Uma criança solitária, com botas ortopédicas, calças com remendos e roupas emprestadas do irmão, que foi convidada a deixar a sala de aula, porque não teria condições de aprender a ler e escrever, e recebeu um diagnóstico de retardo mental aos sete anos. Surpreendendo a todos, inclusive a si mesmo, esse menino se tornou jornalista, cronista e poeta, além de ser um dos escritores contemporâneos mais reconhecidos do país. Fabrício Carpinejar chega, neste domingo (23), aos 50 anos, marcados por uma trajetória notável e de superação, com muitas conquistas a celebrar, atingindo a expressiva quantia de 50 livros publicados. Porém, nem na fantasia mais tresloucada o colunista de GZH acreditava que isso poderia acontecer.
Filho dos também poetas Maria Carpi e Carlos Nejar, Fabrício Carpi Nejar nasceu em Caxias do Sul, em 1972, e tem três irmãos. Com a ajuda da mãe, que não se resignou à conjuntura estipulada ao filho e se dedicou a alfabetizá-lo, sempre foi do time dos esforçados — e dos sensíveis. Essa dedicação era acompanhada de uma voraz leitura, hábito herdado dos pais. O escritor ri ao lembrar que, por pena, escolhia as obras que não eram retiradas na biblioteca, para dar uma chance e incentivar a leitura delas, pois, em sua visão, eram como ele, “tinham poucos amigos”.
Por problemas de dicção e na fala, sofria deboches e precisou de acompanhamento fonoaudiológico. Além disso, recebia apelidos maldosos dos colegas, como “morcego” e nomes de personagens de filmes de terror. O pior de todos, conta, foi “placenta”.
— Mas sentia que era um momento adverso, não uma fatalidade. Superava cada momento de enfrentamento, foi assim que sobrevivi ao bullying, episódio a episódio. Não somava os deboches, isolava a tristeza. Perigoso na vida é quando você junta todas as tristezas, vira uma avalanche — pontua.
Apesar de tudo, o poeta não mudaria nada do início de sua trajetória, pela humildade que adquiriu por não se acreditar naturalmente inteligente. O sofrimento serviu como combustível para colocar nas palavras o que o coração sentia, transformando em poesia — e resultando em uma pessoa doce, apesar dos dissabores da vida. Desde então, Carpinejar está sempre tentando resgatar pessoas do outro lado da margem da exclusão:
— Me tornei escritor para ser o salva-vidas de pessoas parecidas comigo — revela.
Desta maneira, o cronista luta contra o bullying e brinca que cada livro seu é a “vingança da placenta”. Ele também assegura que essas experiências não foram de todo ruins, pois pôde escrever sobre elas e organizar as emoções — conseguindo ressignificá-las. Hoje, busca utilizar seu exemplo de vida para despertar vocações que se encontram desanimadas. Então, “era para ser”, afirma.
Memorabilia
Carpinejar se graduou em Jornalismo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), instituição onde também se tornou mestre em Literatura Brasileira, em 2001. Seu livro de estreia foi As Solas do Sol, em 1998, momento em que uniu os sobrenomes e passou a assinar Carpinejar. Em 2003, publicou a antologia Caixa de Sapatos, ganhando notoriedade nacional. De lá para cá, publicou outras dezenas de títulos, entre poesia, crônicas e infantojuvenis, contabilizando mais de 750 mil exemplares vendidos. Seu trabalho, por vezes, bebe de referenciais autobiográficos para refletir sobre relacionamentos, questões familiares e afetos — alguns dos temas que permeiam suas obras.
Ao longo de cinco décadas, também passou por diversos meios de comunicação e foi professor na Unisinos. Em 2021, em reconhecimento de sua extensa contribuição para a literatura, foi patrono da 67ª edição da Feira do Livro de Porto Alegre. Tem ainda forte atuação nas redes sociais, com mais de 1 milhão de seguidores. Com um discurso intimista, profundo e bem-humorado, conseguiu se estabelecer como uma figura pop, transcendendo a literatura.
O escritor destaca o fato de ter autografado livros junto a seus pais, que influenciaram o rumo tomado pelo filho, como momentos memoráveis de seus 50 anos de vida — uma “consagração afetiva”.
Os mais de 20 prêmios conquistados ao longo da carreira também são motivo de orgulho, como o Prêmio Jabuti, duas vezes, o Prêmio Açorianos de Literatura, quatro vezes, o Prêmio Nacional Olavo Bilac, concedido pela Academia Brasileira de Letras, entre outros. Além disso, aponta a importância, na sua formação, de ter percorrido o Interior com palestras, ampliando sua desenvoltura e contato com os leitores.
Um dos principais pontos de inflexão em sua história foi a chegada de Mariana, sua primogênita — e, com ela, a vida adulta. Carpinejar se tornou pai jovem, aos 22 anos, no meio da graduação, o que lhe deu um novo senso de responsabilidade e de aproveitar os momentos. E de todas as suas produções, destaca como obra favorita seus filhos Vicente e Mariana, por serem as mais pungentes e fiéis a si mesmo.
Hoje, um grande desafio em sua vida e trajetória é escrever diariamente uma crônica para a última página de Zero Hora. Para tanto, se disfarça no cotidiano, como um agente infiltrado, e escreve tudo em trânsito e diretamente no celular — inclusive os livros.
Para descrever a trajetória até este momento, Carpinejar utiliza duas expressões: inteligência emocional, na capacidade de combater a ansiedade; e “Wolverine”, aquele que cicatriza rapidamente — e suas palavras são suas garras, explica. E o lema que leva para a vida? Tudo o que aconteceu de errado foi lição; de bom, gratidão; e o que não aconteceu, proteção.
Cinco décadas
Carpinejar afirma que, aos 50 anos, não há sonhos impossíveis. Contudo, já não faz mais promessas, no intuito de melhorar o presente. Alega que promessa é mentira.
— Sou muito feliz com o que sou e com o que tenho — ressalta. — Acho que sou um filme de baixo orçamento que deu certo — acrescenta, entre risos.
Mesmo com tantas conquistas, não pretende realizar uma grande comemoração de seus 50 anos, pois já teve “todos os tipos de festa”. Para o poeta, a festa é para impressionar e agradar, e as melhores risadas vêm depois, com os amigos que ficam para ajudar.
— O que eu quero hoje é paz e estar com os amigos. Talvez minha festa seja na cozinha recebendo amigos e lavando louça — brinca.
Quinquagésimo livro
A chegada do 50º aniversário de Fabrício Carpi Nejar coincide com a publicação de seu quinquagésimo livro. A Menina Alta (Bertrand Brasil, 36 páginas, R$ 54,90, com ilustrações de Sandra Lavadeira) é o quarto título de uma série infantil sobre bullying e chegou às livrarias na última semana. A obra mostra a história de Letícia, uma menina cujo sonho é ser cantora, mas que é discriminada por ser muito alta. Assim, aquilo que poderia ser uma virtude é identificado como um defeito.
Mesmo com o livro recém-lançado, o autor já planeja ultrapassar essa marca em sua carreira: lançará outro título dessa coleção, chamado O Menino Vegetariano, além de um novo livro no próximo ano, intitulado Os Centavos da Existência.
Por ora, o escritor se prepara para passar o patronato da Feira do Livro de Porto Alegre adiante — mas o título, mais uma vez, permanecerá entre os Carpi Nejar, tendo sido o pai dele o escolhido desta edição. A família, cuja mãe também já foi patrona do evento em 2018, está na expectativa.
— Será emocionante. Ter toda a família como patronos é algo único, histórico — orgulha-se.