element, e a eleição de Donald Trump ("Ligamos as notícias, procuramos confirmação, esperando que a eleição não fosse verdade"), em Lust.
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– Kendrick tem essência lírica e o espírito dos grandes rappers. Consegue usar isso em questões de muita profundidade sem perder a relação com o pop, coisa que a maioria não consegue – diz o rapper paulista Rico Dalasam. – É um rimador completo. Tem técnica, trabalha em metáforas, rima em vários estilos de voz.
Ronald Rios, apresentador do programa Rap Cru, no YouTube, e ex-comandante do Histórias do Rap Nacional, da TV Gazeta, destaca:
– Além disso, é um grande intelectual, que dá uma visão rica de sua Compton (cidade próxima de Los Angeles, de onde também saiu o lendário grupo N.W.A.). Não é um rapper molenga, que evita assuntos complexos, nem aquele rapper durão.
Com uma carreira que começou aos 16 anos, Kendrick explodiu em 2012 e mostra versatilidade e talento em quatro discos. Flerta com o jazz e faz parcerias com nomes como o U2. Canta de hinos politicamente engajados a hits para tocar na noite.
– Sou superfavorável ao debate sobre ele ser ou não o maior da história – provoca Rios – Da sua geração, é. (The Notorious) Big não lançou quatro discos porque morreu, Tupac não tinha essa consistência. Não vejo nenhum problema em afirmar que Kendrick é o melhor de todos os tempos.
DAMN
De Kendrick Lamar
Lançamento, rap, 14 faixas
Disponível nas plataformas de streaming
Cotação: 5 de 5
Cantando a realidade
Quando Kendrick Lamar colocou a si próprio no debate entre os maiores MCs da história, em Control, música lançada por Big Sean em 2013, poucos esperavam que a "profecia" se realizaria em tão pouco tempo. A jornada de Kendrick para ocupar um dos lugares à mesa da Última Ceia do hip hop começou em 2011, quando lançou, ainda de forma independente, Section.80, seu primeiro álbum de estúdio.
Embora Section.80 não tenha causado o mesmo impacto dos trabalhos que o sucederam, abriu portas que permitiram a Kendrick superar o status de rapper emergente da costa oeste dos EUA para se tornar um fenômeno mundial.
O músico assinou seu primeiro contrato com uma grande gravadora e lançou, em 2012, Good Kid, M.A.A.D City. Narrando a vida de um jovem pelas ruas de Compton, cidade marcada pela violência das gangues, o disco funciona como uma espécie de autobiografia do artista e mistura rimas com interlúdios que vão de orações a diálogos e mensagens de voz em uma caixa postal. Sucesso entre público e crítica, Good Kid foi o responsável por consolidar Kendrick como um dos principais nomes surgidos no rap nos últimos anos. Recebeu quatro indicações ao Grammy, incluindo artista revelação e melhor álbum do ano.
Três anos mais tarde, apresentou To Pimp a Butterfly (2015). Apontado como um divisor de águas do gênero, o registro mostra um Kendrick versátil, misturando rap com batidas de jazz, soul e funk dos anos 1970. Da identidade visual às letras, Kendrick conseguiu se dedicar a combater o racismo e exaltar a comunidade negra sem perder o apelo comercial.
O ativismo político de To Pimp a Butterfly também ganhou destaque nas apresentações do cantor. Ao abrir a cerimônia do BET Awards 2015, sua performance de Alright ("E nós odiamos a polícia, querem nos assassinar nas ruas, com certeza") gerou polêmica entre setores conservadores da mídia. Geraldo Rivera, comentarista da Fox News, chegou a declarar que o hip hop causava mais danos aos jovens afro-americanos que o racismo. No ano passado, em um momento cultural marcado pela ausência de atores negros indicados ao Oscar, Kendrick chamou a atenção ao subir no palco do Grammy acorrentado e iniciar seu show com a potente The Blacker The Berry ("Você me odeia, não é? Você odeia meu povo, o seu plano é acabar com a minha cultura").
Em 2016, surpreendeu ao lançar a coletânea de oito faixas demos Untitled, Unmastered, produzidas entre 2014 e 2016. Na primeira semana, o álbum chegou ao topo da Billboard com 178 mil vendas.
* Colaborou Antônio Pires